O Diabo Veste Prada: o sujeito no mundo contemporâneo

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“A inteligência
é o único meio que possuímos
para dominar os nossos instintos.”

Sigmund Freud

Uma das maiores e mais notáveis características da contemporaneidade é a contradição que nos enreda, e, com certeza, confunde. No filme O Diabo Veste Prada, evidenciam-se questões tão complexas como felicidade e sofrimento, que, em nosso século, tornam-se cada vez menos discutidos e mais difundidas em meio a uma rotina compulsória que deixa de ser vivida – apreciada – e passa a ser consumida freneticamente.

Em contexto mais amplo, não sobra tempo para pensarmos sobre nós mesmos, ou trabalhar conflitos de ordem pessoal.  Imperados pelo princípio do prazer, deleitamo-nos sobre nossa própria maldição – o consumismo moderno – e nos deixamos levar pelo gozar, gozar e gozar por cima de nossos desalentos, a sobrevida. Aparentemente, é esse o atual o sentido da vida: o gozo a qualquer preço. Sem balancear seus riscos e benefícios.

Andrea Sachs, conhecida como Andy, (personagem de Anne Hathaway), é uma jovem e talentosa jornalista, que acaba indo trabalhar na maior revista de moda do país. Tendo agora como chefe a surpreendente Miranda Priestly, (Meryl Streep), ditadora da conceitual revista de moda Runaway.

Miranda, famosa por seu temperamento hostil, é uma das mais importantes celebridades do mundo da moda. Eficiente e focada em sua carreira, é extremamente rígida em seu ambiente de trabalho, dificulta a inserção de Andy no perfil de trabalhadores do núcleo de produção da revista. A editora chega a chamar Andy de “a moça gorda” (para os padrões de beleza da revista), porém inteligente.

Após vários conflitos e embates no local de trabalho, e de cogitar uma demissão, desistindo do estágio que lhe proporcionaria um bom currículo para empregos futuros, Andy acaba externando seu desespero e decepção com um dos estilistas da revista, Nigel, (Stanley Tucci). Este atua como um verdadeiro analista para com a doce menina, mostrando a ela que a realidade é bem diferente e muito mais ampla do que o mundo que seu ego havia idealizado.

De volta à consciência, Andy se vê determinada a conquistar seu espaço naquele mundo, imergindo num mundo de valores e conceitos que, segundo ela sempre repetia, eram alheios ao seus, mas que ela abraçou tão rapidamente, que ela passa a agir conforme os modelos que ela sempre criticava. O que pode ser interpretado como um mecanismo de defesa do seu ego (Formação Reativa), que não aceitava que ela, vestida de um ego culto, não poderia se deixar levar pela futilidade – assim como ela chamava – do consumismo do mundo contemporâneo. Ao longo do filme, a jornalista externaliza conflitos internos, caindo em contradições, enquanto imerge no mundo, agora fantástico, da fama, deixando de lado, família e amigos.

Miranda Priestly é outra personagem que nos proporciona uma visão panorâmica da antítese que é sua existência. Ela apresenta um comportamento autoritário, consequência de sua busca incessante por gozo e satisfação, para manter sua imagem perfeita, o qual ela tenta compensar sendo a fada madrinha de suas filhas. Ela realiza todos os desejos das meninas, mesmo que para isso seja necessário sacrificar a sanidade de seus funcionários. As ricas meninas são coibidas de passar por qualquer restrição, e assim, privadas do sofrimento, o que indica um sintoma marcante de nossa contemporaneidade, a satisfação a qualquer custo.

A mensagem central do filme é pautada na “Escolha”. Andy passa grande parte do filme privando-se de tomar decisões por conta própria, depositando noutros a responsabilidade por tornar-se o ser desprezível que ela tanto criticava.

Após desestruturar inconscientemente todo seu mundo e vínculos sociais, os quais ela tanto prezava, Andy viaja a trabalho para Paris, onde passa por novas e significativas experiências, que lhe despertam para as entrelinhas do universo do qual ela agora fazia parte, partindo para uma autorreflexão. Nesse momento ela é acordada para um insight, e pode perceber o sujeito que ela realmente quer ser, frente a uma realizada que não condiz com sua visão subjetiva de mundo.

Agora, a personagem que no início, se fazia autônoma e indiferente ao sistema capitalistae estilo de vida consumista, guiado por modismos e padrões a serem seguidos, é capaz de ser e estar numa realidade, sem deixar-se imergir a tal ponto que se esquece de suas particularidades subjetivas, Andy torna-se sujeito, não indiferente ao mundo que a cerca, mas ciente do que pode/deve/quer fazer nele.

Esse relato contempla uma história fictícia da realizada onde a personagem central para pôr uma transição, ondeo ego de Andy perpassa o extremo de dois mundos opostos para enfim, alcançar o equilíbrio, tornando-se sujeito. É uma lição de aprendizado para os seres humanos, na construção de suas histórias de vida, pessoal e coletiva, onde o primeiro passo é, certamente, escolha de quem nós queremos ser.

