A loucura tende acabar?

Compartilhe este conteúdo:

Entrevista¹ da psicóloga, escritora e professora Elisabeth Roudinesco ao programa Roda Viva da TV Cultura em 31 de maio de 1999.


Na entrevista cedida ao programa Roda Viva pela psicóloga, escritora e professora da École des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris, Elisabeth Roudinesco, foram apontados diversos temas sobre a Psicanálise, a Psicologia e alguns dos seus maiores expoentes (Lacan e Freud). Como a entrevista foi realizada em 1999, as perguntas tiveram como foco o final do século. No inicio da entrevista, Roudinesco já diz que o final do século XX está marcado pela depressão, assim como o final do século XIX foi marcado pela histeria. Segundo suas palavras, a “normalização” é o cerne desse final de século, especialmente a tendência a uma homogeneização perigosa. Isso é visível depois do fim do comunismo e a massificação política e econômica estimulada por uma globalização em seu estágio mais latente e pelo poderio econômico dos EUA. Quando questionada sobre o quão revolucionário foi o pensamento de Freud, ela disse que “ele não queria mudar o homem, mas compreendê-lo”. Isso não era revolucionário, mas novo. Um novo que permeava muitas áreas e estava presente em diversas demonstrações artísticas, como na poesia de Rimbaud e na sua constatação de que o “eu é um outro”.

Um dos entrevistadores perguntou o “quão subversivo é o pensamento de Lacan?”, já que no livro biográfico sobre ele (escrito por ela) essa questão era pungente. Roudinesco diz que Lacan, em sua vida pessoal, foi um conservador, vivia em uma desilusão permanente, mas foi responsável por uma releitura filosófica da obra de Freud. Para Lacan, não podia existir Psicanálise em países sob o regime do totalitarismo, porque “não se pode associar livremente quando não se tem liberdade de expressão”. O interessante é que há duas vertentes para os caminhos do entendimento (ao menos, filosófico) do homem, uma com uma linha mais sistemática, como apregoava os estruturalistas (Focault é um exemplo disso) e outra mais livre (tendo em Sartre um expoente). Para Lacan, a Psicanálise é uma filosofia da liberdade e ele diz isso em pleno advento dos estudos biológicos do homem.

A era da psicofarmacologia, de certa forma, provocou um descrédito em muitos aspectos da Psicanálise, mas em contrapartida, não conseguiu refutá-la. Isso porque mais do que uma máquina organicamente estruturada, o homem é uma polifonia de vozes pouco compreendida. O interessante é que a Psicanálise pode ser considerada também uma filosofia do consciente, já que é este que valida (ou ao menos suscita) a existência do inconsciente. Se no consciente estivessem todas as respostas, não haveria necessidade da definição do inconsciente.

Uma questão levantada por alguns dos entrevistadores foi o embate entre a Psicanálise e as Neurociências. Sobre isso, foi citado pela entrevistada que há um reducionismo na compreensão do ser humano, assim o estudo é muitas vezes conduzido pelo viés exclusivo do comportamento, deixando questões importantes como o “sentido” e a subjetividade. Acrescenta-se a isso, a existência de inúmeras formas de classificação dos transtornos mentais que, no entanto, em sua maioria, explica organicamente os sintomas, mas retiram do ser humano suas singularidades. As descobertas neurocientíficas ajudaram na compreensão do homem, mas ainda não são suficientes para defini-lo, assim como também tal compreensão não é possível somente com a Psicanálise. Roudinesco criticou o fato das questões do “sentido” serem abandonadas na busca por um cientificismo puro, como também a ideia do sofrimento psíquico ser compreendido, muitas vezes, como um sofrimento apenas físico, rejeitando a observância da “subjetividade”. Escutar a depressão e aprender alguma coisa com ela, como Freud fez com a histeria no final do século XIX, talvez seja um ponto importante para trazer a Psicanálise ao cerne das discussões sobre o ser humano. Nesse ínterim, a generalização é um problema, pois hoje quase tudo é diagnosticado como depressão.  Estamos na era do Prozac, assim, para qualquer sintoma, dá-se a mesma droga. A questão imposta é resolver os problemas de forma rápida, esconder a dor, vender felicidade em frascos, tratar conjuntos de sintomas de uma mesma forma, ou seja, homogeneização e superficialidade. E, claro, por detrás de todo esse embate há uma questão econômica profunda, há os interesses das empresas farmacêuticas e de alguns Governos.

Para terminar, o jornalista responsável pela moderação fez a seguinte pergunta: “a loucura tende a acabar?”. Abaixo a transcrição da resposta da entrevistada:

“Não. A condição humana não termina nunca. Isso é um sonho. A loucura existe desde o início dos tempos, como a sexualidade, como o suicídio, como a morte. O que muda é a representação que fazemos dela. Na idade média, o louco não tinha o mesmo lugar que tem hoje. O grande movimento se deu quando se considerou, a partir do século XVIII, que a loucura era uma doença mental. Essa foi a mudança. Antes, falava-se em possessão de demônio, que era a expressão entre os antigos de uma fúria interna ligada ao organismo etc. Hoje, tudo é considerado do ponto de vista da doença. É nossa época. Mas, pensava-se que seria vencida, pois poderíamos curá-la, como se cura uma doença. Mas, não. E a prova é que se pensava isso também do suicídio. Que os remédios venceriam o suicídio. Mas, não se pode vencer os grandes tabus da condição humana. Ela continuará sendo a mesma. A humanidade não pode curar-se do que ela é. Já imaginaram uma sociedade que eliminasse a morte, o suicídio, a loucura, o que mais? Curaríamos a neurose. Mas, seríamos o que, então? O que seria do homem livre de suas paixões? Seria um cemitério! ”.

Essa finalização filosófica sobre a condição humana mostra-nos o paradoxo que reside em nossa natureza, ou seja, queremos respostas, mas precisamos das dúvidas. Lutamos contra as neuroses, obsessões e a própria loucura, mas sem elas perdemos grande parte dos nossos ícones, dos homens e mulheres que fizeram desse mundo um local mais interessante. Buscamos a felicidade, como a um Santo Graal, mas internamente sabemos que esta “felicidade” é momentânea, ou seja, existe até novas angústias se abaterem sobre nós e novas buscas elidirem em nossas mentes. Umberto Eco, em Baudolino, mostra claramente que não se pode vender felicidade em frasco, pode-se atenuar a dor, mas não se pode extingui-la, pode-se querer encontrar o Santo Graal até compreender que existem vários espalhados em nossos caminhos e que a busca nunca acaba. Enfim, a extinção da dor, da angustia e do medo nos robotiza e nos superficializa, ou seja, tira-nos a condição humana.

¹http://www.rodaviva.fapesp.br/materia/403/entrevistados/elizabeth_roudinesco_1999.htm


Nota: Trabalho desenvolvido como atividade da disciplina Psicologia Clinica I do curso de Psicologia do CEULP/ULBRA

Compartilhe este conteúdo:

A Sociedade e a Produção da Loucura

Compartilhe este conteúdo:

O viver em sociedade impõe ao indivíduo um padrão a ser seguido para que o mesmo seja aceito, e as constantes e rápidas mudanças do mundo não permite a todos os seres individuais a uniformidade de postura, atitudes e capacidades. Dessa forma a sociedade produz a loucura de modo gradativo que tem início numa insatisfação pelos objetivos não alcançados, mergulha na angústia de não se sentir parte de um todo, e se afoga no desequilíbrio, acentuado pela falta de compreensão da sociedade ao redor do indivíduo. Por vezes a loucura não deve ser vista como enfermidade, se considerarmos que sua cura não se dá através de medicamentos, mas pode ser considerada como um estado fora do padrão esperado de sanidade, insensatez ou falta de equilíbrio e controle das faculdades mentais.

Desde os idos mais remotos da humanidade, mesmo nas sociedades mais primitivas, como na Idade Média e Clássica, a loucura era vista com certo preconceito e discriminação, chegando-se ao ponto de afastar o doente mental do convívio social, proibindo-se também a eles o acesso as igrejas como se fazia aos leprosos e portadores de doenças venéreas. Era considerada como desvio da conduta espiritual, similar a um limite, assim como o é a morte.

Mas a loucura não é rigorosamente uma doença, ela pode ser considerada como parte da razão de ser do homem, já que pode coexistir com a lucidez, vinda a serem na mesma medida loucura e razão. De fato, a loucura nunca foi observada a fundo, pois se atribuía, loucura a todo comportamento fora do padrão, desde um “desarranjo costumeiro” até um ato de violência doméstica. Para Foucault não vemos razão no estado de loucura “por havermos conhecido mal a natureza da loucura, permanecendo cegos a seus signos positivos”. E que o modo como a loucura foi tratada nos impediu de julgar corretamente e individualmente cada estado de loucura, tornando-a uma experiência homogênea e ao mesmo tempo cega para a realidade do indivíduo nesse estado.

A sociedade produz a loucura pelo modo como exige um padrão a ser seguido e até respeitado. Esse padrão está na mente das pessoas, é um dilema comum a todos inconscientemente. E não segui-lo, obedecê-lo, gera uma angústia inexplicável de não pertencer, e isso é a loucura tolerável da sociedade contemporânea.

O vazio, a busca pelo sentido da própria existência, a solidão causada pelo modo de vida atual, caracterizado pelas dificuldades de relacionamentos verdadeiros e duradouros e agravado pelas mudanças rápidas e constantes no mundo e pela pressão por assumir posturas para as quais o indivíduo não está preparado, consolida a angústia de modo a levá-lo a inimagináveis soluções ou até mesmo formas paliativa de tratar com seus conflitos interiores. Ora refugiando-se na mais avançada tecnologia em psicofarmacológicos e outras formas elaboradas pela ciência, consideradas eficientes; ora em misticismos e crendices de todo gênero, o que muitas vezes não o impede de mergulhar em fadiga e ansiedade.

O modo de vida atual voltada ao capitalismo e ao consumismo indiscriminado criou uma sociedade sensível e incapaz de assumir seus sofrimentos, e o que antigamente se chamava de “vida dura”, pura e simplesmente, hoje se tornou doença ou algum distúrbio psíquico, tratável com medicamentos, eliminando os sintomas diagnosticados, mas não sua causa. Todo sintoma já está pré-catalogado e as queixas do eventual paciente vão se encaixando em um diagnóstico pronto, resultando em uma receita da felicidade, onde a pílula substitui as atitudes e a decisão de se aceitar como ser individual único e peculiar. Pessoti (2003) apud Ewald et al afirma que “A facilidade e irresponsabilidade com que os diagnósticos são  emitidos,  acentuam o abuso de medicamentos, pois eles são baseados num quadro de sintomas pré- catalogados por algum manual […]”.

O sofrimento que leva ao desequilíbrio psíquico se origina no ideal de vida, criado pelo indivíduo que se coloca diante de tantos anúncios de um modo mágico de vida, em que os problemas são radicalmente resolvidos num ato rápido como as mudanças do mundo, algo que assiste nas propagandas veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Seus desejos passam a se guiar por esse ideal. E muitas vezes não chegam a ser realizados por vários motivos, entre eles, a constante evolução tecnológica, a tendência ditada pela moda, as exigências do mercado de trabalho, que essencialmente controlarão sua capacidade de adquirir um bem material e conseqüentemente o impedirão, em algum momento de se adequar àquilo que idealizou inicialmente. Além desses fatores, a percepção por outros indivíduos, de sua condição de não se enquadrar no dito padrão começam a incomodá-lo, ao que a psicnalista Maria Rita Kehl (2003)apud Ewald et al afirma: “ o eu que nos sustenta é uma afirmação fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo”. Essa sensação de não pertencer ao todo, o deixará certamente em estado depressivo, cuja evolução leva a loucura nas suas mais variadas faces, em maior ou menor grau, conforme indicar o “manual”. Também em relação ao sentimento de não pertencer, segundo Ewald et al:

“é parte da ausência de sentidos que deveríamos criar ação que lentamente abandonamos para dispormos de sentidos prontos, vendidos no comércio virtual, nos supermercados, nos shoppings centers ou mesmo dispersos pelos meios de comunicação”.

A produção da loucura pela sociedade ao longo dos séculos e na atualidade se dá pela incompreensão do próprio “eu”, pela não aceitação de si mesmo como ser individual e peculiar, pela convivência mentirosa estabelecida pela vida em sociedade e o não poder expressar o verdadeiro sentimento em relação ao todo e a tudo sem se preocupar com o padrão existente. A loucura nasce da necessidade de ser igual ao que alguém determinou ser normal, quando o normal é que cada um seja como nasceu para ser.  Começam na negação da verdade a respeito de si mesmo em favor dos valores sociais impostos.

A loucura que na Idade Clássica era tratada com isolamento em prisões é hoje tratada com medicamentos e terapias, provavelmente essa foi a maior evolução do tratamento psíquico, pois na sociedade contemporânea  a discriminação é a mesma, mas a exigência em relação ao padrão é mais superficial e menos moral.

Considerações

A loucura e suas formas de tratamento foram evoluindo ao longo dos séculos, tal constatação fica clara ao compararmos o fato de que na Idade Clássica ainda se aprisionava os considerados como insensatos em celas e sem qualquer tratamento médico no sentido de curá-los de sua insanidade; ao fato de haver, atualmente, estudos e medicamentos apropriados a cada tipo de loucura, tratamentos humanos para enfermidades humanas, seja ela através dos meios bioquímicos ou terapias.   Outro fato observado é que a indústria farmacêutica, de certa forma tem se aproveitado do modo de vida atual, colaborando com o ideal de vida anunciado nos meios de comunicação, levando a sociedade a crer que existe uma fórmula mágica para curar suas angústias, decepções pelos desejos não realizados, que não sua própria iniciativa de ir à luta e realizar os desejos reais e não os fictícios criados por uma sociedade consumista e cada vez mais problemática.

Referências

CAMPOS, Regina Helena de Freitas e GUARESCHI, Pedrinho A (org.). Paradigmas em psicologia social: a perspectiva latino-americana. Petrópolis : Vozes, 2000. 222 p. (Coleção psicologia social).

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo : Perspectiva 2002.

EWALD, Ariane P.; OLIVEIRA, Dayse Marie. Sociedade de consumo e fabricação da loucura.Disponível em  http://encipecom.metodista.br acesso em 15 de junho 2011.

Compartilhe este conteúdo:
fósforo

Fósforo – Breve ensaio sobre a contenção física e a liberdade humana

Compartilhe este conteúdo:

A partir da leitura rápida de alguns artigos que tratam da “contenção física” em hospitais psiquiátricos, em pronto-socorro, nas salas de espera de hospitais públicos, em clínicas particulares, observei que há várias estatísticas nebulosas (porque geralmente os registros de tais ações são realizados de forma superficial e/ou são incompletos) e muitas dúvidas. Considerando o fato de que não tenho experiência no assunto e não há tempo para mais leituras, resolvi subverter a questão e tentar discutir o tema de uma maneira mais livre. Essa decisão, considerando as reflexões que estão por vir, pode se tornar um paradoxo.

Vários são os questionamentos que se formam a partir do momento que tiramos o direito de uma pessoa de mover-se, de ir e vir. Mas talvez essas indagações sejam demasiado exageradas, dado o fato de que a contenção física em situações de surtos psicóticos, de descontrole emocional, dentre outras, tenha como objetivo a manutenção da saúde da pessoa e de quem a cerca. Logo, a contenção, nesse caso, deve ser assimilada como um ato inevitável e extremamente salutar para a saúde do paciente. Mas não podemos esquecer que a “coisa contida” é um ser humano, cujas crenças e emoções estão tão conturbadas que o fazem enxergar um cenário errôneo do seu próprio contexto, levando-o a ações que não condizem com sua personalidade ou com padrões sociais e éticos pré-estabelecidos (e, em muitos aspectos, necessários à vida em sociedade).

No entanto, foi observado em uma pesquisa¹  sobre “contenção física” em hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro, que muitos dos casos que exigiram tal ação foram registrados depois das 17 horas, “quando os médicos da rotina já não estavam mais presentes no hospital”. Isso é um dado pouco consistente, devido à pequena quantidade de registros avaliada no artigo, mas ainda assim é uma informação que pode ser usada nas reflexões sobre esta situação.

Assim como há situações de descontrole absoluto, em que não parece existir outra possibilidade a não ser a contenção física, há também um despreparo por parte de algumas equipes que atendem tais casos de forma a evitar (a partir de medicação e diálogo, esse último obviamente mais utópico) que essa ação se torne a única possibilidade. As pessoas que são contidas ou levadas a locais de isolamento terão que conviver com essa nova realidade, ou seja, a de sua doença provocar, além do seu próprio mal, o mal daqueles que lhes cercam, de ele se tornar um perigo para si e para os outros.

Se isso se tornar um hábito, então, a questão se torna ainda mais complexa, pois depois que um nível de constrangimento é ultrapassado, algumas variáveis de impedimento são refutadas e talvez a própria consciência do constrangimento se torne uma sombra longínqua, até que desapareça totalmente.

Em Moby Dick, o livro de um homem e sua obsessão por uma baleia branca, um dos personagens tem uma epifania sobre a nossa real natureza (Melville, 1851):

Qual de nós não é escravo? Dizei-me. Pois bem; por mais que o velho comandante me ordene que vá de um lado para outro, por mais que me empurrem e me batam, tenho a satisfação de achar que está muito direito, que todas as pessoas, de uma maneira ou de outra, são obrigadas a servir, quer do ponto de vista físico quer metafísico; e assim vai passando a pancadaria universal e todos devem esmurrar-se uns aos outros e ficar contentes.

O interessante dessa constatação é a ideia de que podemos nos acostumar, de fato, com aquilo que nos parecia absurdo em certo estágio da vida. É essa acomodação com a “pancadaria universal” que temo ao fazer leituras sobre contenção física, internação em ambientes isolados etc., pois não tenho conhecimento suficiente da área para inferir se essas ações estão sendo realizadas por ser a única possibilidade dada às circunstâncias, ou por ter se tornado uma prática, ou por ambos os aspectos.

Essa inquietação vem ao encontro de um outro trecho do mesmo livro, uma constatação que sai da mente de Ahab (Melville, 1851):

Sou um fósforo. É injusto que para incendiar os outros seja preciso gastar primeiro a si próprio.  Que ousei, o que desejei, realizei! Pensam que sou louco. Starbuck acredita. Mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida. Essa loucura selvagem que se acalma somente para se compreender a si mesma.

A visão da mente de Ahab é poética, mas também é especialmente triste, principalmente se refletirmos que a única alternativa que nos resta ao nos depararmos com alguém enfermo e em crise seja impedir que o “fósforo”, que já se incendeia, incendeie também os outros. Como aluna de Psicologia ainda tento compreender se há meios para fazer com que a pessoa não venha a se tornar um “fósforo”, ao mesmo tempo em que procuro digerir as palavras assombradas do grande Inquisidor de Dostoievski (1879):

Queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade!

[…]

Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados.

O grande inquisidor faz aquilo que o define, ou seja, provoca e, consequentemente, perturba. Ele provoca um Deus que não sabe o que fazer com um conceito que, segundo o inquisidor e seus inúmeros fatos, não pode ser vivenciado por nós (as criaturas) justamente porque precisamos nos sentir cativos, contidos, guiados. Então, se nós (no sentido da humanidade) não suportamos a liberdade, por que aqueles dentre nós que são considerados loucos, desajustados, doentes mentais, provocariam nossa reflexão sobre temas como a contenção e o isolamento?

Bom, criei uma falácia facilmente refutada, ousei até equiparar termos aparentemente não passíveis de equiparação (como cativo e guiado), expandi a temática inicial, perdi o foco (contenção física) e divaguei aleatoriamente (e ingenuamente) sobre a liberdade humana e sua relevância.

Um texto sem lógica à espera do fósforo que lhe “libertará” do papel (suponha que ainda há um papel).

Compartilhe este conteúdo: