O desafio de cuidar e a dor da incerteza

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Quando pensamos em tristeza, catástrofes, urgências e emergências, quase nunca acreditamos que algo assim vai acontecer conosco. Este ano de 2024 está sendo extremamente difícil para mim, pois vivi e estou vivendo uma situação inesperada e a pior da minha vida, tanto como indivíduo quanto como parte de uma família.

No dia 9 de abril de 2024, precisamente às 21h, meu pai, um senhor de 60 anos, sofreu um AVC isquêmico que lesionou aproximadamente 48% do seu cérebro. Lidar com isso tem sido o maior desafio que já enfrentei. É urgente, necessário e desesperador, porque olhar para aquela figura paterna — o meu herói, o forte, o incrível — e vê-lo hoje como está, me machuca profundamente. O próprio AVC, com as sequelas que deixou, lesionou uma parte do tronco encefálico, responsável pelo ciclo de sono e vigília. Desde o dia 10 de abril de 2024, ele não acorda.

Escrevo este texto hoje, no dia 8 de novembro de 2024, sentindo uma saudade imensa dele. Sinto falta de ouvir sua voz, seu riso, de ter a certeza de que ele está consciente — uma certeza que perdi há sete meses. Como eu disse, embora meu pai ainda esteja vivo, ele não acorda. Ele não fala, não sorri, não se comunica de forma alguma. Ele apenas dorme o tempo todo e é muito doloroso vê-lo assim. É difícil saber que, se não estivermos lá — nós, cuidadores formais e informais — para dar-lhe água e comida, ele morreria de sede ou fome, pois não tem nenhuma autonomia para absolutamente nada. Um homem outrora tão vívido, ativo e lúcido, com apenas 60 anos recém-completados, agora depende completamente de nós.

Estar na posição de filha, de cuidadora, de companheira da família neste momento é muito doloroso, principalmente porque muitas vezes não sabemos o que fazer, como reagir, o que dizer ou não dizer. Há momentos em que nem sabemos o que sentir. O cansaço que envolve esse processo de espera, de cura e de esperança por uma possível melhora é imenso. Cuidar de um corpo que precisa de você para tudo e saber que esse corpo é seu pai é devastador.

Nestes sete meses, passamos por muitos momentos em que a vida dele esteve em risco, por várias complicações. Como se o AVC não bastasse, ele já tinha outras comorbidades, inclusive respiratórias. Já tivemos a esperança renovada em alguns momentos, mas o AVC que ele sofreu foi muito extenso, causando lesões graves e edema cerebral. O processo de desinchar o cérebro é lento; os médicos estimam de oito meses a um ano para que o edema seja reduzido e o cérebro retorne ao tamanho normal. Ainda assim, não há garantias de que ele vá recuperar as funções como antes ou que chegue perto disso. Sabemos a área afetada, mas não a intensidade das lesões. Ele pode nunca mais acordar, ou pode acordar sem falar, sem se comunicar, ou sem recobrar a consciência. Existe uma lista de “pode ser” que é quase interminável, e isso dói, porque não estamos falando de um desconhecido, mas do meu pai, meu herói, a pessoa que, junto com minha mãe, fez tudo por mim e que era sinônimo de proteção e segurança.

Hoje, vejo-o naquela cama, tão indefeso, pequeno, frágil. Sinto que o que posso fazer é cuidar, e apenas isso, mas parece tão pouco, porque não há garantias de nada nesse processo. A incerteza é tão dolorosa quanto o próprio processo. Muito em breve, vou me formar, e esse foi um sonho sonhado por todos nós, inclusive por ele. Por muitas vezes conversamos sobre a ideia de eu me formar, até porque a mãe dele era uma psicóloga — uma das primeiras no Brasil, inclusive — e nós falávamos com muita empolgação sobre esse momento. Daqui a poucos meses, dois ou três meses, é a minha colação de grau, e ele vai estar lá. Eu creio nisso e espero que sim. Mas como ele estará, isso eu já não sei. De toda forma, é um novo início, um novo começo, uma nova realidade, uma nova vida. E, estando ele como está, voltando a ser o que era ou recriando-se de outra forma, eu estarei aqui para ele.

