‘Você’: uma perspectiva Sistêmica das relações

Compartilhe este conteúdo:

Série exalta complexidade, instabilidade e intersubjetividade do ser humano

Amar e ser amado! A grande máxima da vida de milhares de pessoas. ‘Você’, série recém-lançada pela Netflix, traz um enredo que flutua em torno da busca incessante de Joe por alguém que o ame assim como ele ama. E como ele ama? De uma forma uma tanto intensa e assassina!

Vários personagens estão envolvidos nessa trama, no entanto, essa análise se atentará a três principais: Joe, Beck e Peach.

A história de amor construída por Joe – Joe trabalha numa livraria que herdou de seu acolhedor, por ter sido ele abandonado pelos seus pais que eram adictos. Em um dia comum de trabalho, Beck adentra a livraria e os dois se conhecem. Esse primeiro encontro não rende muita esperança para ele, já que Beck deixa suas intenções soltas no ar.

E o que Joe faz? Segue a vida normalmente e espera ver se o tempo colabora com esse romance? Não mesmo! Ele determina que esse romance irá acontecer e para isso começa procurando por ela nas redes sociais e descobrindo seu endereço, para então passar a espiá-la todos os dias pelas janelas de sua casa.

De início Joe descobre que ela tem uma relação com um homem chamado Bengi, que na verdade é um completo mulherengo que não sente nada por Beck. Vendo o quão ruim era esse relacionamento para ela, o que Joe faz? Mata Bengi, porque para ele é totalmente compreensivo que ele tire esse homem da vida dela, já que ele só piora as coisas e se coloca como um obstáculo para seu possível namoro.

Fonte: encurtador.com.br/cqLQS

Na cabeça de Goldberg (Joe) facilitar os acontecimentos da vida de Beck para que eles possam ter um relacionamento sem nenhum impedimento ou complicação, é simples e o correto a se fazer. E ele realmente consegue estar na hora certa e no local certo para que o namoro aconteça, e ele acontece.

É incrível pensar a partir dessa ótica, como seria se pudéssemos controlar todas as ações que envolvessem as pessoas que “amamos”, com o intuito de nunca perdermos elas. É como se realmente tivéssemos o poder de controlar a vida, fazendo com que tudo aquilo que quiséssemos acontecesse, e tudo que não gostássemos não acontecesse mais. Essa habilidade traria muita segurança para a pessoa dotada, já que nada sairia do seu comando. Entretanto, o que Joe não sabia era que mesmo que ele tentasse controlar as coisas, as coisas não se tornariam constantes e estáveis, porque afinal o indivíduo é um ser Complexo, Instável e Intersubjetivo (VASCONCELLOS, 2002).  

A seguir uma analogia será feita entre os três personagens citados no início e os três pilares do Pensamento Sistêmico Novo-paradigmático trazido por Maria José Esteves de Vasconcellos.

Fonte: encurtador.com.br/hst14

Joe e a ‘Complexidade’ – Joe sabe muito bem o que quer desde o início, ficar com Beck acima de qualquer coisa e fazer todo o possível por ela. É por isso que a partir do momento em que eles se conhecem, ela passa a ser o único foco da vida dele, e é para esse foco que ele direciona toda a sua atenção e importância.

Dessa forma, ele não estabelece outros tipos de relacionamentos ou de hobies. E a sua visão geral de felicidade na vida, está totalmente atrelada a um relacionamento perfeito com Beck.

Joe age totalmente de forma oposta ao olhar da complexidade sobre a vida. A dimensão da complexidade da vida traz que é necessário entendermos que pensar a existência de maneira complexa, é ampliar o foco de observação, percebendo que um único fenômeno isolado nunca será livre das mais variadas influências (VASCONCELLOS, 2002). Portanto, uma tentativa de manter um relacionamento livre de complicações ou estímulos de outras pessoas, é no mínimo uma tentativa fracassada e ingênua de estabelecer uma ordem, o que Joe descobrirá apenas na prática.

A complexidade implica no conhecimento de que múltiplos sistemas estão em contato uns com os outros, e se afetam mutuamente. Esses sistemas são definidos como “um conjunto de componentes em estado de interação” (VASCONCELLOS, 2002, pág. 198). Na vida de Beck existiam vários sistemas, que eram suas amigas, sua vida de escritora, seus flertes no Tinder, seu psicoterapeuta, seu pai adiccto, seus próprios comportamentos e dilemas existenciais, e esses sistemas influenciavam sua relação com Joe e, portanto, de acordo com a visão reducionista de funcionamento vital dele, todos esses sistemas deveriam sumir e não os atrapalharem nunca mais.

