Desafios de uma estudante negra no curso de psicologia: (En)Cena entrevista Gabriela Fernandes

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Pensando na importância de discutir as pautas antirracistas e seus impactos no contexto acadêmico, em adesão à campanha #SaudeMentaldaPopulaçaoNegraImporta!, da Associação Nacional de Psicólogos Negros e Pesquisadores (ANPSINEP), o curso de Psicologia, do período de 15 de agosto a 15 de setembro, tem se dedicado à divulgação e produção de conteúdos voltados às questões raciais.

Dessa forma, entre os materiais produzidos, três entrevistas foram organizadas com mulheres negras que, de alguma forma, são vinculadas à psicologia. Levando em consideração a implicação do curso no tema, e pensando na importância de voltar a atenção para a situação da própria instituição no que tange às práticas antirracistas, a presente entrevista convidou a acadêmica Gabriela Fernandes Pereira Filha, de 23 anos, do oitavo período do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA, para expor suas percepções e vivências como estudante negra:

(En)Cena: Qual a sua percepção, como acadêmica de psicologia, a respeito da pauta racial no corpo teórico e científico da profissão? Acredita que essa problemática é contemplada nos estudos, pesquisas e artigos desenvolvidos pela ciência psicológica?

Gabriela: É fato que a pauta racial não é contemplada na academia. As teorias são brancas, ou seja, construídas para contemplar as pessoas brancas. As pessoas que estudam, publicam artigos e projetos voltados pras questões raciais são de fato estudantes e profissionais de psicologia negros. A academia não vê como relevante abordar esse assunto nas disciplinas. Geralmente pegam todos esses conteúdos voltados para questões sociais e jogam em uma ou duas matérias. Uma ou outra ação é feita e em épocas bem específicas, mas não com o intuito de promover algo que saia do discurso, mas para acalmar os animos de quem reivindica, método esse que na verdade é bem antigo, métodos de controle.

(En)Cena: Como você avalia, no atual contexto, a presença das pessoas negras na academia? Acredita que essas pessoas compõem uma parcela significativa na docência e corpo discente?

Gabriela: A presença das pessoas negras na academia não é nem de longe uma parcela significativa. Extremamente desproporcional em relação a presença de pessoas brancas. No nosso curso, por exemplo, a quantidade de docentes negros já diz muita coisa, são 2 professores negros para 11 brancos. Nossa presença na academia é muito importante, é uma marcação politica, mas o acesso a esse lugar é marcado por obstáculos estruturais muito fortes.

Fonte: encurtador.com.br/qyIRZ

(En)Cena: Quais dificuldades e impasses você, como mulher negra, vivenciou e ainda vivencia no percurso como estudante de psicologia? Quais são seus sentimentos a respeito disso?

Gabriela: Desde o começo, tenho um sentimento de não pertencimento. É um incômodo muito grande estar em um ambiente onde há poucos negros. Uma das minhas maiores dificuldades dentro disso é perceber que há uma neutralidade muito grande nesse ambiente acadêmico de psicologia e que é pensado de forma muito consciente com o intuito de uma manutenção dessas estratégias de poder para que nós de fato não nos sintamos bem nesse lugar.

(En)Cena: Na sua opinião, o debate racial recebe a devida atenção no espaço de ensino universitário, como um todo?

Gabriela: Não. Como eu havia citado antes, eventos muito pontuais sobre temáticas raciais e cartazes na semana da consciência negra pelos corredores da universidade, não constroem academicamente profissionais com compromisso social.

(En)Cena: No que tange à representatividade negra nos diversos espaços da profissão, como você avalia a situação da Psicologia, atualmente? As pessoas negras estão recebendo as posições de destaque que merecem como pesquisadoras e autoras da prática psicológica?

Gabriela: Nós temos já há algum tempo uma articulação desses profissionais e estudantes de psicologia para ocupar mais espaços dentro dessa profissão. Apesar disso, pessoas negras brilhantes não recebem o destaque que de fato merecem, apenas são chamadas quando o assunto é relacionado à temática racial. Há uma tendência em reduzir os conhecimentos desses profissionais apenas a esse ponto.

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Saúde Mental da população negra em foco: (En)Cena entrevista a Psicóloga Izabella Ferreira

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No período de 15 de agosto até 15 de setembro de 2020, o curso de Psicologia do Ceulp/Ulbra estará fazendo parte da campanha “Saúde Mental da População Negra Importa!”, promovida pela Articulação de Psicólogas (os) Negras (os) e Pesquisadoras (es) (ANPSINEP). Instigados por reivindicações que envolvem a saúde mental da população negra no âmbito clínico e também na saúde pública, o postal (En)Cena entrevista a psicóloga Izabella Ferreira dos Santos.

Izabella é graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Luterano de Palmas (Ceulp/Ulbra), é Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial e Mestre em Ciências da Saúde. Confira a entrevista a seguir:

(En) Cena – Qual a importância de uma psicologia antirracista?

Izabella Ferreira – É possível pensar em uma Psicologia que não seja antirracista? A Psicologia, que traz em seu escopo de premissas éticas a necessidade de contribuir no combate e eliminação de formas de opressão e violência, pode ser pensada a partir de uma perspectiva que ignora a existência de opressões de raça, gênero, classe? Quando penso sobre isso, percebo o quanto a luta antirracista deveria ser inerente à própria Psicologia, de modo que acharíamos inclusive redundante falar Psicologia antirracista. Porém, sabemos que a Psicologia já serviu muito a projetos excludentes e apartados de nossa realidade social e que hoje traz contribuições muito importantes, mas ainda incipientes frente a magnitude do racismo e dos agravos que ele acarreta à saúde mental das pessoas. O Brasil possui uma população formada em sua maioria por pessoas negras. A população negra vive atravessada por vivências de racismo que infelizmente estruturam a nossa sociedade. Quanto sofrimento físico e mental é resultante desse processo? A Psicologia não pode se omitir frente a esses dados. Precisa estar comprometida com um projeto de enfrentamento ao racismo, pois este causa sofrimento e adoecimento psíquico. Não consigo pensar uma Psicologia que não esteja comprometida com a temática das relações raciais e no combate ávido ao racismo.

(En) Cena – Como é ser uma psicóloga negra diante de um país onde o racismo é velado?

Izabella Ferreira – É desafiador e cansativo! O racismo faz com que as pessoas pressuponham que não somos intelectualmente capazes ou que somos menos capazes que pessoas brancas, por exemplo. Isso faz com que pessoas negras sejam direta ou indiretamente questionadas quando ocupam espaços que são entendidos como legitimamente de pessoas brancas. Algumas profissões, por exemplo, são vistas como legitimamente destinadas a pessoas negras, a saber: profissões que exigem baixo nível de instrução. A Psicologia é uma profissão ainda muito elitista e predominantemente branca. Pensam que esse espaço não é nosso e, logo, passível de ser questionado. Enquanto psicóloga negra percebo em minha trajetória profissional muitas reações de surpresa e/ ou incredulidade quando digo que sou psicóloga. Acompanhado dessa surpresa percebo muitas vezes uma espécie de regime de suspeição quanto à minha capacidade técnica enquanto profissional. Observo o quanto isso me demanda emocionalmente por que estou sempre precisando “provar” que sou capaz. Isso marcou e marca toda a minha trajetória acadêmica e profissional. Sempre senti que precisava me esforçar para ser muito boa no que faço, por que a minha cor chega primeiro e o racismo faz com que as pessoas a leiam como sinônimo de baixa capacidade intelectual. Tudo isso não é dito de maneira direta, pois no Brasil o racismo opera de maneira bastante velada.

Fonte: encurtador.com.br/dprYZ

(En) Cena – Durante sua formação, foi abordada a saúde mental de pessoas negras?

Izabella Ferreira – Durante os cinco anos de graduação, eu só me recordo de uma vez onde o tema foi abordado numa aula de psicologia social. Será que apenas uma aula ao longo de cinco anos de curso seria capaz de contemplar toda a amplitude e complexidade do tema Psicologia e relações raciais e fundamentar a atuação de futuras/os psicólogas/os frente ao cuidado à saúde mental da população negra? É razoável pensar em profissionais que se formam e apresentam em sua prática certa miopia (quiçá, cegueira total) frente às questões raciais? Este é um tema que não será esgotado em uma aula e/ ou em uma única disciplina, mas precisa perpassar toda a grade curricular da formação. Ouço muitos relatos de pessoas que tiveram experiências em psicoterapia onde psicólogas/ os minimizavam, anulavam ou negavam seus relatos e sofrimentos decorrentes do racismo. Isso significa acentuar o sofrimento e a Psicologia precisa atuar para combatê-lo, não reproduzi-lo.

(En) Cena – Como o racismo irá afetar a saúde mental dessa população?

Izabella Ferreira – O racismo afeta diariamente a vida das pessoas negras. São várias vivências de violência sendo orquestradas historicamente pelo racismo na sociedade brasileira. A população negra é maioria dentre a população brasileira, porém é a que tem menos acesso à saúde, educação, trabalho e renda, por exemplo. Isso torna essa população mais vulnerável a diversas opressões e violências. A intensidade do estresse vivido cotidianamente por essas pessoas marca também a intensidade dos agravos. A subjetivação das pessoas negras é permeada por conteúdos apresentados desde a tenra idade e que reflete uma visão onde esses sujeitos se entendem como inferiores. Isso afeta diretamente a autoestima e autoconfiança das pessoas negras. Além disso, segundo a Política Nacional de Saúde Integral à População Negra, entre os agravos e doenças prevalentes nesta população estão reconhecidamente a depressão, o estresse, sofrimento psíquico e transtornos mentais decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas. Outro dado alarmante é que o número de suicídios entre jovens negros tem aumentado. Segundo a cartilha Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016, “a proporção de suicídios entre negros aumentou em comparação às demais raças/ cores”. Esta mesma pesquisa identificou o racismo como determinante de risco para suicídio. O que estes dados revelam é a cruel e inegável extensão das conseqüências do racismo à saúde mental da população negra.

(En) Cena – De que maneira o racismo no Brasil se mostra mais difícil de ser combatido?

Izabella Ferreira – No Brasil, ele se dá de maneira velada. Isso significa dizer que ele pode ser manifestado de maneiras não explícitas, o que dificulta sua identificação e reconhecimento. No nosso país, as pessoas ainda reforçam o mito da democracia racial que passaria a imagem de que vivemos harmoniosamente numa diversidade étnico-racial e sem discriminações. Assim, é freqüente ouvir as pessoas dizendo que os Estados Unidos são um país racista, que lá sim os negros sofrem racismo, revelando uma visão distante do racismo enquanto problema no Brasil. O racismo está tão implícito que muitas pessoas negras chegam a duvidar se realmente vivenciaram uma situação de racismo, bem como se podem fazer alguma coisa a respeito. O racismo no Brasil pode vir em forma de ofensa travestida de falso elogio quando, por exemplo, nos dizem que somos “da cor do pecado”. Dadas as características mencionadas acima, é muitas vezes difícil identificar o racismo contido em tais falas e quando identificadas muitas pessoas protestam dizendo “hoje em dia não se pode falar nada” ou “hoje em dia tudo é racismo”. Quando o racismo é negado ele se torna ainda mais fácil de ser combatido, pois como vamos combater algo que não é reconhecido como um problema? Algo que não existe? Ele precisa ser identificado e nomeado. Negá-lo faz parte da própria estrutura racista que apenas endossa tais violências.

