Jogos Vorazes – Livro I – Que Comecem os Jogos

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Jogos Vorazes (a trilogia) me surpreendeu por completo. Me desdobrei em múltiplas partes para conseguir discorrer sobre os três livros. O começo é sempre mais difícil quando se trata de uma história tão rica e fascinante. E, acredite, não é exagero.

Jogos Vorazes, o primeiro livro da trilogia que carrega o mesmo título, foi escrito de uma maneira magnífica. Lento e leve no seu inicio, Collins conseguiu transmitir genuinamente as surpresas de uma história que tem muito a oferecer e te prende desde as primeiras páginas. Não é a toa que o devorei, sem intervalos, em pouco mais de 24 horas.

A história se passa em Panem, uma nação governada por Snow, um tirano, manipulador, que conduz a todos com mãos de ferro e uma mente maquiavélica (e de uma inteligência admirável, porque é preciso muita astúcia para comandar o mundo todo seguindo seu próprio ideal) -essa constatação se dá ao longo da história, ou simplesmente quando somos apresentados aos Jogos Vorazes.

Foi devido aos Tempos Escuros, quando os Distritos promoveram uma rebelião contra a Capital a fim de assumir o controle, que surgiram os Jogos Vorazes, como forma de punição e de mostrar aos demais Distritos sobreviventes – Distrito 13 foi extinguindo- que todos estão a mercê da Capital, e quem quer que seja que tentar se rebelar contra ela sofrerá com terríveis punições. Os Jogos Vorazes, então, é uma disputa, em que cada Distrito deve enviar uma garota e um garoto, entre 12 e 18 anos, para uma arena, a céu aberto, e lutarem até morte, restando somente um vitorioso. Esse “espetáculo” é acompanhado por todos, em grandes telões, em praça pública. Um reality show pouco convencional.

Conhecemos Katniss Everdeen, uma jovem de 16 anos, que aprendeu a arte da caça desde muito cedo, ao lado do seu falecido pai (morto em uma explosão em uma das minas de carvão em que trabalhava). Com a morte precoce do seu pai, Katniss precisou pular sua infância e dedicar-se a sobrevivência de sua família: sua mãe está em estado catatônico (é acometida por uma depressão grave logo após a morte do seu marido), parece manter-se afastada do mundo real e presa na sua própria tristeza, deixando que suas filhas cresçam sem o amparo necessário -embora seja compreensível, é um pouco (muito) angustiante, tendo em vista que ambas as filhas eram novas demais para se virarem sozinhas- e Prim, sua irmã caçula, a razão de sua força. Com a sobrevivência da família em mãos, Katniss não teve outra alternativa a não ser a de abandonar os poucos anos que ainda restava de sua infância e trilhar um novo rumo para sua vida, que dela dependia outras duas vidas.

 

Com sua habilidade de flechar animais (atividade ilegal para o resto do mundo) Katniss passa a fazer negócios no mercado negro, trocando suas caças por mercadorias, com o intuito de alimentar sua família e continuar sobrevivendo. É na floresta, seu lugar favorito, que ela conhece Gale, por quem devota uma amizade plena e em quem confia cegamente – seu único amigo, também-. Esta é Katniss, basicamente, a garota que comoventemente foi parar nos Jogos Vorazes.

Em sua superfície a garota parece ser apenas mais uma pessoa que se viu obrigada a torna-se adulta antes da hora, tudo parece muito simples e raso, nada que nos prenda totalmente a atenção, se não fosse pelo fato dela nos descrever penosamente sobre seu sofrimento e sua condição exaurida de ser humano -daí em diante meus ombros ficaram pesados-. Um personagem -devido ao fato de ser narrado em primeira pessoa- que sabemos, instintivamente, que não será fácil de compreender, com suas dificuldades e em última estância um personagem difícil de simpatizar.

