A Sociedade e a Produção da Loucura

O viver em sociedade impõe ao indivíduo um padrão a ser seguido para que o mesmo seja aceito, e as constantes e rápidas mudanças do mundo não permite a todos os seres individuais a uniformidade de postura, atitudes e capacidades. Dessa forma a sociedade produz a loucura de modo gradativo que tem início numa insatisfação pelos objetivos não alcançados, mergulha na angústia de não se sentir parte de um todo, e se afoga no desequilíbrio, acentuado pela falta de compreensão da sociedade ao redor do indivíduo. Por vezes a loucura não deve ser vista como enfermidade, se considerarmos que sua cura não se dá através de medicamentos, mas pode ser considerada como um estado fora do padrão esperado de sanidade, insensatez ou falta de equilíbrio e controle das faculdades mentais.

Desde os idos mais remotos da humanidade, mesmo nas sociedades mais primitivas, como na Idade Média e Clássica, a loucura era vista com certo preconceito e discriminação, chegando-se ao ponto de afastar o doente mental do convívio social, proibindo-se também a eles o acesso as igrejas como se fazia aos leprosos e portadores de doenças venéreas. Era considerada como desvio da conduta espiritual, similar a um limite, assim como o é a morte.

Mas a loucura não é rigorosamente uma doença, ela pode ser considerada como parte da razão de ser do homem, já que pode coexistir com a lucidez, vinda a serem na mesma medida loucura e razão. De fato, a loucura nunca foi observada a fundo, pois se atribuía, loucura a todo comportamento fora do padrão, desde um “desarranjo costumeiro” até um ato de violência doméstica. Para Foucault não vemos razão no estado de loucura “por havermos conhecido mal a natureza da loucura, permanecendo cegos a seus signos positivos”. E que o modo como a loucura foi tratada nos impediu de julgar corretamente e individualmente cada estado de loucura, tornando-a uma experiência homogênea e ao mesmo tempo cega para a realidade do indivíduo nesse estado.

A sociedade produz a loucura pelo modo como exige um padrão a ser seguido e até respeitado. Esse padrão está na mente das pessoas, é um dilema comum a todos inconscientemente. E não segui-lo, obedecê-lo, gera uma angústia inexplicável de não pertencer, e isso é a loucura tolerável da sociedade contemporânea.

O vazio, a busca pelo sentido da própria existência, a solidão causada pelo modo de vida atual, caracterizado pelas dificuldades de relacionamentos verdadeiros e duradouros e agravado pelas mudanças rápidas e constantes no mundo e pela pressão por assumir posturas para as quais o indivíduo não está preparado, consolida a angústia de modo a levá-lo a inimagináveis soluções ou até mesmo formas paliativa de tratar com seus conflitos interiores. Ora refugiando-se na mais avançada tecnologia em psicofarmacológicos e outras formas elaboradas pela ciência, consideradas eficientes; ora em misticismos e crendices de todo gênero, o que muitas vezes não o impede de mergulhar em fadiga e ansiedade.

O modo de vida atual voltada ao capitalismo e ao consumismo indiscriminado criou uma sociedade sensível e incapaz de assumir seus sofrimentos, e o que antigamente se chamava de “vida dura”, pura e simplesmente, hoje se tornou doença ou algum distúrbio psíquico, tratável com medicamentos, eliminando os sintomas diagnosticados, mas não sua causa. Todo sintoma já está pré-catalogado e as queixas do eventual paciente vão se encaixando em um diagnóstico pronto, resultando em uma receita da felicidade, onde a pílula substitui as atitudes e a decisão de se aceitar como ser individual único e peculiar. Pessoti (2003) apud Ewald et al afirma que “A facilidade e irresponsabilidade com que os diagnósticos são  emitidos,  acentuam o abuso de medicamentos, pois eles são baseados num quadro de sintomas pré- catalogados por algum manual […]”.

O sofrimento que leva ao desequilíbrio psíquico se origina no ideal de vida, criado pelo indivíduo que se coloca diante de tantos anúncios de um modo mágico de vida, em que os problemas são radicalmente resolvidos num ato rápido como as mudanças do mundo, algo que assiste nas propagandas veiculadas pelos meios de comunicação de massa. Seus desejos passam a se guiar por esse ideal. E muitas vezes não chegam a ser realizados por vários motivos, entre eles, a constante evolução tecnológica, a tendência ditada pela moda, as exigências do mercado de trabalho, que essencialmente controlarão sua capacidade de adquirir um bem material e conseqüentemente o impedirão, em algum momento de se adequar àquilo que idealizou inicialmente. Além desses fatores, a percepção por outros indivíduos, de sua condição de não se enquadrar no dito padrão começam a incomodá-lo, ao que a psicnalista Maria Rita Kehl (2003)apud Ewald et al afirma: “ o eu que nos sustenta é uma afirmação fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo”. Essa sensação de não pertencer ao todo, o deixará certamente em estado depressivo, cuja evolução leva a loucura nas suas mais variadas faces, em maior ou menor grau, conforme indicar o “manual”. Também em relação ao sentimento de não pertencer, segundo Ewald et al:

“é parte da ausência de sentidos que deveríamos criar ação que lentamente abandonamos para dispormos de sentidos prontos, vendidos no comércio virtual, nos supermercados, nos shoppings centers ou mesmo dispersos pelos meios de comunicação”.

A produção da loucura pela sociedade ao longo dos séculos e na atualidade se dá pela incompreensão do próprio “eu”, pela não aceitação de si mesmo como ser individual e peculiar, pela convivência mentirosa estabelecida pela vida em sociedade e o não poder expressar o verdadeiro sentimento em relação ao todo e a tudo sem se preocupar com o padrão existente. A loucura nasce da necessidade de ser igual ao que alguém determinou ser normal, quando o normal é que cada um seja como nasceu para ser.  Começam na negação da verdade a respeito de si mesmo em favor dos valores sociais impostos.

A loucura que na Idade Clássica era tratada com isolamento em prisões é hoje tratada com medicamentos e terapias, provavelmente essa foi a maior evolução do tratamento psíquico, pois na sociedade contemporânea  a discriminação é a mesma, mas a exigência em relação ao padrão é mais superficial e menos moral.

Considerações

A loucura e suas formas de tratamento foram evoluindo ao longo dos séculos, tal constatação fica clara ao compararmos o fato de que na Idade Clássica ainda se aprisionava os considerados como insensatos em celas e sem qualquer tratamento médico no sentido de curá-los de sua insanidade; ao fato de haver, atualmente, estudos e medicamentos apropriados a cada tipo de loucura, tratamentos humanos para enfermidades humanas, seja ela através dos meios bioquímicos ou terapias.   Outro fato observado é que a indústria farmacêutica, de certa forma tem se aproveitado do modo de vida atual, colaborando com o ideal de vida anunciado nos meios de comunicação, levando a sociedade a crer que existe uma fórmula mágica para curar suas angústias, decepções pelos desejos não realizados, que não sua própria iniciativa de ir à luta e realizar os desejos reais e não os fictícios criados por uma sociedade consumista e cada vez mais problemática.

Referências

CAMPOS, Regina Helena de Freitas e GUARESCHI, Pedrinho A (org.). Paradigmas em psicologia social: a perspectiva latino-americana. Petrópolis : Vozes, 2000. 222 p. (Coleção psicologia social).

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo : Perspectiva 2002.

EWALD, Ariane P.; OLIVEIRA, Dayse Marie. Sociedade de consumo e fabricação da loucura.Disponível em  http://encipecom.metodista.br acesso em 15 de junho 2011.