Assim, tenho percebido que podemos sofrer tanto pelo processo em si quanto pelo medo que ele gera. Todos os dias, acordo me perguntando se algo diferente vai acontecer hoje: “será que teremos um novo reflexo, uma nova interação? Será que hoje ele vai apertar nossa mão? Será… será… será…” Às vezes acontece algo sim, o que é muito bom; mas na maioria dos dias, nada acontece, porque o processo é o processo, e nem eu nem ninguém tem controle sobre ele.

Neste momento, a psicoterapia tem sido fundamental para mim e para minha família. Cada um de nós está lidando com essa dor de uma maneira diferente, e quando falo da dor, falo da perda, mas não me refiro necessariamente à morte, e sim a saudade de quem ele era e de tudo o que ele representava. Falta-nos a segurança, o apoio, a voz, as ideias, o sorriso, os conselhos. Falta ele, entende? É uma soma de muitas perdas, e todos sentimos isso de formas distintas. A terapia tem sido essencial para nos ajudar a entender que o processo é o que é, com dias bons e dias ruins, e para que possamos manter o equilíbrio e não perder a esperança de que as coisas ficarão bem, seja lá o que “bem” signifique. Espero que o que venha seja bom para todos nós e que nos ajude a seguir em frente com a vida.

E se você, assim como eu ou minha família, está passando por uma situação semelhante ou por uma dor intensa, eu te desejo sorte e paz para lidar com o seu processo. Desejo que tenha a sorte de um final feliz dentro do que for possível e a paciência para vivenciar tudo isso sem desespero, sem se perder de si mesmo e dos seus. Que você possa se lembrar de que tudo o que tem que acontecer, no tempo certo acontece.

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Patrícia Sousa compartilha sua experiência no Programa “Melhor em Casa”

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(En)Cena entrevista Patrícia Sousa, enfermeira, graduada pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com Mestrado em Ciências e Meio Ambiente pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente exerce a função de Diretora do Departamento de Planejamento e Gestão da Secretaria Municipal de Saúde de Redenção-PA. Patrícia é especializada em Saúde Pública; Qualificação de Gestores do SUS; e Facilitadores em Educação Permanente em Saúde, além de ser uma referência importante quando se trata de programas governamentais especialmente o “Melhor em Casa”. 

Sua experiência em planejamento estratégico e gestão pública na área da saúde, a torna uma voz relevante na implementação e monitoramento de políticas de assistência domiciliar. Ao longo de sua carreira, Patrícia tem coordenado com excelência a execução de projetos voltados à melhoria da qualidade de vida da população, garantindo que os recursos sejam utilizados de maneira eficiente e que os pacientes recebam atendimento humanizado e adequado em seus lares.

Em sua entrevista para o Portal (En)Cena, oportuniza o conhecimento sobre como os programas de saúde do governo, como o “Melhor em Casa”, impactam diretamente a vida das pessoas. Com sua vasta experiência em gestão pública e dedicação à saúde, Patrícia oferece informações valiosas sobre os desafios e conquistas no cuidado domiciliar, revelando o que está por trás do sucesso dessas iniciativas e como elas podem transformar o atendimento à saúde na comunidade.

 

(En)Cena – Patrícia, é um prazer entrevistá-la. Vamos conversar um pouco sobre o programa “Melhor em Casa”, uma proposta de acompanhamento domiciliar. Para começarmos, gostaria de saber: Como funciona o processo de inclusão de pacientes no programa “Melhor em Casa”? Quais são os critérios para participar?

Patrícia Sousa – O programa “Melhor em casa” recebe todos os pacientes que tenham necessidade de acompanhamento no domicílio, porém existem alguns casos prioritários, pessoas que tiveram AVC por exemplo, que estão sequelados e precisam de um acompanhamento mais constante; pessoas com deficiência motora e problemas de locomoção; pacientes que passaram por cirurgias, que também precisam de acompanhamento ou algum procedimento como oxigenoterapia, passagem de sonda; pacientes com lesões na pele de qualquer tipo que precisam de curativos diários e acompanhamento, acabam por ser os pacientes prioritários pois precisam receber a visita da equipe multidisciplinar até em 2 ou 3 vezes na semana, a depender do caso. Mas o programa atende qualquer pessoa que necessite de acompanhamento em casa, isso enquadra muito os idosos e pessoas com doenças crônicas. O processo de inclusão de pacientes começa com uma avaliação médica, geralmente realizada em hospitais ou unidades de saúde, que identifica aqueles que podem receber cuidados no domicílio. Os principais critérios envolvem pacientes que precisam de acompanhamento contínuo, mas que não necessitam de internação hospitalar, como pessoas com doenças crônicas, em recuperação de cirurgias, ou em reabilitação. Além disso, é importante que o paciente tenha uma condição de saúde estável e um cuidador familiar que possa colaborar no dia a dia

(En)Cena – Quais tipos de serviços de saúde o programa oferece e quais são os profissionais envolvidos nas visitas domiciliares?

Patrícia Sousa – A equipe multi oferece serviços de saúde no ambiente domiciliar, garantindo atendimento especializado e contínuo a pacientes com condições que exigem cuidados frequentes, mas que podem ser tratados fora do hospital. Os serviços prestados são vários e dependem da composição da equipe, mas estão entre acompanhamento médico, cuidados de enfermagem, fisioterapia, suporte psicológico e outros. Os profissionais envolvidos nas visitas incluem médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, técnicos de enfermagem e, dependendo das necessidades do paciente, assistentes sociais e nutricionistas

(En)Cena – Patrícia, um dos objetivos desta entrevista é entender ⁠⁠como o programa pode atender a comunidade e quem se encaixa como perfil de usuário. Assim sendo, como é realizada a avaliação inicial do paciente e o acompanhamento ao longo do tratamento?

Patrícia Sousa –  A avaliação inicial do paciente é feita por uma equipe multiprofissional, que visita o paciente e faz um apanhado geral das condições de saúde, necessidades de cuidados e do ambiente familiar. Esse momento é muito importante para criar um plano de atendimento personalizado, que é o que vai definir a frequência das visitas e os profissionais envolvidos no caso de cada paciente. Ao longo do tratamento, o usuário do programa é acompanhado de perto pela equipe, que ajusta o plano conforme a evolução do quadro, e garante que ele receba os cuidados adequados e que a família também esteja orientada para participar do processo. 

(En)Cena – Como o programa contribui para a redução de internações hospitalares e para o bem-estar do paciente e da família?

Patrícia Sousa – O intuito do programa é justamente acompanhar o paciente no domicílio para que ele tenha uma certa qualidade de vida e consiga de certa forma no seu lar, ter o atendimento adequado, pensando inclusive numa ideia de humanização. Esse programa também vem como estratégia na diminuição de internações e ocupação de leitos em hospitais, pois muitas das vezes o paciente pode ser acompanhado em casa e está no hospital ocupando um leito que poderia servir para outro paciente em uma situação mais grave ou de maior vulnerabilidade, ao qual tem maior necessidade daquele leito. Buscar qualidade de vida, trazer conforto e bem-estar no domicílio, no ambiente de casa, da família, a fim de favorecer a reabilitação do paciente.

(En)Cena – Como o “Melhor em Casa” lida com emergências e mudanças no quadro clínico dos pacientes atendidos?

Patrícia Sousa – Quanto às emergências que o programa lida, depende muito do caso. A equipe do “Melhor em Casa” transporta alguns equipamentos que a depender da emergência, eles mesmos vão prestar os primeiros socorros. Quando não, a equipe encaminha o paciente entrando em contato com a ambulância ou SAMU. Esse atendimento vai ocorrer com certa prioridade por ter sido caracterizado como urgência pela equipe. Quanto às mudanças no quadro clínico, é de acordo com a necessidade do paciente, todo tipo de procedimento é administrado pela equipe, desde medicamentos via oral aos intravenosos – toda necessidade que o paciente demonstrar na hora da visita será atendida pelo Melhor em Casa que estará capacitada pra fazer, até porque é uma equipe de multiprofissionais com médico, enfermeiro, fisioterapeuta, entre outros. Quando o caso passa da assistência que o programa pode oferecer de imediato, a equipe conta com uma certa prioridade no encaminhamento do paciente a um segundo serviço da Rede Municipal de Saúde.

(En)Cena – Quais são as principais parcerias ou colaborações que o programa estabelece com outras unidades de saúde?

Patrícia Sousa –  O programa Melhor em Casa faz parte da rede municipal de saúde, então tudo o que ele necessitar para dar prosseguimento ao atendimento do paciente dentro da rede, ele pode encaminhar. Exemplo: O CER, (Centro Especializado em Reabilitação), o CEO (Centro de Especialidades Odontológicas), o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), Hospital Municipal, que também pode ser a necessidade do paciente, entre outros. Quaisquer serviços da Rede Municipal de Saúde podem ser acessados pela equipe do Melhor em Casa para promover o bem-estar e saúde dos pacientes.

(En)Cena – Como os resultados do programa são avaliados em termos de impacto na saúde pública e na qualidade de vida dos pacientes?

Patrícia Sousa –  Os resultados são acompanhados como todos os outros programas, a depender da gestão municipal de saúde. Tem gestão que faz a avaliação e manutenção dos programas de maneira quadrimestral, outras trimestralmente e assim por diante. Geralmente é feita a classificação de risco na ficha dos pacientes, que ao final do prazo determinado pela gestão, é reavaliada e registrada. Para o acompanhamento do paciente em casa, é feito um prontuário que fica sob os cuidados do mesmo (ou da família), onde a cada visita da equipe é feito um registro e todos os profissionais presentes assinam e escrevem os procedimentos executados naquele dia de visita, então é bem interessante pois na hora de fazer o acompanhamento e avaliação desse paciente, esse prontuário serve de instrumento para que se possa visualizar a evolução do mesmo a cada mês. Todavia volto a dizer, cada gestor vai especificar de acordo com seu município e demanda, qual a melhor forma de recolher e analisar e avaliar os resultados advindos da prática da equipe. Aqui onde resido (Redenção/PA) é feito de maneira quadrimestral através de um Relatório detalhado do Quadrimestre anterior (RDQA), no qual se avaliam todos os serviços de saúde do município, então se avalia tudo, inclusive o Melhor em Casa. Em termos de impacto na saúde pública, é muito positivo. É comprovado que o ambiente domiciliar do paciente pode contribuir em muito à sua recuperação, então a proposta do programa obtém em muito uma recuperação mais favorável do paciente, e em termos de números, o programa desafoga muito o Hospital.

(En)Cena – Como funciona a atuação dos psicólogos/profissionais da saúde mental no programa?

Patrícia Sousa –  A atuação do psicólogo é de suma importância. Ter um paciente debilitado e acamado em casa, mexe muito com a estrutura psicológica dos familiares. Sem falar na parte física, a considerar que os esforços que envolvem o cuidado de uma pessoa acamada são muitos e diversos, causando muito cansaço, estresse e ansiedade nos cuidadores formais ou informais, então o acompanhamento com psicólogo a cada semana com escuta, orientação, acolhimento e trazendo para a família estratégias para promover a saúde mental da família e do paciente, é um diferencial na equipe. O psicólogo é tão importante quanto qualquer outro profissional no quadro da equipe e muitas vezes se torna a base para o bom desenvolvimento dos outros profissionais engajados no tratamento do paciente. Através das conversas e do acolhimento feito ali na hora da visita, a família se acalma enquanto os demais profissionais fazem seu trabalho com o paciente. O trabalho multi vai contribuir na evolução do quadro clínico como um todo.

(En)Cena – Expressamos nossa gratidão pela sua disponibilidade e contribuição neste momento. Gostaríamos de lhe conceder a oportunidade de deixar uma mensagem final para o nosso público do portal.

Patrícia Sousa –  O Programa “Melhor em Casa” representa um avanço no cuidado humanizado, trazendo a possibilidade de tratar e cuidar de pacientes no aconchego do próprio lar, ao lado de seus familiares. Com uma equipe dedicada de profissionais da saúde, o programa oferece suporte contínuo e especializado, que garante ao paciente o tratamento necessário sem perder o conforto e a proximidade de seu ambiente familiar. Ao promover o bem-estar e fortalecer os vínculos afetivos durante o tratamento, o “Melhor em Casa” transforma a forma como cuidamos da saúde, levando acolhimento e dignidade a quem mais precisa.

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Além das diferenças: a busca pela dignidade no cuidado em “Intocáveis”

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A importância do cuidado humanizado na prática do cuidador formal

Esta é uma resenha crítica do filme Intocáveis (2011), que analisa a profundidade emocional e humana presente na relação entre cuidador e paciente, explorando a trajetória de amizade entre Philippe, um aristocrata tetraplégico, e Driss, seu irreverente cuidador. O texto abaixo vai destacar como o filme transcende as expectativas convencionais do papel do cuidador, mostrando que o verdadeiro cuidado vai além das técnicas médicas, e envolve empatia, humor e o reconhecimento da dignidade e individualidade de quem está sendo cuidado.

Já pensou na complexidade do papel de alguém que diariamente lida com as necessidades mais íntimas e essenciais de outra pessoa? Esse profissional enfrenta uma rotina desafiadora, marcada por tarefas técnicas e, muitas vezes, repetitivas, que vão desde a administração de medicamentos até o auxílio nas atividades básicas de higiene e mobilidade. Todavia, o trabalho de um cuidador formal ou informal vai muito além das obrigações práticas. Ele está constantemente exposto a contextos de vulnerabilidade emocional, tanto do paciente, quanto da família do paciente, e dele próprio. Lidar com o sofrimento, a limitação física, e o peso emocional de ver alguém em uma situação debilitante exige muito mais do que conhecimento técnico – é algo sobre empatia, paciência e, principalmente, a capacidade de enxergar e valorizar a humanidade do outro.

Neste cenário, o filme “Intocáveis” (2011), dirigido por Olivier Nakache e Éric Toledano, se apresenta para nós como uma narrativa envolvente que fala diretamente ao coração. Ele nos apresenta a história real de uma amizade improvável, mas profundamente transformadora, entre Philippe, um aristocrata que ficou tetraplégico após um acidente, e Driss, um jovem da periferia que, ao contrário de qualquer expectativa, se torna seu cuidador.

Philippe, um homem culto e muito rico, encontra-se condicionado a uma cadeira de rodas e à tristeza que veio com a perda de sua autonomia. Afinal de contas, existem muitos mais desafios além da perda dos movimentos de alguém outrora fisicamente capaz, e no contexto de Philippe não é diferente. As demandas emocionais surgem de imediato e evidenciam a nova condição como limitante e desafiadora. Ele se sente desajustado, isolado e desiludido, até que Driss, um ex-presidiário sem qualquer experiência em cuidados de saúde, entra em sua vida. Driss é diferente, desconectado dos padrões e cheio de experiências aos quais moldaram sua forma de se comportar, e com seu jeito irreverente, é o oposto de tudo que Philippe está acostumado. Em dado momento, tantas diferenças soam como um problema – a incompatibilidade do meio é bem expressada diante dos costumes, rotina e hábitos dos dois. Entretanto, esse conjunto de diferenças se torna a base para uma amizade sincera e revitalizante para os dois.

 O que faz de Driss um cuidador especial não é sua habilidade técnica, considerando que ele nem a tinha, mas sua capacidade de enxergar Philippe como um ser humano completo, com desejos, medos e, acima de tudo, um espírito ainda vivo. Este é o papel do cuidador humanizado. Driss não trata Philippe como um doente ou um fardo; ele o trata como um amigo, alguém com quem pode rir, discutir e viver. A abordagem humanizada, cheia de empatia e humor, é o que permite a Philippe redescobrir a alegria de viver, mesmo dentro das limitações que a tetraplegia lhe impõe.

 Uma das cenas mais emblemáticas do filme ocorre quando Driss se recusa a levar Philippe em um carro adaptado, que em muito se parece um carro de carga para pessoas com deficiência. A cena é carregada de simbolismo e revela muito sobre a relação entre os dois personagens. Ao chegar ao veículo, Driss vê o carro de carga que está preparado para transportar Philippe. No entanto, em vez de aceitá-lo como uma solução prática, Driss enfaticamente se recusa a utilizá-lo, argumentando que Philippe merece ser tratado com dignidade e não como um objeto a ser movido de um lugar para outro. Ele decide, então, colocar Philippe em um elegante Maserati, um carro esportivo que, na visão de Driss, corresponde muito mais à personalidade e ao status de Philippe.

                                                                                                                             Fonte: Youtube

Esse momento é carregado de significados por demonstrar a abordagem única e humanizada de Driss. Para ele, Philippe não é apenas um “paciente”, mas um ser humano completo, com desejos e direitos. Driss recusa-se a permitir que Philippe seja definido por sua deficiência ou tratado de forma inferior. Ao colocar Philippe em um carro esportivo, Driss desafia as expectativas convencionais sobre como alguém com uma deficiência deveria ser tratado e insiste em que seu amigo seja visto e tratado como qualquer outra pessoa, com direito a desfrutar dos prazeres da vida, incluindo a experiência de andar em um carro de luxo. A decisão de Driss reflete sua recusa em aceitar a limitação imposta pela sociedade sobre o que uma pessoa com deficiência pode ou não pode fazer. Ele não se contenta em apenas cumprir suas funções como cuidador, ao contrário, busca oferecer a Philippe uma vida rica e digna, plena de experiências significativas. Essa atitude reforça o tema central do filme sobre a importância de ver além das limitações físicas e reconhecer a individualidade e os desejos de cada pessoa.

Ao longo do filme podemos ver ainda Driss desafiando Philippe a se perceber para além de sua condição física. Ele faz piadas, o leva para aventuras e, mais importante, se recusa a sentir pena dele, comportamento percebido por Phillippe como o grande diferencial entre ele e os outros cuidadores. Ao invés de ver apenas as limitações físicas de Philippe, Driss vê o homem que ele realmente é. Essa visão faz toda a diferença no processo de cuidado, por não se tratar apenas de manter o corpo de Philippe saudável, mas de nutrir seu espírito.

“Intocáveis” é uma bela lição sobre a importância do cuidado que vai além do físico. Ele nos lembra que, mais do que qualquer técnica ou formação, o que realmente importa é a conexão humana, a capacidade de tratar o outro com dignidade, respeito e, acima de tudo, amizade. Essa relação entre cuidador e paciente pode ser transformadora para ambos, e o filme nos mostra isso de maneira tocante e genuína.

FICHA TÉCNICA 

INTOCÁVEIS

Título Original: Intouchables (Original)
Direção e Roteiro: Eric Toledano Olivier Nakache


Elenco: François Cluzet; Omar Sy; Alba Gaïa Kraghede Bellugi; Anne Le Ny; Antoine Laurent; Audrey Fleurot; Benjamin Baroche; Caroline Bourg; Christian Ameri; Clotilde Mollet; Cyril Mendy; Dominique Daguier; Dorothée Brière; Emilie Caen; François Bureloup; François Caron; Grégoire Oestermann; Hedi Bouchenafa; Ian Fenelon; Jean François Cayrey; Jérôme Pauwels; Joséphine de Meaux; Marie-Laure Descoureaux; Nicky Marbot; Sylvain Lazard; Thomas Solivéres.

Ano: 2011
Duração: 112 minutos
Classificação: 14 anos

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Interdisciplinaridade: a nova fronteira no tratamento de pacientes em Home Care

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Como diferentes profissionais colaboram à promoção da saúde mental do paciente em home care.

Primeiro, precisamos entender o que é home care. O conceito de “cuidado em casa” surgiu como forma de atender a necessidade de tornar os serviços de saúde mais acessíveis, personalizados e centrados no paciente, permitindo que o cuidado fosse oferecido no ambiente familiar, e proporcionasse conforto e segurança, especialmente para aqueles com doenças crônicas, idosos ou pacientes em fase terminal. A transição dos cuidados de saúde para o domicílio é uma evolução importante em relação ao modelo tradicional, que era predominantemente focado em unidades de saúde, como USF (Unidade de Saúde da Família) e hospitais de grande porte. Esse modelo centralizado, embora eficaz para tratamentos agudos e intervenções cirúrgicas, mostrou-se limitado para atender às necessidades de cuidados continuados e personalizados, especialmente para pacientes com condições crônicas ou aqueles que necessitam de cuidados paliativos e com dificuldade de mobilidade.

O aumento da expectativa de vida e a prevalência de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças cardíacas, pediram por uma reavaliação de como os cuidados de saúde são oferecidos no Brasil. A demanda por um atendimento mais próximo e humanizado impulsionou a expansão do home care como uma alternativa viável e necessária.

Os benefícios desse serviço são diversos e vão desde a personalização do cuidado, pois permite que o paciente seja tratado de maneira individualizada e com um plano específico de cuidados relacionados às suas necessidades, como a redução de riscos hospitalares, maior autonomia, qualidade de vida e conforto. Para que o sucesso do home care aconteça, faz-se necessário a Equipe Multidisciplinar, uma junção de vários profissionais da saúde trabalhando em conjunto para atender às diversas necessidades do paciente. Essa equipe pode incluir médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, cuidadores e terapeutas ocupacionais, cada um desempenhando um papel específico e direcionado na manutenção e melhoria da saúde do paciente.

O trabalho em equipe no home care permite a divisão de responsabilidades na tomada de decisões sobre o direcionamento dos tratamentos, o que não significa que a responsabilidade individual de cada profissional seja reduzida em relação ao paciente, mas sim que a colaboração entre diferentes perspectivas aumenta as chances de considerar todas as implicações antes de definir as condutas. Além disso, essa abordagem facilita o atendimento, pois um único profissional não precisa lidar com todas as queixas do paciente, especialmente aquelas que se referem a áreas fora de sua expertise. Contudo, como a formação acadêmica individual geralmente não prioriza o trabalho em equipe, essa forma de atuar só pode ser desenvolvida na prática.