Fonte: encurtador.com.br/ftzGO

Beck: a ‘Instável’ – Beck é a personificação da instabilidade. Formada em Literatura, egressa num programa de mestrado, residente em uma casa fornecida pela universidade, professora de Yoga, amiga de três garotas ricas, interessada em homens instáveis e voláteis, aventureira no Tinder, escritora. É a garota que em um dia sabe tudo o que quer e no outro duvida se realmente quer aquilo, uma hora pensa que consegue lidar com sua vida, outra hora se sente totalmente incapaz. Beck é a realidade do jovem nova-iorquino de classe média, e porque não dizer da maioria dos jovens da geração millenium.

A instabilidade da vida se compara exatamente a forma como Beck vive, já que a dimensão da instabilidade retrata o quão imprevisível e incontrolável os acontecimentos podem ser. Apresentando ainda como devemos enxergar essa desordem que é viver, como normal, já que é inevitável que as coisas mudem e evoluam independente se muitas vezes achamos estar no controle (VASCONCELLOS, 2002).

E como já deu pra perceber, é óbvio que Beck daria “muito trabalho” para Joe. É possível notar na maioria das cenas de desentendimento do casal que Beck era a quem sempre saía transtornada e sem ver solução para os conflitos, e Joe era o que sempre tinha uma solução para normalizar a situação. Essa diferença de paradigmas, ou seja, de maneiras de pensar (VASCONCELLOS, 2002), ia desde escolher a comida para o jantar, escolher entre sair com as amigas ou sair apenas o casal, decidir sobre a hora certa de escrever ou não. Para Joe todas essas decisões eram simples de serem feitas, mas para Beck eram difíceis de serem tomadas, e quando eram, podiam e mudavam facilmente. Beck era a tempestade impetuosa no mar calmo da vida de Joe.

Fonte: encurtador.com.br/ryIV4

Peach: a ‘Intersubjetiva’ – Peach era o centro da complicação do relacionamento do casal antagônico. A amiga de Beck que queria a todo custo separá-la de Joe. Peach vinha de uma família rica, tinha glamour, fama, viagens, roupas bonitas e caras, beleza, casa luxuosa, mas não tinha relações profundas com ninguém, e foi na amizade com Beck que ela estabeleceu a sua intersubjetividade e conseguiu se ver parte de um processo de intimidade na relação com o outro.

A intersubjetividade coloca as interações e as relações entre os indivíduos como construtora da experiência da realidade, é através dela que tudo pode existir. O indivíduo quando sabe que sua intersubjetividade nasce na interação com o outro, se percebe como parte de algo e entende que tudo pode ser coconstruído nessa relação (VASCONCELLOS, 2002).

E o que seria essa coconstrução? A coconstrução é a capacidade de unir aquilo que é de sua existência com a existência do outro, sem o estabelecimento de qual experiência é correta ou não, porque na verdade qualquer uma delas é válida partindo do princípio da intersubjetividade (VASCONCELLOS, 2002).

Mas é importante ressaltar que essa coconstrução não parte do pressuposto de algo positivo ou negativo, mas sim de um reconhecimento da realidade do outro como importante e válida também para a sua realidade. Isso é o que acontece com Peach e Beck, já que apesar de o relacionamento delas ser marcado por uma toxicidade e instabilidade, as duas em diversos momentos aprendem a serem e existirem uma com a outra.  

Fonte: encurtador.com.br/iACEL

‘Você’ e a performance do Pensamento Sistêmico – Joe, Beck e Peach, o que eles têm em comum? A busca pelo amor. E o que acontece nesse meio tempo de 10 episódios, é o que o Pensamento Sistêmico defende. Dez episódios que nos mostram o quanto a visão do que é amor para cada um deles é totalmente diferenciada. Cada um viveu e experimentou as experiências românticas a sua maneira, acreditando ser a maneira como eles experimentaram a única correta e aceitável.

No entanto, isso não é possível a partir do instante em que você percebe e leva em consideração as três dimensões da teoria Sistêmica: Complexidade, Instabilidade e Intersubjetividade. Maria José Esteves de Vasconcellos diz que “(…) se não há leis definitivas sobre a realidade, se só temos afirmações consensuais, não teremos mais as expectativas da previsibilidade e controlabilidade. E encontrar diferentes afirmações nos levará a perguntar pelas condições, pelos contextos em que foram feitas (2002, pág. 152).”

Fonte: encurtador.com.br/pyDLR

É aqui que você deve se perguntar, em quais condições e em quais contextos cada personagem viveu? O que os levou a ver e construir as formas de amar da maneira como elas são apresentadas na série. Talvez aí você entenda e coconstrua junto com os personagens, ou talvez não. Pode ser que de acordo com a sua experiência de vida, nem mesmo esse texto inteiro faça o menor sentido para você. Porque é realmente disso que se trata, da complexidade, da instabilidade e da intersubjetividade do ser humano, do ser ‘VOCÊ’!

REFERÊNCIA:
VASCONCELLOS, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O Novo Paradigma da Ciência. Campinas: Papirus, 2002. 272 p.

Compartilhe este conteúdo:

No dia em que os capítulos fazem sentido

Compartilhe este conteúdo:

 

 

Quando as palavras não conseguirem descrever o que penso, procurarei olhar para você. É que olhando eu posso adicionar mais detalhes que ajudarão compor meu discurso, construindo e desconstruindo algumas convicções quase inquebrantáveis. Mesmo que, no fim, eu não fale, quero frutear minhas teorias.

Quando brigar comigo, ficarei lhe olhando. Reunirei seu bramido, trejeito, tom e disposição. Assim, conseguirei entender a intensidade das suas limitações e, ao mesmo tempo, responder suas ansiedades. Além das observações, as quais muito me acrescentarão, o outro benefício será me divertir com essa zanga. Os efeitos de sua braveza mostram belezas, aí, escondidas.

Quando a tristeza tomar destaque e comandar seu eu, olharei para você. Sentirei todo o seu pesar percorrendo os diversos pedaços seus. Compreenderei até onde consegue encarar e suportar isso. E partir desse instante, encontrarei planos que lhe livrarão de tal incômodo.

Quando sorrir para o mundo, adivinha… Os meus olhos firmarão em você. Isso será o meu recreio. Uma das forças que manterei guardadas em mim. Acreditarei, fielmente, que essa ação será uma das minúsculas coisas mais belas que o mundo tem para oferecer. Desculpe-me, mas preciso desse momento na minha vida. Permita-me, por favor!

Quando você quiser a solidão como companhia, olharei para o céu, e com os olhos firmes e atentos, desenharei seu rosto e o de tantos outros que poderiam formar o seu grupo, a sua base e alegria. Já que, no momento, prefere a solidão, eu, por outro lado, não prefiro, não. Quero, imaginariamente, me cobrir de relações, e que você “esteja” lá, para lhe observar.

Destaco a presença de outras pessoas no meio, também, porque não quero estudar (olhar), somente, você. Quero olhar para o mundo. Quero entender como ele funciona. Tenho preferido à profundidade, e nada mais justo que escolher o “olhar” como meio para tantas aprendizagens. Desse modo, auxílio, penetro na vida dos outros e, de certo modo, entendo e invento uma cidade. A nossa cidade. Aquela em que rabiscaremos as nossas flores, casas, camas, cartas, diversões…

Essas relações farão com que cristalizemos as nossas características. Eu quero mais que lhe olhar. Quero entender como as pessoas se deslocam. Partindo desse entendimento, poderei, de tempos em tempos, atualizar essa cidade. Então, mais uma vez, permita-me olhar para você. Para os outros. Ver os mundos, as casas… e como chegar (se é que quero o fim dessa viagem).

Olha, eu não costumava olhar nos olhos. Distanciava-me da sensibilidade e ocupava mais de mim nos espaços da ignorância. Quando olho nos seus olhos, eu não invado sua intimidade. Fique tranquila com isso! Na verdade, é totalmente o oposto. Quando olho para você, eu descubro mais de mim. Vou passeando nos canteiros onde colhi as raízes do meu medo, do meu fracasso, do meu ressentimento, do meu nervosismo, da minha falta de instrução… Quando olho para você, recebo sua ajuda. Mesmo que, escancaradamente, invisível.

Entende, agora, por que preciso lhe olhar? Ao olhar, planto raízes melhores, mais cheirosas e vistosas. Essa temporada aguçou meus sentidos. Tudo porque passei a olhar. Pude sentir o verdadeiro cheiro podre de alguns lugares, tatear mais crostas que, a princípio, aparentavam ser de peles e paredes cuidadas. Os barulhões em meus ouvidos vinham, agora, de canções altas, porém de desordenamentos ordenados. Pude sentir o verdadeiro gosto dos cafés e chás. Alimentei-me bem. Foi tempo de revelações, entende? Imundície. Essa sensibilidade em descobrir se deve aos investimentos que fiz na visão. É preciso exercitar os olhos e alma. Agora sei olhar.

Quero que você me olhe, também. Estude-me. Estude-se mais. O mundo, se for bem olhado, mostra coisas lindas. Se não soubermos olhar, diariamente faremos desserviços para alma. Aproveito dessa descoberta para olhar um pouquinho melhor hoje. Se Deus me permitir, amanhã. E depois… Meus olhos são belos e imensos demais para permanecerem fechados, distraídos ou reprimidos. Fechar os olhos, agora, só se for para ficar espiando no meu outro plano (nos sonhos).

 

Compartilhe este conteúdo: