O Apanhador no Campo de Centeio

The Catcher in the Rye II by Dheeraji1

“A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, começa a sentir saudade de todo mundo.” (Holden Caulfield)

“O apanhador no campo de centeio”, publicado em 1951, apresenta alguns momentos da vida de Holden Caulfield, um menino de 16 anos, que foi expulso de um colégio de elite e resolveu perambular pelas ruas de Nova Iorque por três dias. Desde sua publicação, tanto o livro quanto seu autor, J. D. Salinger, adquiriu um status de lenda. Talvez porque Salinger tenha sido ousado o bastante para apresentar, em primeira pessoa, a linguagem e as inquietações de um adolescente. E se atualmente esse nicho de mercado editorial é o mais rentável, na década de 50 do século XX, ainda era incomum um livro cujo personagem principal fosse alguém dessa idade e, principalmente, que falasse como o garoto do lado, sem construções textuais requintadas.

No ano de sua publicação, apesar do livro ser aclamado pela crítica e ter ficado por mais de 30 semanas na lista de Best Sellers do New York Times, foi também depreciado com igual vigor.  Diretores de colégio, religiosos e pais teciam críticas sobre o vasto teor de “imoralidades e perversões” que compunha o livro. Inclusive, o livro do Salinger foi, por muito tempo, proibido em alguns países e em várias escolas. Mas, um clássico não se faz apenas com boas críticas, nasce especialmente através de sua capacidade em gerar provocações e debates.

J. D. Salinger

Além do fato do Salinger se tornar um recluso pouco tempo depois da publicação do livro e de não permitir que este fosse levado ao cinema, apesar das infindáveis e rentáveis propostas que recebeu durante toda a sua vida, a lenda em torno livro se intensificou por conta de alguns fatos históricos. O evento mais conhecido deles foi o assassinato do John Lennon [1]. Na noite em que atirou em Lennon, o assassino Mark David Chapman foi encontrado com uma cópia do livro. Nessa cópia, ele escreveu: “Esta é a minha declaração” e assinou com o nome “Holden Caulfield”.

Talvez seja impossível compreender as estranhas associações que a mente doente de Chapman fez ao acreditar que assassinar John Lennon seria uma forma de libertá-lo do mundo mesquinho que o cercava. Uma associação que se tornou ainda mais doentia quando ele se comparou ao personagem do livro, por achar que o distanciamento que Holden queria do mundo dos adultos seria similar ao distanciamento que ele, Chapman, estava propiciando ao seu ídolo.

“Não importa que seja uma despedida ruim ou triste, mas, quando saio de um lugar, gosto de saber que estou dando o fora. Se a gente não sabe, se sente pior ainda.” (p. 9).

Escrever sobre a personalidade de Holden é uma forma de se tornar o tipo de pessoa que ele odiava. Ou seja, aquele tipo de pessoa que cria um contexto e assume um conjunto de verdades sobre o mundo e as pessoas. Em vários momentos do livro, ele afirma sua aversão a isso: “ninguém nunca repara em coisa nenhuma” (p. 14).  Embora haja certo exagero em várias de suas afirmações, explicitado pelo uso excessivo dos quantificadores universais (p. ex.: todo, nenhum, qualquer), em alguns aspectos do seu discurso isso soa verdadeiro, pois, as construções que fazemos do mundo parecem sempre vir acompanhadas pelos pré-conceitos que erigimos no decorrer de nossas vidas.

“…a gente se sentia como se estivesse desaparecendo toda vez que atravessava uma estrada.” (p. 10)

Ao ser expulso do colégio elitizado no qual estava, Holden resolveu antecipar sua saída em três dias porque se sentia cada vez mais só e oprimido, de forma que ficar ali poderia resultar em mais confusão, especialmente quando ele soube que a menina que “pensava gostar” tinha saído com seu companheiro de quarto. Mas, estranhamente, abandonar aquilo tornava-o ainda mais fraco, era como se a renúncia daquele tipo de vida fizesse com que ele desaparecesse, já que a ida ao mundo sonhado por ele parecia impossível.

“Allie, não me deixa desaparecer.” ( p. 191)

A solidão e a depressão que acompanham Holden podem ter relação, especialmente, com a morte prematura do seu irmão Allie, uma espécie de “menino perfeito”. Para ele, Allie era inteligente, sensível e bom, além disso, sua morte por leucemia aos 11 anos fez com que se tornasse um menino eterno. A partir disso, esse passou a ser o status ideal para uma vida sem hipocrisias, responsabilidades, moralismos e obrigações sociais. Allie era singular como toda criança, logo diferente da homogeneidade que Holden via ao observar o cotidiano dos adultos.

“Estou sempre dizendo ‘Muito prazer em conhecê-los’ para alguém que não tenho nenhum prazer em conhecer. Mas a gente tem que fazer essas coisas para seguir vivendo.” (p. 89)

O episódio da morte do irmão foi o fato que o levou ao psicanalista pela primeira vez. Além disso, a ida do irmão mais velho, um escritor famoso, para Hollywood (que ele considerava um ambiente abominável) transformou-se no estopim para a criação de uma realidade alternativa na mente dele. Daí começou a busca por um mundo que só existia na infância.

Ainda que Holden parecesse odiar todas as pessoas, tinha uma sensibilidade rara para entender o sofrimento de cada individuo que o rodeava, mesmo que fosse alguém que ele não respeitasse intelectualmente, ou cuja vida fosse superficial demais. Havia sempre um dualismo quando se tratava de sentimentos. Assim, o menino aparentemente egoísta, que supervalorizava seus problemas (muita gente acredita que adolescentes são mesmo assim), era capaz de olhar com atenção o homem velho que carregava malas e esperava as gorjetas e refletir sobre sua vida e achar que havia algo de muito errado num mundo em que um velho tivesse que continuar a fazer esse tipo de trabalho.

“Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder. Talvez por isso eu seja em parte covarde.” ( p. 91)

A covardia que Holden pensava ter parece estar associada à sua vontade de permanecer vivo, mesmo que em sua mente uma trajetória sombria e contrária a esse objetivo parecesse se formar. Então, enquanto ele pensa que é covarde porque nada parece ser importante suficiente que mereça sua luta, o fato dele fazer sua jornada pelos caminhos que ama na cidade de Nova Iorque faz com que seja desafiado a encarar o que estaria deixando para trás e repensar as suas aparentes decisões.

“Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja.” (p. 121)

O encontro de Holden com sua irmã mais nova, Phoebe, fez com que novas inquietações viessem à tona. A principal delas parecia ter relação com seu medo e, de certa forma, sua raiva nas implicações resultantes do processo de tornar-se um adulto. Assim como o carrossel que tanto Phoebe amava permanecia sempre da mesma forma, em um círculo vicioso e eterno, Holden também gostaria de poder seguir uma trajetória assim, sem mudanças, sem perigos. Ou seja, sem ter que se tornar aquilo que ele costumava desprezar e que inevitavelmente seria o caminho mais provável.

Algumas das coisas que ele mais amava permaneceriam, segundo ele, da mesma forma, como era o caso do seu irmão Allie e do Museu de História Natural.

“Mas a melhor coisa do museu é que nada lá parecia mudar de posição. Ninguém se mexia… Ninguém seria diferente. A única coisa diferente seríamos nós.” (p. 120)

Essa diferença nas pessoas é que era difícil para ele suportar. E não era uma diferença apenas associada ao passar do tempo, ou seja, à idade, mas a acontecimentos. A força que alguns acontecimentos tem de nos moldar e de modificar quem somos muitas vezes de forma imperativa e implacável.

Dave White Paintings

“… fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num imenso campo de centeio. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto – quer dizer, ninguém grande – a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer.” (p. 168)

Voltando ao Mark David Chapman e sua obsessão pelo Lennon e pelo livro… Eu, particularmente, não acredito que uma obra (seja ela um filme, um jogo ou um livro) possa desencadear um crime. Sou mais propensa a acreditar que tais situações podem apenas justificar desejos que já estão presentes no indivíduo, ainda que de forma subconsciente, seja por alguma patologia, seja por um desvio de personalidade não identificável. Talvez esses desejos latentes fizeram com que Chapman se colocasse no papel do Apanhador no Campo de Centeio. Uma forma de criar uma representação similar à criada por Holden, que talvez pensasse que sua tarefa ideal seria livrar as crianças do abismo que era se tornar adulto.

Catcher in the Rye by an95dy

“Não se pode achar nunca um lugar quieto e gostoso, porque não existe nenhum. A gente pode pensar que existe, mas, quando se chega lá e está completamente distraído, alguém entra escondido e escreve ‘FODA-SE’.” (p. 197)

A questão é que o campo de centeio repleto de crianças, uma espécie de Terra do Nunca, só existia na fantasia do Holden, e ele parecia ter consciência disso, só não tinha forças para aceitar sem luta o que o aguardava depois da adolescência. Um de seus professores disse a ele durante sua jornada: “… você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano” ( p. 184). E ele parece ter entendido o que significavam essas palavras, só que estava cansado e confuso demais para encontrar um meio de equilíbrio entre o que entende de forma racional e aquilo que algumas emoções provocam em seus sentidos.

“Bom mesmo é o livro que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor.” (p. 23).

Acho que o carinho que tanta gente tem por esse livro em vários cantos do mundo tem relação com a cumplicidade que criamos com o Holden ao acompanhar sua jornada. E isso acontece, quem sabe, pelo adolescente que somos ou fomos, pelas dúvidas que temos ou tivemos, mas, especialmente, pelo medo que carregamos conosco em nossa sempre tão breve vida.

 

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO

Título Original:The Catcher in the Rye
Autor: J. D. Salinger
Tradução: Álvaro Alencar, Antônio Rocha e Jório Dauster
Editora: Editora do Autor
Edição: 18ª.
Páginas: 203
Ano: 2012

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.