 

 

 

FICHA TÉCNICA

O DIABO VESTE PRADA

Título Original: The Devil wears Prada
País: Estados Unidos
Direção: David Frankel
Roteiro: Aline Brosh Mc Kenna
Elenco:  Adrian Grenier, Anne Hathaway, Emily Blunt, Gisele Bündchen, Meryl Streep, Stanley Tucci, Tracie Thoms
Gênero: Comédia/Drama
Duração: 109 min
Ano: 2006

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“Saramandaia” ou o desejo irrefreável de voar

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Coronel Zico Rosado expele formigas pelo nariz; Dona Redonda come, come, até explodir;  João Gibão tem suas asas cortadas pela mãe todos os dias, para que as pessoas não saibam de seu segredo; Aristóbolo vira lobisomem; Marcina, ao ficar excitada, queima todo objeto em que se encosta. 

Era o realismo fantástico de Dias Gomes tomando conta do Brasil de 1976, em plena ditadura militar (1964 – 1985). O general Ernesto Geisel tinha assumido a presidência da república no ano anterior (governou o Brasil de 1974 a 1979) e, defrontando-se com a deterioração da economia (as decisões erradas do período de milagre econômico, que durou de 1968 a 1973, já mostrava seus efeitos nefastos) e do alto grau de insatisfação popular, declarou que promoveria uma abertura política de forma lenta, gradual e segura.  Entretanto, a censura continuava rigorosa e não poupava de cortes os textos de peças teatrais, músicas, reportagens em que o censor, por ventura, tivesse encontrado algum indício de crítica ao regime militar.

Dias Gomes, comunista de carteirinha, havia sido demitido da Rádio Nacional pelo seu envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro. Boni, já todo-poderoso da Rede Globo e que, ao contrário do que se esperava de alguém nessa posição tinha contratado alguns artistas perseguidos pela ditadura como uma forma de garantir-lhes a sobrevivência financeira, convida-o para escrever para a televisão. De 1969 a 1979 Dias Gomes dedicou-se exclusivamente a produzir para a TV.

Dina Sfat e Ary Fontoura

Com Saramandaia, Dias Gomes leva para a TV o realismo fantástico então em moda na literatura latino-americana.  No Brasil, essa forma de escrever teve como seus expoentes Josué Guimarães, José J. Veiga e Murilo Rubião. Érico Veríssimo também enveredou pelo realismo fantástico, como se pode ver de forma bem evidente em Incidente em Antares, de 1971. “Fellinis, Buñuels, Garcias Márquez e muitos Incidentes em Antares, de Veríssimo, habitam o clima dessa obra-prima de estética, arte, bom gosto e talento” (SILVA, 2002, p.  171). “Encontramos traços análogos da obra de Gomes nos expoentes célebres do Teatro do Absurdo, na pintura de Frida Kahlo, no cinema de Fellini e nas obras literárias de Gabriel Garcia Márquez, como “Cem anos de Solidão” (1962) e “A triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada” (1972).” (PAIVA, 2003, p. 1)

salvador dali Landscape-With-Butterflies

Pintura: Landscape With Butterflies, Salvador Dali

“Percebemos que a televisão se utiliza deste recurso, nos anos 70, na telenovela ‘Saramandaia’, abrindo novas arestas para a produção de um discurso que renovou o sentido da teledramaturgia, numa época de fechamento ideológico, imposto pela censura” (PAIVA, 2003, p. 1). Foi especialmente utilizado como uma forma de reação à ditadura militar, pois se aproveitava de metáforas e analogias para elaborar críticas ao regime sem que a censura as percebesse de forma clara.

Dias Gomes diria, em entrevistas após o fim da ditadura, que “Saramandaia foi, também, uma novela muito perseguida pela censura (…) por isso eu apelei para o realismo fantástico” (MATTOS, 2004, p. 82) e que havia escolhido este formato para driblar a censura. Vale lembrar que no ano anterior Roque Santeiro, outra novela sua baseada na peça O Berço do Herói, também de sua autoria, havia sido proibida no dia de sua estreia. Como curiosidade, a novela que substituiria Roque Santeiro foi Pecado Capital, de Janete Clair, com quem era casado.

“A censura não entendia bem a novela Saramandaia e passou a fazer cortes aqui e ali, indiscriminadamente. Os cortes chegaram a tal ponto que não dava para eu continuar a contar a história” disse Dias Gomes (MATTOS, 2004, p. 82). E como entender? A história se dá em uma cidade, Bole-bole, que enfrenta uma disputa entre seus moradores a respeito de uma proposta de alteração de seu nome para Saramandaia.  O confronto se dá entre figuras importantes da política local: o coronel Zico Rosado, aquele da formiga pelo nariz, lidera os tradicionalistas, e se baseia em justificativas históricas para a manutenção do nome. Os mudancistas, liderados pelo coronel Tenório Tavares, têm o apoio do vereador João Gibão, o das asas, autor do projeto e alegam vergonha do nome Bole-Bole, relacionado a um episódio ocorrido com D. Pedro II na cidade.

Assim, “inspirado no realismo fantástico, Dias Gomes apresentou um painel de personagens exóticos para, por meio da ficção, abordar questões políticas, culturais e socioeconômicas, transformando a cidade fictícia da novela em um microcosmo do Brasil” (MEMÓRIA GLOBO, 2012, online). Claro que tal propósito não passava batido pelos censores que, entretanto, desejosos de não serem enrolados pelo autor, cortavam seu texto inclusive nos pontos mais, digamos, inocentes. Dias Gomes relembrou que, ao confrontar o chefe da censura com uma situação destas, ele acabou chamando o censor responsável para lhe pedir explicação, já que ele mesmo não via motivos para o corte:

‘Fulano, o Dias Gomes está intrigado’ ele disse ‘e eu também. Por que você cortou isto aqui?’. O censor ensaiou, então, uma pose, fez um ar de inteligente e, olhando para mim , disse: ‘Bem, o que o senhor colocou aí no texto, quando se lê parece não ter problema nenhum, não é? Mas o que o senhor estava pensando quando escreveu esse diálogo, aí é que está o problema’. Vejam só, ele havia censurado o meu pensamento! A que ponto chegou a censura no regime militar! (MATTOS, 2004, p. 83)

E realmente, ao se olhar a construção do texto de Dias Gomes, verifica-se que o censor tinha motivos para preocupação: “Interesses políticos e econômicos estão por trás da discussão sobre a mudança do nome da cidade. O coronel Tenório Tavares defende a troca, pois pretende lançar no mercado a cachaça Saramandaia (…). A bebida será concorrente da cachaça Bole-Bole, produzida por seu inimigo, Zico Rosado” (MEMÓRIA GLOBO, 2012, online).

Dias Gomes atuaria, através de seu texto, “como vetor de libertação e autonomia da imaginação criativa numa época de sufoco” (PAIVA, 2003, p. 2). Gibão com asas ansiava a liberdade, representava o país que, ele sim, ansiava pela liberdade… e por não ser compreendido vinha tudo, polícia, exército, persegui-lo. Dona Redonda e sua compulsão de comer até explodir denota a compulsão consumista da sociedade capitalista, tema representativo das discussões político-sociais na década de 70. As formigas que saem pelo nariz do Coronel representariam a podridão da sociedade que, ainda que se apresente forte e dominadora por fora, tem seu interior deteriorado e carcomido pelos insetos. É assim que “o fantástico, o absurdo e o grotesco, através de angulações tecnológicas e poéticas imprevistas, informam a imaginação estética dos telespectadores, utilizando-se do recurso da inversão dos valores da sociedade e da política” (PAIVA, 2003, p. 2).

Pintura: The Wings, Salvador Dali (1958)

Isso se reflete até na sua trilha sonora, como Walter Silva nos apresenta ao descrever a música Pavão Mysteriozo, tema principal da novela: “Já com ela sem seus braços, o galã apaixonado profere estas palavras: ‘- Eles são muitos, mas não sabem voar.’”, o que pode ser lido como uma clara alusão à incompreensão dos agentes da ditadura a respeito dos desejos de liberdade e sua incapacidade de sair do chão e… voar! Foi assim que “a  telenovela “Saramandaia” ritualizou, no Brasil dos “anos tristes”, a loucura necessária; funcionou como uma espécie de pulmão que permitiu os indivíduos respirarem numa atmosfera sufocada por um regime político autoritário e, foi igualmente, uma das expressões originais de descontração, apesar de todas as interdições da época” (PAIVA, 2003, p. 4).

Referências

ALENCAR, Mauro. A Hollywood Brasileira: Panorama da Telenovela no Brasil, São Paulo: SENAC, 2002.

MATTOS, David José Lessa (Org.). Pioneiros do rádio e da TV no Brasil: depoimentos à Pró-TV (Volume 1). São Paulo: Codex, 2004.

MEMÓRIA GLOBO.  Saramandaia. 2013. Disponível em  http://memoriaglobo.globo.com. Acesso em 24 jun. 2013

PAIVA, Cláudio Cardoso de . Comunicação e Latinidade: um estudo de televisão e ficção seriada. UQAM. Canadá. América Terra das Utopias. Desafios da Comunicação Social, Quebec, Canadá, v. 1, n.1, p. 1-15, 2003. Disponível em http://www.er.uqam.ca/nobel/gricis/actes/ utopie/Paiva.pdf. Acesso em 24 jun. 2013

SILVA, Walter (Pica-Pau). Vou te contar: Histórias de Música Popular Brasileira. São Paulo: Codex, 2002.

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