Sabe-se que a adolescência é, naturalmente, um período caracterizado por muitas pressões sociais, em que os jovens estão em busca da própria identidade, constituindo sua autoimagem e participando de grupos sociais (às vezes mais prejudiciais do que benéficos) que garantem a identificação entre pares, ao mesmo tempo em que precisam de um distanciamento inicial da família de origem (compreendido como intrínseco ao processo) para que esses conflitos possam ser solucionados.
Muito se fala sobre a falta de preparo que as escolas de ensino fundamental e médio fornecem para a vida adulta, tanto no sentido de escolha profissional, mercado de trabalho e projetos individuais, quanto no sentido de uma educação financeira básica, por exemplo.
Nesse sentido, objetivo, com esse relato pessoal, demonstrar como uma orientação profissional de qualidade poderia ter me ajudado a lidar com um dos maiores conflitos que enfrentei até hoje: a escolha da minha profissão.
Meus pais são dois médicos cardiologistas, muito capacitados, estudiosos em toda sua trajetória e que fizeram o curso superior em instituições federais de ensino. Apesar de nunca ter havido uma pressão direta em relação ao curso de medicina, um bom desempenho sempre foi esperado de mim (que sou a irmã mais velha), até como uma preocupação sobre como eu poderia manter o padrão de vida que eles sempre ofereceram no que tange a aspectos financeiros.
Esse fator, somado ao fato de que não havia, na minha escola, qualquer espaço para o conhecimento das diversas possibilidades de atuação que existem, me fizeram assumir, desde o início, que eu também queria seguir o caminho da Medicina. Com isso, expectativas foram criadas, abrindo portas para a cobrança. Sempre fui uma das melhores alunas da minha turma. Gostava de estudar e me destacava por isso. No último ano do ensino médio, acabei passando por um período de deslocamentos dos meus grupos de amigos, o que me fez sentir muito sozinha e impactou de forma muito intensa na minha saúde mental.
Em termos de estudo, foi um ano quase perdido. Minha produtividade caiu bastante, eu me sentia frequentemente triste, sobrecarregada e indecisa sobre o que queria da vida (ainda hoje me sinto indecisa sobre o que quero da vida – faz parte do processo). Assim, sabia que não ia passar no vestibular de Medicina e estabeleci que, no ano seguinte, sairia da minha cidade natal Palmas (TO) e me mudaria para Goiânia (GO) para estudar no Colégio WR e fazer cursinho.
Olhando para trás, percebo que eu nunca me senti completamente preparada para mudar de cidade (e quando estamos 100% preparados para grandes mudanças, afinal?). Em 2020, me mudei para Goiânia ainda em janeiro. A adaptação de morar sozinha foi difícil, a rotina era muito corrida e eu sofria muito com a autocobrança de passar ou não no vestibular. Imaginava quantos anos de cursinho seriam necessários. No mesmo ano, em março, a pandemia de COVID-19 estourou e as instituições foram fechadas, o que me fez voltar para Palmas e continuar o cursinho na modalidade online (com todo o suporte oferecido para isso).
Foi quando voltei para casa e não tinha perspectiva de estudo, que comecei a questionar se Medicina era realmente o que eu queria. Eu, que sempre gostei tanto de estudar, evitava essa atividade mais do que qualquer outra coisa. Nessa época, conversei muito com meus pais, que me elucidaram com muitas outras opções de faculdade que eu poderia escolher. Cogitei Medicina Veterinária, Direito, Biotecnologia, e conversei com profissionais dessas áreas com a esperança de me sentir menos perdida.
Eu nem sei dizer ao certo como foi o processo mental de escolher a Psicologia, mas um dia a possibilidade passou pela minha cabeça. Não que fosse uma certeza, mas foi, dentre todas as opções, a que mais parecia se “encaixar” para mim. Essa decisão desencadeou um conflito familiar porque, além de não cursar Medicina, eu também não faria faculdade de Psicologia numa instituição federal como meus pais fizeram. Parece que, para eles, a Psicologia era a pior das opções dentre todas as possíveis. Além disso, me foi muito cobrado acerca do gasto financeiro com uma escola muito boa e cara, um cursinho muito bom e caro para, no final das contas, parar em uma instituição particular de ensino.
“Caí” na faculdade de Psicologia de paraquedas. Não tinha certeza se era aquilo que queria. Depois do primeiro semestre, já estava completamente apaixonada pelo curso. Se a gente pode realmente se encontrar, era isso o que tinha acontecido comigo. Compartilho, aqui, um texto que escrevi em junho de 2023, logo após ter atendido meus primeiros pacientes no contexto clínico:
50%
Uma grande professora e amiga me disse uma vez que eu nunca esqueceria o nome do meu primeiro paciente.
Mas e os outros quatro?
Completei, no primeiro semestre de 2023, cinquenta por cento estudante de psicologia, mas, muito mais do que isso, me tornei cinquenta por cento uma pessoa muito melhor, que é mais feliz e que lida com os momentos turbulentos da vida de forma muito mais leve.
Nesses cinquenta por cento, tive a sorte e privilégio de cruzar o caminho de cinco pacientes. Cinco vidas. Cinco histórias. Cinco sofrimentos.
Eles até podem se esquecer de mim, mas, não intencionalmente, eles passaram uma mensagem muito importante pra Bruna de 19 anos, angustiada e preocupada se teria escolhido Psicologia por ser mais simples do que continuar tentando o curso de Medicina:
Naquelas salas, sentados um de frente pro outro, todos os cinco me mostraram que eu estava no caminho certo. Que era aquilo que faria o meu coração pulsar. Que eu nasci pra fazer muitas coisas, e essa era uma delas.
A Bruna a partir dos vinte e um anos nunca vai esquecer de como eles, de maneiras tão singulares, transformaram a vida dela pra muito melhor. Não tem nada mais gratificante do que sentir que tomei a decisão certa. Não tem nada mais recompensador do que receber retornos tão lindos e singelos de que, mesmo fazendo tão pouco, fui capaz de impactar a vida deles de uma forma positiva. eu nunca vou me esquecer do nome, rosto e história dessas cinco vidas que passaram pela minha trajetória. Eles me fizeram ter certeza absoluta de que meu coração pulsa, minha alma anseia e meu corpo pula pelos próximos cinquenta por cento que virão.
Sempre tive medo de estar perdida e me senti assim por muito tempo, mas hoje também entendo que nem todos aqueles que procuram estão perdidos. E eu só estava procurando. E tive a sorte de encontrar. Não seria a mesma sem os cinco, e hoje, aos vinte e um, me olho no espelho com a certeza de que estou no caminho certo – e com muito orgulho de mim.
Bruna Teixeira Rabelo, junho de 2023.
Sentir orgulho de mim foi, por muito tempo, inimaginável. O curso de Psicologia me transformou e segue me transformando de tal forma que não teve uma pessoa do meu entorno social que não se visse em uma posição de me apoiar e aplaudir minhas conquistas. Nunca me esqueço de quando minha mãe disse, pela primeira vez, que eu seria uma boa psicóloga e uma excelente professora (foi pelo Whatsapp e virou uma impressão colada na minha parede). Também nunca me esquecerei de quando meu pai disse que tinha orgulho de mim pela escolha que tinha feito. Quando, na minha primeira co participação na produção de um livro, ele comprou um exemplar autografado (ainda que fosse um livro técnico), chorou e me abraçou.
Hoje, eles são um dos meus maiores apoiadores. Hoje, eles enxergam um potencial em mim que, em muitos momentos, nem eu vejo. E isso só foi possível porque a Bruna de 19 anos decidiu arriscar. Porque a Bruna de 19 anos deu a cara à tapa. Porque a Bruna de 19 anos escolheu ser fiel a ela mesma, e não a mais ninguém. Fazendo o que gosto e o que acredito, fui reconhecida pelas pessoas mais importantes da minha vida.
Não olho para trás com arrependimento em relação a nada que passei, pois todos os caminhos me trouxeram até aqui, com a estrutura que tenho hoje, e sei que, na época, também fiz o que essa mesma estrutura permitiu. Mas às vezes não deixo de me perguntar se esse caminho não poderia ter sido mais fácil, tanto para mim quanto para os meus.
Um programa de Orientação Profissional de qualidade poderia ter fornecido apoio na tomada de decisão, ensino sobre as variadas possibilidades de ingresso em cursos superiores, bem como possibilidades além do que uma faculdade fornece. Informações sobre que cursos existem, as áreas de conhecimento compreendidas, o que se faz em cada um, possibilidades de atuação, pontos positivos e negativos podem ajudar muitos alunos a expandirem o olhar e considerar opções que talvez nunca tenham sido pensadas.
Muitas vezes, me vi escolhendo a Medicina por conhecer poucas coisas além dela. Lembro que meus pais chegaram a me falar que isso era normal, que era esperado os filhos seguirem a mesma carreira dos pais por ser o que eles veem no dia a dia. E isso me faz refletir: que outras possibilidades existem? Como fornecer amparo, estudo e informação para que os jovens possam considerar diversos caminhos?
Mais do que aliviar a tensão “esperada” por essa fase, falamos de menos evasão escolar na universidade, maior autoconhecimento e, como consequência, melhoras significativas na saúde mental, principalmente no que tange ao papel que o trabalho desempenha hoje na vida dos brasileiros. Um projeto bem desenvolvido de Orientação Profissional também reduz a escolha da profissão baseada por pressões familiares e sociais, estimulando o senso crítico do aluno. Ainda há aconselhamento familiar, onde são desenvolvidos projetos voltados às famílias do estudante.
Me pergunto como poderia ter sido se meus pais tivessem recebido suporte nesse sentido. Como seria se grupos tivessem sido desenvolvidos entre pais para partilha de experiências? Como seria se tivesse sido discutido sobre as diferenças entre ter uma expectativa sobre seu filho, mas não supor que ele deva ser prisioneiro dessa expectativa? Se eles tivessem discutido sobre as diferenças de sentir algo e projetar no outro um sofrimento que não é ético?
Quantos jovens poderiam, dessa forma, ter seguido os caminhos que queriam? Quantos não teriam sido forçados a fazer um curso que não se identificavam por conta de um possível retorno financeiro ou expectativa social?
De forma conclusiva, a Orientação Profissional não é apenas sobre “qual profissão escolher”, mas sim sobre autoconhecimento, planejamento e construção de um futuro com propósito. Escolhas bem informadas reduzem frustrações, aumentam a motivação acadêmica e melhoram a empregabilidade, impactando diretamente a vida dos jovens e da sociedade como um todo.
Meu desejo é de que, cada vez mais, as escolas estimulem a autonomia e a liberdade nesses processos. E que estejamos sempre cientes de que é sobre isso: processos. Considerar novas opções e estar à procura de algo não significa que estejamos perdidos. Estamos procurando. Que tenhamos suporte acadêmico e daqueles que são importantes para nós para que possamos nos aproximar cada vez mais dos lugares que não nos façam sentir estrangeiros a nós mesmos.