Quinze Milhões de Méritos: a apropriação da crítica pelo sistema

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Se há uma coisa que a brilhante série Black Mirror sabe fazer é obrigar-nos a pensar. A escolha de seu nome, que em português significa “espelho negro” pode ser relacionada à quase onipresença das telas negras de smartphones, televisões, tecnologias diversas em todos os episódios. Mas pode ser encarada também (e essa interpretação me convence mais) como a escuridão que a humanidade certamente encontrará se esbarrar consigo mesma em algum espelho de autoanálise.

Em todas as temporadas, nos deparamos sim com tecnologia, mas somos obrigados a encarar, para além disso, uma das facetas mais características do humano: a violência. Violência explícita, violência velada, violência verbal, violência psicológica… E a tecnologia, toda essa modernidade que está a nossa disposição, servindo como mediadora, como propulsora, um canal fértil para a propagação dessa violência que carregamos dentro de nós. Sim, estamos falando de nós, aqui, agora. Não de futuro, nem de distopia… Black Mirror é real hoje, pois trata essencialmente da condição humana, não apenas de avanços tecnocientíficos.

Fonte: https://goo.gl/zRt9SY

Cada episódio é carregado da crítica pesada que nos surpreende por não apresentar o novo, mas o usual e vivenciado por nós repetidas vezes. Só nos parece novo por ser muito exagerado e caricato, mas é impossível não nos reconhecermos nas situações, simpatizando com os personagens, sabendo que faríamos as mesmas escolhas, e intimamente concordando que talvez, só talvez, fosse a hora de tentar compreender e mudar isso.

No segundo episódio da primeira temporada, “Quinze milhões de méritos”, temos a oportunidade de conhecer Bing Madsen (interpretado pelo brilhante Daniel Kaluuya), um jovem inserido em uma sociedade distópica, totalmente artificial e tecnológica. Todas as pessoas trabalham arduamente, pedalando o dia inteiro em uma espécie de bicicleta, para conseguir seu salário em forma de méritos, a moeda que dá nome ao título e que brinca, não tão sutilmente, com a ideia da meritocracia. Bing, entretanto, recebeu uma herança do irmão, o que lhe permite pedalar menos rápido e assim, ter mais tempo de pensar e refletir.

A princípio, a tecnologia reina absoluta, e nos encanta. As pessoas podem interagir com ela, comprar um amigo que “te ouve e guia seus sonhos”, brincar em jogos que (grande surpresa) reforçam ódio de classes ao colocar como inimigos os faxineiros que diariamente limpam as salas das bicicletas.  E logo após, a sensação de incômodo começa a crescer quando vemos que as pessoas realmente não tem a opção de deixar dever, interagir e colaborar com o sistema. O clima fica mais e mais pesado a medida em se repara que nada é real, nem mesmo as frutas que eles compram para se alimentar, e que não há possibilidade de ver… ver o mundo, ver além das paredes cinzentas e do ambiente esterilizado.

Fonte: https://goo.gl/89y1uG

Nesse ambiente, nada realmente toca Bing, até que ele ouve Abi (interpretada por Jessica Brown Findlay) cantando dentro do banheiro e se convence de que ela é talentosa o suficiente para participar do Hot Shot, um programa de talentos (muitíssimo parecido com X-Factor e outros similares), que é vendido como uma das únicas formas de sair da vida monótona de pedaladas. Animado por ver algo real acontecer, ele doa sua fortuna para que ela possa participar do programa.

Abi vai ao programa, e temos uma crítica sutil à “meritocracia”, quando a sala de espera para participar do programa está lotada de pessoas que estão ali por dias, semanas e, com efeito, até meses, mesmo que todos tenham se esforçado para comprar o ingresso que custa 15 milhoes de méritos e alguns tenham chegado mais cedo do que outros.  A escolha da ordem para se apresentar é totalmente arbitária para os que estão ali dentro, o que nos faz pensar em que alguém escolhe a ordem de acordo com seus interesses.

Abi canta muito bem, mas não bem o suficiente para o sistema. Ou talvez, sua única razão para ter conseguido chegar ao palco seja a tentativa de convencê-la a escolher um propósito diferente. Com efeito, Abi se vê pressionada a entrar para o ramo de produções pornográficas, e mesmo que ela não tenha dito sim com clareza e com firmeza, o público aplaude e a saúda como se fosse realmente uma sorte grande. Abi estava sob o efeito de uma bebida chamada “Concordância”, e pressionada por todos, cede. Merece destaque a critica à sociedade expectadora, na perturbadora visão dos bonecos holográficos dos espectadores, aplaudindo e participando, todos virtualmente juntos e fisicamente sozinhos.

Fonte: https://goo.gl/CstChd

Bing, desconsolado, se lança na empreitada de conseguir juntar novamente fortuna, e subir ao palco para desafiar o júri. Com muito esforço finalmente consegue, e determinado, compra um novo ingresso. Já escaldado pela situação de Abi, engana ao fingir que já bebeu Concordância, e sobe ao palco. A cena que se desenrola é emocionante. Faz fixar os olhos, enquanto Bing dança e puxa um caco de vidro, ameaçando se matar caso não seja ouvido. Sua crítica quebraria o sistema. E ele fala. Fala e arrepia, e quando expõe a verdade, faz silenciar uma plateia ruidosa. Se o passado nos serve de lição, já sabemos o que acontece afinal.

Esse episódio, como todos de Black Mirror, contém críticas ao sistema em cada mínimo detalhe, porém, o que mais chama a atenção é a crítica ao modo como o sistema tem a capacidade de engolir até mesmo os que se levantam contra ele. Há um apagamento da subjetividade das pessoas nesse lugar fictício, e o que nos assusta é perceber que não é tão fictício assim. É uma característica observada largamente no nosso sistema atual. A cada vez que movimentos sociais se levantam, ou que uma voz se insurge contra o status quo é, como bem disse Bing em seu discurso:

 “Se eu tenho um sonho? É um novo aplicativo! Compramos coisas que nem estão lá! Mostrem-nos algo real, grátis e bonito. Não conseguiriam! Isso nos abalaria! Mas estamos tão entorpecidos… são maravilhas demais para suportar! Quando encontram algo, nos dão em porções escassas. Só é aumentada, embalada e bombeada por 10.000 filtros, até que não seja nada mais que séries de luzes sem sentido, enquanto pedalamos dia após dia, indo para onde? Dando energia a quem?”

A ocupação de gerar energia para o sistema, pedalando exaustivamente durante todos os dias não é nada mais do que uma alegoria ao modo de viver atual, onde cada vez mais exercemos atividades que nos distanciam do sujeito autônomo e nos moldam a um sujeito automatizado, que não tem tempo de refletir acerca do que produz, e embebido pela tecnologia, não se importa realmente em questionar o estabelecido.

Fonte: https://goo.gl/p8TCHj

Por fim, a apropriação da crítica pelo próprio sistema e sua transformação em propaganda, pode ser observada no episódio de forma extremamente clara. Se alguma voz ousa se levantar, há tentativa de supressão. Se a tentativa não funciona, o sistema, generosamente, abre um lugar para essa crítica, amplia, vende como sua, convence o público e assim, compartimenta essa crítica junto a dezenas de outras, em um pequeno espaço onde se tem a ilusão da diversidade.

O episódio é recheado de críticas ao machismo, aos haters, à gordofobia, à indústria pornográfica, à nossa crescente impossibilidade de nos distanciarmos do ciclo vicioso do consumo exacerbado, ao uso da tecnologia para nos distanciar da natureza, à violência psicológica a que estamos constantemente expostos.

Portanto, vale a pena ressaltar: Black Mirror não é apenas sobre tecnologia. É sobre como usamos a tecnologia para amplificar nossos impulsos duvidosos. Black Mirror é sobre nós, incomoda, e esse incômodo perdura por dias. Por esse mesmo motivo, deve ser assistida não apenas como entretenimento, mas como pontapé inicial para a reflexão acerca das nossas vivências e relações na atualidade.

REFERÊNCIAS:

http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782003000100011&script=sci_abstract&tlng=pt

<http://observatoriodaimprensa.com.br/speculum/a-sociedade-do-espetaculo/>

<http://justificando.cartacapital.com.br/2017/03/13/black-mirror-um-compendio-de-criminologia/>

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Das letras ao palco: a mente de um rockstar

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Ivan Silva em ação pela banda Maquinários – Foto: Acervo Pessoal

Às vezes ouvimos uma música e nem imaginamos o quão árduo foi o processo de sua composição. Também, por vezes, assistimos um grande artista se apresentando, cantamos e vibramos junto, mas nem paramos para pensar que aquela pessoa famosa percorreu um longo caminho até alcançar o sucesso, em sua carreira.

Tão difícil quanto pensar sobre isso é tentar adivinhar o que se passa pela mente de um artista bem sucedido. Com milhões de músicas disponibilizadas na internet todos os dias, o público está cada vez mais exigente. Será que todo artista está preparado psicologicamente para lidar com essa exigência?

Em entrevista ao portal (En)Cena, Ivan Silva, ex-vocalista da banda Maquinários1, nos conta um pouco da sua visão sobre essa vida em cima dos palcos.

(En)Cena – Você é mais conhecido por ter sido vocalista e um dos fundadores da banda Maquinários. Quanto tempo durou sua participação na banda?

Ivan Silva – Fiz parte dela por quatro anos.

(En)Cena – Com quantos anos você começou a se apresentar?

Ivan Silva – Aos 21 anos iniciei as minhas primeiras apresentações de palco ao lado da banda Maquinários, minha primeira e única banda. Ensaiamos durante um ano para podermos apresentar nosso trabalho ao público.

Ivan Silva com os integrantes da banda Maquinários – Foto: Acervo Pessoal

(En)Cena – Com a sua saída da banda, como ficou a sua relação com outros integrantes?

Ivan Silva – Minha saída foi tranquila. Já vinha conversando com meus companheiros sobre alguns projetos de vida que tinha de priorizar, e que não poderia me dedicar totalmente à banda. Em música (e qualquer outro projeto) você tem de estar completamente envolvido, de corpo e alma, senão no final você frustra a si mesmo e aos outros que dependem do seu envolvimento. Sou eternamente ‘brother’ deles e eles sempre poderão contar comigo para o que der e vier.

(En)Cena – Você compunha algumas das canções, não é mesmo? De onde tira inspiração para escrever as letras?

Ivan Silva – Olha, todo compositor precisa ler muito e ter uma vida cultural e social muito ativa. Claro que existem alguns que não precisam ler (risos). Mas em geral me inspiro em livros, filmes e deixo a loucura invadir minha mente. Como sou poeta também, desde pequeno sempre desconfiei da verdade absoluta, e nunca me contentei com o discurso clichê e estúpido do senso comum. Para escrever coisas interessantes você precisa ser (a palavra é exatamente essa) louco. Quem pensa padrão escreve padrão, fala padrão, e não se diferencia em nada do rebanho dos idiotas.

(En)Cena – A rotina é algo entediante. O que mais te estressa(va) na rotina de banda? Ensaiar, compor…

Ivan Silva – Nada me estressava na rotina de banda. Aliás, quando se faz arte não existe rotina. Trabalhe, obedeça a um chefe e leve uma vida medíocre, assista Rodrigo Faro e coma pizza aos domingos e ai sim você terá uma rotina. Como diria Confúcio: “Escolha um trabalho de que gostes, e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”.

(En)Cena – Quem sobe no palco nem sempre está motivado o suficiente para conseguir animar o público presente. Como você lida com essa, digamos, tarefa de levar boas vibrações para quem te assiste? Você faz algum tipo de preparo psicológico antes das apresentações?

Ivan Silva – Eu sou (modéstia à parte) parecido com o Jim Morrison no que diz respeito a ser vocalista. Bebo, fico louco, solto meus demônios, e isso contagia o público, que perde a vergonha e faz o mesmo que você. O artista é aquele que transforma ódio e amor em arte, e faz com que o público não tenha medo de jogar pra fora esses sentimentos, muitas vezes oprimidos pelas convenções sociais. Como diria Marcelo Nova (vocalista da banda Camisa de Vênus): “Não faço musica para adestrar macaco”.

Ivan Silva em ação pela banda Maquinários – Foto: Acervo Pessoal

Na minha música, você dança do jeito que bem entender. Sou louco no palco, honesto com minha arte, e o público sente isso. Quando você se transforma num personagem para aparecer, o público não sente a música, não sente você, e não se envolve.

Leia: “Renato Russo tinha força e carisma incríveis”, afirma Dado Villa Lobos.

(En)Cena – Vaia é sempre uma coisa ruim. Já recebeu alguma? Como lida com este tipo de reprovação?

Ivan Silva – Nunca recebi vaia, mas se recebesse, daria risadas e levaria numa boa. Mas o mais provável seria eu mandar todos para aquele lugar, já que critica destrutiva é uma forma descarada de chamar para a briga.

(En)Cena – Você é natural de Brasília, por muitos anos, considerada “A capital brasileira do rock”. Acredita que seja melhor para tocar rock por lá, onde a concorrência por espaço é maior, há mais público e incentivo cultural ou aqui, onde a concorrência é menor, há menos público, nenhum incentivo e apenas um local para se apresentar? 

Ivan Silva – Capital brasileira do rock só se for nos gibis (risos). O lugar para crescer como roqueiro é São Paulo. É lá que a coisa acontece. Brasília é um lugar legal, revelou muitos talentos, mas todos foram embora para os grandes centros para fazer sucesso. Região norte, centro oeste e nordeste não têm incentivo para quem quer tocar rock. Quer crescer, saia e vá para o sudeste ou sul.

(En)Cena – Você diria que, por se preocupar com melodia, letra, harmonia e outros aspectos musicais, a mente de um músico pode ser considerada uma “máquina”?

Ivan Silva – No sentido de ter que produzir, sim. Em geral todos os artistas honestos têm cabeças de máquina, pois uma mente que foge do consensual tem que trabalhar pesado para sustentar seus devaneios.

(En)Cena – Pra você, sob qual sentimento é melhor ou mais fácil para você escrever (compor)? E para se apresentar?

Ivan Silva – Não existe para mim um sentimento específico que me faça compor ou me apresentar. Posso estar inundado de amor e escrever uma canção de ódio. E vice-versa. Como eu disse, a loucura é o que me faz ser artista. E ela não é um sentimento, e sim uma dimensão, algo inexplicável e não palpável. Só experimentando para saber.

(En)Cena – Muitos roqueiros famosos como Elvis Presley, o baterista da banda Led Zeppelin, John Bonhame recentemente o vocalista da banda Charlie Brown Jr. Chorão que, não suportando as críticas e a rotina incessante de shows, fizeram uso abusivo de álcool e entorpecentes e vieram a falecer. O que você tem a dizer sobre os artistas que veem nas drogas a solução para as exigências que esse tipo de vida traz?

Ivan Silva – Cada um tem sua essência e faz de sua vida o que bem entender. Não sou totalmente contra as drogas, e odeio esse discurso politicamente correto de que o ser humano ideal tem que ser limpo das sujeiras do mundo perverso. Todo projeto de ser humano perfeito é autoritário e fascista.  Em geral, 90% dos roqueiros que fizeram obras primas geniais, o fizeram sob o torpor do álcool ou de outras substâncias. Então, quer usar use. Se não precisa, não use. E tenho dito!

Em sua história, o rock acumula muitos casos de roqueiros que ficaram famosos por beber e se drogar excessivamente, hábito este que levou parte deles ao óbito. Porém esta fama parece não ser condizente aos fãs do gênero musical. No Rock in Rio deste ano, segundo alguns vendedores ambulantes, fãs da cantora norte americana Beyoncé, por exemplo,consumiram mais cerveja que o público roqueiro.

Veja também: “Há 40 anos era sexo, drogas e rock n’roll. Agora é chá e refrigerante”, disse o baixista Geezer Butler da banda Black Sabbath.

Nota:

Máquinários no 1° campeonato de skate da Rockixe Skate Rockshop Chapecó

1 Maquinários: Banda de rock n’roll formada em 2008, em Palmas – TO, hoje tocando pelos palcos do sul do país, mais precisamente na cidade de Chapecó-SC. Ivan Silva foi integrante da banda por quatro anos e participou da gravação do primeiro trabalho oficial, intitulado “Seis milhas para o inferno”.

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