Fonte: encurtador.com.br/oSWY9

(En) Cena – Além de ser antirracista, como a Psicologia pode contribuir com a saúde mental da população negra?

Izabella Ferreira – Uma Psicologia que engloba em seu projeto político uma postura de fato antirracista já direciona todos os seus caminhos rumo ao enfrentamento ao racismo, bem como suas conseqüências à saúde mental da população negra. Assim, a Psicologia contribui quando forma profissionais capacitados/as para identificar e cuidar dos agravos à saúde mental decorrentes do racismo; produz e divulga conhecimento em torno da Psicologia e relações raciais; atua juntamente com órgãos, instituições e sociedade civil na busca do enfrentamento ao racismo, atuando também diretamente no controle social de tais questões.

(En) Cena – Em nosso país, há políticas que englobam a saúde mental de pessoas negras? Se sim, acredita que são devidamente aplicadas?

Izabella Ferreira –O SUS é a principal política pública que operacionaliza o acesso de todas as pessoas à saúde. Porém, como disse anteriormente, as pessoas negras são as que menos têm acesso a tais serviços. É também nos próprios serviços de saúde que muitas situações de racismo ocorrem (racismo institucional), fragilizando ainda mais aqueles que necessitam de cuidados em saúde. Também foi falado como alguns agravos e doenças são prevalentes na população negra, demandando ações específicas para essa população. Então, em 2007 é implantada a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra que busca combater as vulnerabilidades raciais em saúde, buscando a promoção da saúde integral da população negra, bem como a melhoria das condições de saúde dessa população. A PNSIPN também traz como objetivo fundamental o combate ao racismo. Tais políticas possuem muitas fragilidades no tocante a sua operacionalização. O momento político que estamos vivendo no país acentua tais fragilidades, pois não reconhece a saúde da população negra como uma prioridade. Vivemos um período de retrocesso e de perda de direitos. Precisamos sempre exigir que as políticas sejam cumpridas, exercendo nosso papel enquanto controle social mesmo diante de contextos temerosos como o que vivemos. Integro um coletivo feminista de mulheres negras do TO e na edição do Julho das Pretas realizada esse ano, nós juntamente com vários outros movimentos sociais do Estado elaboramos notas de posicionamento cobrando ações e serviços voltados para a população negra. Dentre as notas, foi elaborada uma nota que versava sobre a saúde mental das mulheres negras que foi direcionada em forma de ofício para os poderes públicos responderem e tomarem as devidas providências. Tais ações de mobilização são importantes para que acompanhemos e cobremos melhores condições de vida e saúde para nossa população.

(En) Cena – Me conta a sua percepção perante as constantes notícias de violência policial exibidas nas redes sociais, TV e os protestos que se iniciaram nos EUA e continuaram no Brasil.

Izabella Ferreira – As notícias e cenas de violência contra pessoas negras são sempre muito impactantes e dolorosas para mim. Causam indignação, raiva, revolta e tristeza.  E é exatamente nesses momentos que o racismo assume sua forma mais explícita e cruel. Não são atos pontuais, são rotineiros e estão sendo cada vez mais registrados e divulgados. No Brasil, falamos de um genocídio da população negra que denuncia que os corpos negros são alvo constante de violência e morte. A polícia brasileira é considerada a mais letal do mundo. Os atos que sucederam após a morte do americano George Floyd foram uma resposta exausta de quem vive com medo e prejudicado em seus direitos mais fundamentais. Aqui no Brasil, um adolescente foi morto quando brincava em sua própria casa pela polícia no Rio de Janeiro. Estas mortes acontecem o tempo todo. São vidas interrompidas, famílias ceifadas pelo braço do Estado. A população negra nunca parou de lutar pelos seus direitos. Não há descanso para nós, pois o tempo todo tentam negar nossa história, nossa identidade, nossa cultura, nossos conhecimentos e nossa existência.

Fonte: encurtador.com.br/abcW8
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