 

Collins ensaia uma possível história de amor, onde seria óbvio demais, que um jovem casal apaixonado será escolhido para lutarem até a morte, só para a diversão da população fútil da Capital. Mas, como mencionei, seria óbvio demais. Quando os jovens são encaminhados para a praça da cidade para participar do sorteio que indicará os dois tributos para participarem da 74º edição dos Jogos Vorazes, onde um silêncio torturante, seguido de descrições reais, na visão de Katniss, de como aquele momento massacrava qualquer esperança de se livrar daquela situação, tive a sensação que seria muito “na cara” que fosse ela a escolhida ou ele, ou ambos, Collins entregaria o ouro de bandeja, assim não teria um romance avassalador. Fiquei aliviada quando minhas expectativas foram atendidas. Prim foi sorteada, Katniss se ofereceu como tributo, aliviando a triste condição da irmã caçula. Logo depois, Peeta é escolhido como garoto tributo do Distrito, ele é só o filho do padeiro pra quem -mais um- Katniss nunca deu atenção, embora tem-se uma leve sensação de que ele é maior do que aparenta ser (e ele é). Temos então dois jovens fadados ao fracasso – segundo Katniss e sua terrível autopercepção-.

A história começa a caminhar com passos mais densos, mais detalhados e mais apaixonantes. Katniss agora é uma garota cheia de traumas, que são sempre mencionados, individualista e que vive na defensiva. Ninguém se aproxima, ninguém pode ser gentil. Ser gentil, para Katniss, é a prova de que a pessoa é um ser mortífero. Haymitch, vitorioso e agora mentor dos tributos do 12, é um homem desprezível, bêbado e pouco se importa com os novos ‘fantoches da Capital’. E em um dos seus devaneios, percebemos que é Peeta o grande diferencial dessa história, o garoto conduz tudo como uma suavidade impagável. Como se, ainda que não feliz com aquela situação, a única coisa que se pode fazer é aceitar e encarar o que virá pela frente.

 

 

O espetáculo dos Jogos Vorazes é uma tática fria e calculista, além de diversão para o publico que jamais participará de algo parecido (a sorte está com eles). Todos os tributos são conduzidos, preparados, treinados, maquiados, controlados pela Capital, com o intuito unicamente de garantir a diversão da sociedade. São como peças de um jogo, bem arrumadinhos, onde precisam até mesmo desenvolver seu lado letal, sem se importar com a vida do outro.

As pessoas são constituídas de maquiagem e vazio, não há nada dentro delas que nos façam querer sua companhia. Katniss e Peeta são duas crianças abandonadas numa caixa de brinquedos. Cinna, estilista dos tributos do 12, é um ser que vem na contramão deste estereótipo da Capital. A leveza de suas palavras, a delicadeza de suas ações, nos ajuda a compreender que é preciso lutar, embora tudo isso pareça uma grande -terrível- palhaçada. Peeta revela sua paixão por Katniss, e ela, não é de se espantar, o ataca impiedosamente, grosseiramente e esquece de agradecer, porque até o momento ela era – para a Capital – completamente sem sal. Então temos os Amantes Desafortunados do Distrito 12.

Quando os tributos, depois de muita exposição, são mandados para arena, começa o grande massacre. É terrível demais imaginar que garotos são jogados em um local para manterem uns aos outros, onde devem a qualquer preço desenvolver um lado sombrio e frio, e ainda que pareça distante demais da nossa realidade parece traçar um paralelo muito verossímil, onde temos a nítida ideia de que se não tomarmos cuidado isso não será impossível de acontecer. Mas Collins foi magnífica, também, quando nos deu Katniss, Peeta e Rue de presente, os três, embora soubessem que precisavam matar, demonstram que mesmo com sua obrigação estampada não abandonaram o lado humano e que só o fazem devido uma questão de sobrevivência. Katniss, luta para sobreviver e espera todos os dias para que não seja preciso matar alguém, luta contra a natureza, que ao seu ver é mais poderosa que os outros tributos. Mas ela precisa matar.

Rue é uma criança, tributo do Distrito 11, mas possui grandes habilidades e um coração maior ainda, encontra em Katniss a proteção que precisa. É devido a essa cumplicidade e fraternidade, que nosso coração chora quando estamos diante do “ritual fúnebre” que Katniss dedica a Rue, e é aí, também, que finalmente a garota em chamas decide se entregar completamente aos Jogos, agora é uma questão de honra.

Peeta sobrevive graças ao seu dom incomparável de camuflagem, quando Katniss o encontra – logo depois de uma mudança de última hora nas regras do jogo (muito suspeita, diga-se de passagem), dá-se inicio a uma nova encenação, eles precisam ser o casal de apaixonados que estão direcionados a um terrível destino, e um quer proteger o outro. Quando menciono que seria óbvio demais se Gale fosse o sorteado para os jogos é devido ao fato de que, quando notamos que Peeta devota os mais lindos e puros sentimentos por Katniss nos faz compreender as intenções de Collins, imagine o conflito e a dor de saber que você precisa matar a pessoa que você mais ama na vida para garantir a sua sobrevivência? Você mataria? É claro que essa pergunta não se restringe somente a Peeta, talvez a questão seja um dos focos dessa história. Até onde você iria para garantir a sua existência?

Peeta, machucado, desperta em Katniss o desejo de mantê-lo vivo, entre beijos e promessas de sobrevivência podemos ver nascer, lentamente, um sentimento que foge de uma simples encenação, só Katniss não percebe. O que parece é que um romance/triângulo amoroso que estava em segundo plano é parte, agora, de uma história conturbada, o que a torna ainda mais prazerosa.

Entre disputas e tentativas, pouco infrutíferas, de manter-se forte até o final, encontramos os três tributos sobreviventes, lutando entre si e contra as bestantes. Cato, jovem do Distrito 2, uma máquina treinada para matar e vencer o jogos, está desesperado, e entrega-se a sua condição de “morto-vivo”. Quando finalmente só restam os amantes desafortunados, a suspeita da mudança de regras é confirmada e temos um outro impasse, que foi genuinamente bem contornado.

Jogos Vorazes é escrito sob uma perspectiva e uma maestria indiscutível, porque lentamente somos apresentados a uma história que nos pesa fortemente os ombros, mas nos dá força e ânimo para continuar a caminhada. O que chama atenção é a maneira como Collins busca uma compreensão para todas as ações de cada personagem e a forma como trabalha as características minuciosamente de cada um deles, não reduzindo nenhum a um simples papel de coadjuvante, o que dá a impressão de que cada personagem exerce uma função, isso se estende tanto quanto suas personalidades (sentimentos, emoções) quanto suas ações e comportamentos.

No final o que posso dizer é que um livro que inicialmente parece destinado a um publico adolescente é na verdade uma história mais complexa do que se pode imaginar – e esperar-. Desista da ideia de que tudo gira em torno de uma violência gratuita (que não é) e sem um propósito maior. Existe um plano imenso e significativo para esse enredo fascinante.


FICHA TÉCNICA DO LIVRO

JOGOS VORAZES

Autora: Suzanne Collins
Editora: Rocco
Ano: 2010

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Do etnocentrismo ao pluriculturalismo: a saúde mental do indígena numa perspectiva biopsicossocial

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Recentemente, foi noticiado o alto índice de suicídio entre os povos indígenas da Ilha do Bananal, no estado do Tocantins. Só entre os Iny (pronuncia-se: inan), já foram 11 tentativas e 3 desde o início de 2014 até agora, o público alvo, em sua maioria, jovens.

Uma jovem indígena revoltada com a realidade do seu povo, ao ver seus irmãos morrendo, lança na internet um manifesto pedindo que a presidente do país, Dilma Rousseff pare para (re)pensar a condição do índio hoje no Brasil.

Em meio a suas palavras, a jovem Narúbia fala: “Nós não temos mais segurança, o alcoolismo, drogas e prostituição invadiram nossas aldeias, o atendimento básico, a saúde e a educação são precário. A assistência em saúde mental não consegue cuidar dos atuais transtornos de nossos jovens e nós não sabemos lidar com esses problemas que vieram com a sociedade não nativa (não indígena).”

Para entender mais sobre esse fenômeno, o portal (En)Cena – A Saúde Mental em Movimento, fala com o Iny Karajá João Werreria, graduado em Teologia, morador da aldeia JK na Ilha, sobre o suicídio de jovens nas aldeias da Ilha do Bananal – TO.

Foto: Narubia Werreiá

(En)Cena –  Olá, João, me fala quem é o Iny e no que eles diferenciam dos outros povos indígenas?

João Werreiá – O povo Iny é um povo pacífico. A palavra Iny, se traduzida para “não índio” significa algo como “povo civilizado”, seria isso: Iny. Então, é um povo que sempre teve contato com os “não índios”, também nunca tiveram conflitos com eles, os “não índios”, a quem chamamos de “branco”. Hoje, na Ilha do Bananal nossas aldeias estão rodeadas por cidades. Isso tem um impacto muito forte nas aldeias. E nossos jovens – que “é” mais sensíveis a essas coisas – tem passado por vários problemas, mas o principal agora é mesmo o suicídio.

(En)Cena – O problema do suicídio nas aldeias Karajá é novo?

João Werreria – Isso já aconteceu uma vez há alguns anos atrás, mas agora continua. Tem o empenho de algumas pessoas para acabarem com esse problema. Estamos lutando de todas as formas que podemos para encontrar uma solução pra isso.

(En)Cena – Para o seu povo, quais as possíveis causas do alto índice suicídio entre seus jovens?

João WerreriaOlha, eu vejo que nós um somos discriminados, até pelo próprio órgão da FUNAI, que é responsável pelos índios. Somos divididos em dois grupos: um acredita que o índio tem que ser preservado como se fosse há uns cem anos atrás; enquanto que outros acreditam que os índios tem que se integrar na sociedade nacional, aprender e também conviver com eles pondo em prática sua vida cultural, não perder as coisas. Os Karajás estão divididos entres esses pensamentos.

(En)Cena – Você acredita que o índio tem sido destituído de sua cultura?

João WerreriaQuanto ao suicídio, é difícil dizer que é só uma coisa, ou só outra. Existem muitos motivos, por exemplo: eu penso que a “coisa econômica” tem afetado nossos jovens a se levarem ao suicídio. Exemplo: Enquanto que o branco tem seus aviões, seus “carro bonito”; os índios estão com sua canoa, com seus remos primitivos, e jovem não quer mais andar nisso. Então ele quer alguma coisa, quer uma escola boa para ele poder aprender, para um dia ele se tornar médico, dentista, enfermeiro, geógrafo … Mas eles não conseguem alcançar esses objetivos para – do jeito que ele acredita – por a sua vida de igual para igual com os brancos. Ele não alcança!

(En)Cena – O senhor, pode nos falar um pouco sobre a desvalorização a cultura indígena pelo “branco” e o sofrimento dos Karajás?

João WerreriaExiste então o lado do preconceito, e nós Iny Karajás sentimos também assim, algo que somos impedidos de termos. Recentemente, nós tivemos um recurso do PRONAF que foi muito difícil e perdemos. Por que? Porque somos índios. Enquanto que os “não índios” “pega” três milhões, quatro milhões, nós não conseguimos isso. O índio quer também estudar. Quantos jovens lá da Ilha do Bananal fizeram vestibular e passaram, queriam vim morar na cidade, aprender coisas de “não índio” (dos brancos) pra ele contribuir também para a sua comunidade Karajá, levar os conhecimentos científicos. Mas não puderam. Elescontinuam lá, querendo ser médicos, dentistas… E “isso”, e aquilo ali “vai” criando um problema dentro deles. O jovem quer roupa bonita, não consegue comprar roupa bonita, quer comprar um tênis bonito, uma bicicleta bonita, não tem condições de comprar essas coisas… Porque o índio não pode mais caçar, o índio é proibido de caçar. Um dia, um índio “tava” matando um veado… Foi pego e “tá” com o nome sujo até hoje, então… É complicado.

(En)Cena – Por quê?

João WerreriaPorque “federal” prendeu ele, amarrou e ele ainda “tá” com o nome sujo. Porque eles diz que o índio tinha que aprender a criar gado. Quando a gente quer fazer o PRONAF – nosso projeto pra criar gado – já critica o índio. Que não é da nossa cultura. Mas a gente também não pode nem se alimentar das caças… Então…É complicado! Então, o índio quer as coisas assim como o “branco”: Eles “quer” ter documentos, eles “quer” algo para ter uma autoestima, se não, o indivíduo fica deprimido.

(En)Cena – A que você atribui o fato de que são os jovens, uma população forte, saudável, da qual não se espera em nenhuma hipótese esse comportamento, o maior índice de suicídios nas aldeias Karajá?

João WerreriaEu tenho na minha visão que, a maioria dos índios que morreram –  geralmente são jovens – são mais suscetíveis de que eles “queria” alguma coisa material como do “branco”, exemplo: “tá” jogando bola com uma camiseta boa, uma chuteira “boa” e não conseguiram… Assim ele foi ficando triste, foi ficando deprimido, não tem alguém para poder ajudá-lo, ele não tem estudo para poder ganhar dinheiro, para ele poder comprar. Então isso aí complica a situação do jovem. Então tem que ter um conselheiro, alguém que pode facilitar em relação à “coisa econômica”.

(En)Cena – Como esse choque cultural tem prejudicado os Iny em seu modo de vida cotidiano?

João WerreriaOs Iny- é a nossa parte – tem de incentivar o jovem a voltar pôr em prática nossa cultura bonita, e mostrar ela para o mundo que não conhece a nossa cultura. Isso é importante! Por mais que o índio tivesse estudado, nunca deveria deixar a sua cultura, principalmente sua alimentação, do seu antepassado… Hoje em dia, nós vemos os índios adoecendo de diabetes, como eu nunca ouvia falar disso, dessa doença. Por quê? Porque as pessoas “quer” passar para o índio essas coisas como se fossem alimento, e na realidade, não é alimento. A banana que é alimento, batata-doce que é alimento, peixe assado é que é alimento.

(En)Cena – Você acredita que esse adoecimento biopsicossocial do sujeito índio se dá com que o homem branco trata a sua singularidade histórica cultural?

João WerreriaSim, não tenho dúvida nenhuma. É por que nós nos sentimos fracos, por exemplo; o índio se alimentando de café puro com pão seco, que antes não era “esse” a alimentação deles. Fisicamente os índios estão ficando “baixinhos”. Que nós não éramos. Meu pai era alto, eu também sou alto, é que eu cheguei a comer comida primitiva, comida que meus pais plantavam. Eu tinha outra saúde, e, enquanto que hoje em dia quando quer tomar, em vez de beber “calugi”, toma refrigerante, que não tem nenhum alimento nutritivo, vai se criando um índio fraco… E quem que poderia então orientar “nós”, porque os comerciantes “quer” vender as coisas, quer trocar as suas coisas pelo dinheiro… E aí eles pegam o peixe, pegam tartaruga e trocam pelas coisas que “é” prejudicial. Então esse aí é um fator que também contribuiu para que o índio ficasse fraco mentalmente e fisicamente. Eu penso assim.

(En)Cena – João, você pensa que essa questão que você falou anteriormente, do preconceito, leva o jovem a não querer ser indígena? A ele acreditar que é inferior ao homem branco? Você acredita que aja uma perca de identidade cultural aí, e que estaria contribuindo para os altos índices de suicídio?

João WerreriaTambém, algumas pessoas têm sido, assim… como que sente realmente, “sente” inferiorizado. Ele ao invés de ser forte, falar da sua cultura, mostrar pro “branco”, ele fica deprimido, triste. Acha que o dinheiro, as coisas materiais “é”mais importante… Também é importante, mas não totalmente. Os próprios “brancos”, geralmente da região, pessoas que têm estudos superiores, geralmente eles debocham: “Ô índio, por que você não fala certo?”. Quando um índio conversa perto de um “branco”. Quer dizer, nós falamos certo nossa língua. “Por que você não dança correto?” Nós dançamos correto também na nossa cultura, e aquele ali acha que tem que ser largado aquela dança tradicional, bonita, para dançar forró? Agora a maioria inventa de ter baile na aldeia, isso cria ciúme, briga entre as famílias, separação, briga de mulheres, briga de homens. Enquanto que estão brincando as suas “aruanã” as suas “fé” tradicional, nunca houve essas brigas, então por que agora que queremos uma coisa que separa a família, separa os pais, é complicado. Por esse motivo então pros “brancos” “falar” que nós estamos errado nisso, naquilo… Nós temos nosso valor. Nós temos nossa cultura diferente! Deus fez assim, e nós temos valor!  Quando mais “multicultura” no mundo deveria ser valorizada, sua língua, sua tradição, a sua visão.

(En)Cena –  Por quê?

João WerreriaPor que… porque o bonito é as coisas no seu devido lugar. No momento que eu deixo de ser Karajá, eu não “tô” localizado na minha cultura. Se não olharmos pra nossa cultura ela pode se extinguir… Como algumas já foram extintos. Então, deveria perpetuar a valorização da nossa cultura, tanto da nossa parte quanto da parte do “branco”. É assim o mundo, até minha característica física é diferente. É tão bonito gente valorizar a diferença um do outro… E seria ruim se o mundo, se as pessoas fossem todos iguais. E eu penso assim.

(En)Cena – E você acha que o “branco” valoriza a diferença do indígena hoje?

João WerreriaÉ só as pessoas que são estudadas, que tem seus estudos, que valorizam “né”.  Pelo menos quando estudei em São Paulo… As pessoas que estudam mais, elas têm valorizado a nossa cultura, por isso que eles lutam também para nos ajudar. Enquanto que a maioria, eu penso assim, que a maioria já pensa diferente, acham que nós somos atrasados, que nós somos preguiçosos. Meus pais sempre trabalharam, faziam sua canoa, seus artesanatos, seu arco, acordava cedo para pescar e não são preguiçosos. A nossa forma de viver é essa, não é porque é preguiçoso. O “branco” tem a forma de trabalhar também, é que temos outro tipo de trabalho, mas é trabalho, tudo são trabalhos. Se nós fôssemos preguiçosos nós teríamos acabado há muito tempo. Como é que meu pai ia me criar se ele não me desse alimento? Tudo, a alimentação é questão de trabalho, eu vejo dessa forma.

(En)Cena – Você acha que é um problema da política assistencialista fez o índio mudar sua cultura?

João WerreriaÉ uma falha muito grande que houve no sentido “paternalismo”. Eu penso que, como diz um pensamento: “Ao invés de dar o peixe, tinha que dar uma vara para ele pescar”… É o que faltou. Eu me lembro muito bem quando a FUNAI tinha muito dinheiro, eles levavam arroz, feijão, plantavam, gradeavam a terra… Tínhamos tratoristas, tudo deles e ensacavam. Só faltava cozinhar e dar na nossa boca. Isso foi muito ruim pra nós, porque meus pais sempre trabalharam pra sobreviver, criar seus filhos, seus netos, seus descendentes e quando a FUNAI chegou acabou com a roça. “Não, agora vocês não vão mais trabalhar, a FUNAI tem dinheiro para alimentar vocês”. Isso foi ruim! Eu penso que deveria ter chegado lá com o pensamento: “Olha, nós vamos trazer uma escola boa, uma escola técnica para você utilizar sua terra, como criar gado, como criar a melhor batata, banana e todas essas coisas que o índio está acostumado pra sobreviver a vida deles”. Então, a meu ver, isso foi realmente um prejuízo para nós. Tem certos índios que nem trabalham mais, ficam só na porta da FUNAI “Me dá isso, me dá aquilo?”, mas eu… eu nunca pensei assim e tem muitos índios que quer ter algo pra aprender.Nós não sabemos, “a técnica dos brancos”, então nós tínhamos que aprender pra sobreviver na “terra cercada”, para sobreviver… Nós achamos que no passado, quando éramos donos da terra, podia mudar pra uma e pra outra, onde ficavam as caças e peixes… Por isso que tem Karajá no Pará, tem Karajá em Goiás, Tocantins, Mato Grosso, eles andavam muito “né” e viviam saudavelmente. E nós temos que aprender coisa do “branco” para a gente sobreviver, senão nós vamos morrer, começando pela nossa alimentação… Devemos comer só arroz branco em vez de comer arroz integral… Essas coisas.

(En)Cena – João, para finalizar, qual a mensagem que seu povo gostaria de deixar para os leitores?

João WerreriaSuicídio é muito triste, muito ruim, muito preocupante e nos sentimos muito derrotados. Parece que não tem nenhuma saída para poder ajudar nossos jovens… Cada um pensa diferente. Eu já disse o que eu penso “né” e eu acho que se nós tivéssemos condições econômicas bem estruturadas, independência, nós estaríamos tratando o negócio com o “branco”:de igual para igual. Nós temos algumas terras, tem mineral, tem capim. E por que não o índio não pode se tornar criadores de gado? Para se manter, manter seus filhos nas escolas, melhores escolas, pagar seus alugueis, pagar sua roupa, seu transporte e viver uma vida digna igual à do “branco”, mas sem perder a cultura Karajá.


Transcrição – Isadora Fernandes

Edição – Hudson Eygo

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