Como se sentem os professores do mundo líquido-moderno?

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No presente ensaio, pretende-se explorar através do conceito de mundo líquido-moderno criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, um panorama entre a dinâmica social atual e a realidade profissional dos professores da Educação Básica no Brasil. Em paralelo, a visão do sociólogo Richard Sennett e o conceito de corrosão do caráter serão empregados para elucidar a as relações de trabalho no capitalismo atual.

A sociedade pós-moderna tem como características principais a fluidez nas relações e a rapidez como as mudanças acontecem. Para viver na sociedade atual, os indivíduos devem, portanto, se adaptar rapidamente às mudanças e a capacidade de consumo sob o risco de serem ‘descartados’ como lixo caso não provem sua utilidade dinâmica. Porém, tamanha flexibilidade exigiria um custo sobre os valores pessoais dos indivíduos e seu caráter.

Assim como outros profissionais, os professores da Educação Básica no Brasil estão inseridos em tal dinâmica, que pode ser causadora de conflitos e adoecimento. A dinâmica atual se apresentaria como paradoxal para esses profissionais uma vez que, ao mesmo tempo que impelidos pela sociedade a buscar flexibilidade, volatilidade, satisfação imediata e consumo; encontram uma realidade com longas carreiras, um sistema rígido de normas e muitas vezes com baixa remuneração; estabelecendo um mal-estar generalizado, que favoreceria o acometimento por enfermidades mentais.

Fonte: https://goo.gl/7tB2xc

Professores do mundo líquido-moderno: um panorama de mal-estar

A sociedade atual se encontra em constante mutação, e a todos que vivem nela cabe uma parte nessas transformações. Vivemos em condições precárias de incerteza constante. A rapidez com que ocorrem as relações atuais torna a ideia de estar parado ou “ficar para trás” algo insuportável. Logo, todo aquele que não se recria, é descartado como lixo (BAUMAN, 2009).

Diante de tal realidade, a vida se torna algo cada vez mais desafiador, uma vez que pode ser comparada a uma dança das cadeiras. Os ganhadores do jogo garantiriam (mesmo que temporariamente) a chance de não ser descartados, enquanto os perdedores entram na categoria de “destruídos” (BAUMAN, 2009). Tal dinâmica também se aplica ao âmbito profissional.

Diante de uma tônica de descartabilidade, os compromissos revogáveis e fluidos orientam os engajamentos em novos contratos (BAUMAN, 2009). O capitalismo atual vive um momento caracterizado pela natureza flexível, que questiona as formas burocráticas e os significados da antiga dinâmica das relações de trabalho. A flexibilidade causaria uma sensação de constante ansiedade, uma vez que riscos e caminhos podem não ser compensados (SENNETT, 2009).

Fonte: https://goo.gl/EhQyhp

A flexibilidade causaria, portanto, um impacto no caráter pessoal, uma vez que este seria compreendido como um “aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional […] expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro” (SENNETT, 2009, p. 10). Para tanto, as novas dinâmicas de trabalho favoreceriam aspectos contrários aos definidos como caráter: como relações de curto prazo, compromissos voláteis, e busca de satisfação imediata.  No mundo líquido-moderno, lealdade é motivo de vergonha (BAUMAN, 2009).

Nesse panorama, como é estar na linha tênue entre a fluidez e ser um profissional em áreas que ainda exigem longas carreiras em uma mesma função? Que exigem lealdade e compromisso mútuo? Que valorizam o conceito de “caráter”? Esse é o caso de professores (as) da educação básica no Brasil.

Uma pesquisa realizada em 2015 pela especialista em educação, Ieda Benedetti, com professores da rede municipal, estadual e particular de Presidente Prudente (SP) apontou que a cada dez profissionais, dois tiveram que se afastar por problemas de saúde. Segundo a pesquisa, dos 1.203 trabalhadores, 276 deixaram de atuar por afastamento médico, cerca de 23%. Entre os profissionais estudados, a pesquisadora registrou que 26% dos afastamentos se deve por questões psiquiátricas, como estresse, fobias e síndrome do pânico. Para a pesquisadora, o principal motivo seriam os estresses causados ao longo dos anos em sala de aula (G1, 2015).

Fonte: https://goo.gl/yHy8Ai

Transformações sociais, políticas e econômicas de maneira brusca, lançaram novos desafios ao sistema de ensino e particularmente aos professores. Sua capacidade de resposta a uma realidade mutável e exigente, cobra dos professores um ajustamento às exigências sociais, profissionais e tecnológicas. A reação à realidade pós-moderna ‘colorida’ e ‘fluorescente’ seria de surpresa no inicio, mas depois, de tensão, desconcerto e agressividade, uma vez que esses profissionais não têm consciência da origem de tais mudanças (PICADO, 2007).

As instituições de confinamento dos corpos estariam sofrendo uma crise na relação com o mundo de fluidez e aceleradas desterritorializações, onde o homem disciplinado passa ao consumidor. A escola passaria para a qualidade de um mercado de serviços, projetos e produtos para seus usuários, sendo a capacidade de consumo dos modelos a referência para a ascensão ou fracasso no meio social. Na sociedade de ‘(in)formação’, os vetores sociais redimensionados são a aceleração, o isolamento, a individualização e a competitividade; de modo que o controle social se dá por meio das tecnologias de informatização e marketing, bem como  capitalismo empresarial na lógica de curto prazo e mutante (HECKERT; ROCHA, 2012).

O novo capitalismo teria a capacidade de afetar o caráter dos indivíduos, não oferecendo condições lineares de vida (SENNETT, 2009), porém, exigindo uma vida de consumo, que molda o julgamento de tudo que existe como objetos a serem consumidos. Para tanto, os próprios indivíduos devem se apresentar como mercadorias, uma vez que demonstrar seu próprio valor de uso seria a única maneira de poder ter acesso a vida de consumo (BAUMAN, 2009). Tais aspectos se demonstram um problema na realidade atual de professores que tem perspectivas longas de carreira e salários aquém da realidade voraz de consumo.

fonte: https://goo.gl/wqZCNM

Segundo levantamento realizado pelo Inep no ano de 2017, Os professores da educação básica pública ganhavam, em média, R$ 3.335 no País, em 2014. A rede municipal, que concentra 59% dos professores da educação básica, é a que tem a menor média salarial, de R$ 3.116,35 por carga horária de 40 horas semanais. Porém, para Priscila Cruz, diretora do Movimento Todos pela Educação, os números médios em educação em um país de realidades diversas não dizem muito, pois colocaria no mesmo lugar professores iniciantes com profissionais de longa carreira, de modo a não retratar a realidade (ESTADÃO, 2017).

Os conflitos identitários envolvendo a carreira, a dicotomia em relação à configuração social e a configuração escolar, e uma possível inadequação à dinâmica de consumo geram consequências para o mal-estar docente. De acordo com Picado (2007) entre as decorrências da angustia dos professores estão, o desconforto e insatisfação frente aos problemas da prática docente; Desenvolvimento de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal com o trabalho; Desejo de abandonar a docência; Esgotamento e cansaço físico permanente; Ansiedade, depressões, estresse e enfermidades mentais; e auto-depreciação e auto-culpabilização frente à incapacidade para melhorar a educação.

As visões de Bauman e Sennett sobre sociedade, capitalismo e trabalho, frente à realidade dos professores da Educação Básica no Brasil, refletem um panorama cada vez mais global e generalizado, o mal-estar. As inconstâncias passaram a ser a tônica da vida, e a nível profissional, afetando as mais diversas áreas.

Fonte: https://goo.gl/eCJuox

O não-ajustamento à dinâmica social atual fomentaria um sentimento de angústia generalizada, frente à impossibilidade de acompanhar as mudanças repentinas e bruscas, bem como a dinâmica capitalista atual de consumo extremo. O mal-estar docente frente a esses aspectos se torna um fator contribuinte para o aparecimento de transtornos e acometimentos psicológicos, minando a saúde mental desses profissionais da educação, causando consequências óbvias para a qualidade de ensino.

Políticas públicas que favoreçam a promoção de saúde mental para os professores da educação básica poderiam diminuir esse sentimento de mal-estar. A atuação de psicólogos nas escolas públicas com trabalhos voltados à saúde mental dos professores, mesmo que com diversas realidades, poderia ser fomentadora de autonomia e individuação para esses profissionais através de uma visão social-comunitária, uma vez que essa crise tem bases em aspectos sociais. Para tanto, é necessário que haja um engajamento com a realidade desses sujeitos, que há muito se encontram em situação de negligência perante o poder público.

REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Zahar, p. 7-55, 2009.

SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: impactos pessoais no capitalismo contemporâneo. São Paulo, Record: p.10-53, 2009.

HECKERT, A. L; ROCHA, M. L. A maquinaria escolar e os processos de regulamentação da vida. Psicologia & Sociedade 24 (n.spe): p. 85-93, 2012.

PICADO, L. ANSIEDADE, BURNOUT E ENGAGEMENT NOS PROFESSORES DO 1º CICLODO ENSINO BÁSICO: O Papel dos Esquemas Precoces Mal Adaptativos no Mal-Estar e no Bem-Estar dos Professores. Lisboa, Universidade de Lisboa: p. 61-73, 2007. Disponível em: < http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/970/1/18809_ulsd_re146_Ansiedade.pdf>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

G1 Presidente Prudente. Estresse é a principal causa de afastamento entre professores. Globo Comunicação e Participações S.A, 2015. Disponível em: <http://g1.globo.com/sp/presidente-prudente-regiao/noticia/2015/08/estresse-e-principal-causa-de-afastamento-entre-professores.html>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

Estadão. Professor ganha em média R$ 3.335, diz Inep. Grupo estado, 2017. Disponível em: <http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,professor-ganha-em-media-r-3335-diz-inep,70001854727>. Acesso em: 21 de mar de 2018.

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Boyhood – Da Infância à Juventude

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Com seis indicações ao OSCAR:

Melhor Filme, Melhor Diretor (Richard Linklater), Melhor Ator Coadjuvante (Ethan Hawke), Melhor Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette), Melhor Roteiro Original (Richard Linklater) e Melhor Edição. 

“As pessoas viajam para admirar a altura das montanhas, as imensas ondas dos mares, o longo percurso dos rios, o vasto domínio do oceano, o movimento circular das estrelas e, no entanto, elas passam por si mesmas sem se admirarem.”

Santo Agostinho, Confissão X [1]

Boyhood é uma sensível e arriscada experiência realizada por Richard Linklater.  O filme não é sustentado por um enredo com grandes reviravoltas ou espetaculares efeitos, nem tem um final que fecha todas as arestas, na verdade, não é possível identificar quais arestas devem ser fechadas, já que o filme, como a vida, é uma experiência contínua, sem delimitações precisas ou entendimento a priori de quando tudo acaba.

O que acompanhamos na tela são os 12 anos da vida de um garoto (dos 6 aos 18 anos), e as mudanças que o tempo pode provocar na relação dele com as pessoas e na sua percepção dos acontecimentos. O que torna esse filme tão singular é a maneira como Linklater o construiu, filmando as cenas em 12 anos, considerando as mudanças de cada personagem/ator, das mais visíveis, como o crescimento ou envelhecimento natural, até as mais sutis, como o sentido que cada sujeito tem do contexto vivido.

Linklater já tinha lidado com a questão da passagem do tempo na construção de outros filmes, vide a trilogia Before, que conta a história de um casal aos 23 (Antes do Amanhecer), 32 (Antes do Pôr-do-Sol) e aos 40 anos (Antes da Meia-Noite), acompanhando a idade cronológica dos atores. Em outras sagas também vimos os atores crescerem juntamente com os personagens, como é o caso de Harry Potter ou de algumas séries de TV. Mas em nenhuma dessas situações vimos isso acontecer em um espaço tão curto, ou seja, nas 3 horas de duração do filme.  E é a possibilidade de ver esses atores/personagens modificando-se no decorrer da história que a torna tão especial e um dos motivos que fez essa obra de Linklater ser tão aclamada.  Mas não foi só isso…

O tempo é uma das principais variáveis do filme, e para que sua passagem fosse assimilada de forma profunda, Linklater utilizou-se de músicas (Coldplay, Foo Fighter, Lady Gaga, Arcade Fire…), tecnologias (iMac G3, Xbox 360, Wii, Facebook, Facetime…), política (eleição do Obama), cinema/livros (Harry Potter, Toy Story, Star Wars, Homem Aranha…) e, especialmente, um roteiro que tornou o amadurecimento de cada pessoa do filme crível, sem exageros.

Mason: Não existe magia de verdade no mundo, não é?

 

Mason (o excelente Ellar Coltrane) é filho de pais separados (Patricia Arquette e Ethan Hawke, ambos em interpretações marcantes) e tem uma irmã mais velha (Lorelei Linklater). Sua mãe carrega a responsabilidade de criar sozinha duas crianças e ainda ter que fazer uma graduação e tentar uma nova profissão, enquanto isso, o pai dos meninos viaja pelo mundo, sem emprego ou local fixo. A passagem do tempo dá a mãe experiências desastrosas em dois relacionamentos com homens abusivos e alcóolatras, e torna o pai, aos poucos, um homem mais responsável, ainda que menos interessante. Mason é a nossa ligação com essa família e, através dos seus olhos, vamos solidificando a ideia de que a vida é por si só  um acontecimento extraordinário.

Mason: Então de que adianta?
Pai: O quê?
Mason: Não sei, tudo.
Pai: Tudo? De que adianta? Não faço ideia. Ninguém sabe. Estamos só vivendo, sabe? Pelo menos você está sentindo algo. Aproveite, isso passa. Você envelhece e não sente tanto, você cria resistência.

 

Há várias abordagens na psicologia que tenta explicar o desenvolvimento humano. Desde as teorias de Piaget até a vertente sócio-histórica de Vygotsky. O desenvolvimento pode ser equiparado, em um dado nível, a um processo de transformação. Segundo [2], as transformações concernentes à vida de uma pessoa estão relacionadas a um conjunto complexo de fatores: “a etapa da vida em que a pessoa se encontra; as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua existência transcorre; e as experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas”. É claro que essas experiências são intensificadas na infância e na adolescência, pois é nessa época que ocorrem as transformações físicas mais intensas, o que é refletido nas transformações psicológicas. Por isso, ao vermos as transformações dos pais e dos filhos no filme, verificamos que em um dado ponto, os adultos tornam-se mais presos a um padrão de comportamento, não há mudanças consistentes, enquanto Mason e a irmã estão no auge de intensas transformações.

Mason: Parece que todo mundo está em algum lugar intermediário. Sem realmente vivenciar nada.

O filme inicia-se com Mason, aos seis anos, observando o céu e a sensação que temos no decorrer do tempo é que, para ele, tudo parece ser transitório, mas há um sentido constante de apreciação da beleza da vida. E o desejo de apreender o momento, ainda que pareça que ele sabia que isso seja impossível, o faz iniciar-se na fotografia. Nas palavras de Cartier-Bresson, entendemos que “fotografar é prender a respiração quando todas as faculdades convergem para captar a realidade fugaz”. É essa inconstância da vida e, ao mesmo tempo, a ideia de que as coisas parecem girar em torno de algo incompreensível e, por isso mesmo, sem sentido, que dá um tom de melancolia à história. Diferente de uma ideia niilista, em que tudo tanto faz e ponto, parece permanecer em Mason uma sensação de que mesmo se todos os caminhos, de fato, não levem a nada, ainda é interessante fazer o percurso.

Nicole: Sabe quando dizem ‘aproveite o momento’? Acho que é ao contrário. É como se o momento nos aproveitasse.
Mason: Eu sei, é constante. Os momentos são… Parece que sempre é o agora.

[1] AGOSTINHO, Santo. Confissões, IN-CM, Lisboa, 2001. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/agostinho_de_hipona_confessiones_livros_vii_x_xi.pdf

[2] OLIVEIRA, Marta Kohl de. Ciclos de vida: algumas questões sobre a psicologia do adulto . Educação e Pesquisa, Brasil, v. 30, n. 2, p. 211-229, ago. 2004. ISSN 1678-4634. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27931/29703>. Acesso em: 12 Jan. 2015. doi:http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022004000200002.

Mais filmes indicados ao OSCAR 2015: http://ulbra-to.br/encena/categorias/oscar-2015


FICHA TÉCNICA DO FILME

BOYHOOD: DA INFÂNCIA À JUVENTUDE

Título Original: Boyhood
Direção: Richard Linklater
Roteiro: Richard Linklater
Elenco Principal: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Lorelei Linklater and Ethan Hawke
Ano: 2014

Alguns Prêmios:

Golden Globes: Melhor Filme – Drama, Melhor Direção, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
AFI Awards: Filme do ano.
Austin Film Critics Association: Melhor Direção, Melhor Filme, Atriz Coadjuvante (Patricia Arquette)
Berlin International Film Festival: Urso de Prata (Melhor Direção)
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