Observando o funcionamento da Equipe disciplinar, tem-se: o médico, que coordena o plano de tratamento e monitora a saúde do paciente; o enfermeiro, administrando medicamentos, realizando curativos e monitorando sinais vitais; o fisioterapeuta, que trabalha para melhorar a mobilidade e prevenir complicações físicas; o nutricionista, profissional que elabora planos alimentares que atendem às necessidades específicas do paciente; o terapeuta ocupacional, que adapta atividades diárias para promover a independência; o fonoaudiólogo, auxiliando com dificuldades de fala e deglutição; o assistente social, oferecendo apoio logístico e conectando a família a recursos comunitários; e o cuidador, que auxilia nas atividades diárias, proporcionando apoio contínuo e companhia. Perceba que para todos, existem funções muito específicas e necessárias à saúde física e mental do paciente, e é claro que a Equipe Multidisciplinar pode mudar de formação, a depender da disponibilidade de profissionais na cidade. Mas e o psicólogo, onde fica nisso tudo?

O papel do psicólogo nos serviços de home care

“O psicólogo que participa de uma equipe que faz atendimento em domicílio pode trazer, para os outros membros que a compõem, a subjetividade do paciente, do seu cuidador e da família. É seu papel, também, facilitar a comunicação entre a equipe e os pacientes e/ou familiares.” (Laham, 2004)

                                                                                                                                   Fonte: Freepik

A atuação do psicólogo no home care faz-se fundamental na garantia de um cuidado integral que vá além das necessidades físicas do paciente, abordando também seus aspectos emocionais e psicológicos. De uma escuta ativa ao acolhimento, o psicólogo exerce por diversas vezes, um papel de apoio diante das circunstâncias às quais se envolvem o paciente e sua família em meio à doença. Esse apoio pode versar inclusive sobre o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento para lidar com as mudanças em sua vida, como a perda de independência, a adaptação a uma nova realidade física ou mental, e o enfrentamento de diagnósticos graves ou terminais. Em situações de crise, o psicólogo pode trabalhar para reduzir o sofrimento imediato e proporcionar um alívio emocional que permita ao paciente e à família uma melhor gestão da situação.

É importante frisar que o suporte não se limita ao paciente, mas se estende também à família e aos cuidadores, que frequentemente enfrentam altos níveis de estresse e exaustão emocional ao lidar com as demandas do cuidado domiciliar. O psicólogo nesse caso, pode oferecer momentos de acolhimento para os familiares, ajudando-os a compreender as dinâmicas emocionais que surgem nesse contexto e fornecendo estratégias para manter o equilíbrio emocional. O psicólogo desempenha ainda um papel importante na psicoeducação, informando e educando o paciente e sua família sobre como os aspectos emocionais podem influenciar a saúde física. Esse trabalho pode ser desenvolvido com técnicas de relaxamento, manejo do estresse e comunicação eficaz, capazes de serem utilizadas no dia a dia para melhorar a qualidade do cuidado e a convivência familiar. Nos casos em que o paciente está em cuidados paliativos, o psicólogo ajuda tanto o paciente quanto a família a lidar com o processo de fim de vida. Isso inclui trabalhar na aceitação da condição, auxiliar no alívio do sofrimento emocional e preparar a família para a perda iminente, de maneira que o processo seja vivido com dignidade e o mínimo possível de sofrimento.

De maneira geral, o psicólogo contribui na promoção da qualidade de vida do paciente e dos seus. Isso envolve ajudá-los a ressignificar a experiência da doença, encontrando novos significados e propósitos que podem proporcionar um senso de bem-estar e realização, mesmo diante das limitações impostas pela condição de saúde. Lembrando que a atuação do psicólogo não acontece de maneira isolada ou autossuficiente sobre as outras atuações dentro da equipe multidisciplinar, ao contrário! É “a intervenção em equipe [que] possibilita que diferentes olhares auxiliem a criação de diferentes hipóteses”. (Brandão, 2001, p. 90).

 

Referências

BRANDÃO, S. N. Visita Domiciliar: Ampliando Intervenções Clínicas em Comunidade de Baixa Renda. Dissertação de Mestrado, defendida na Universidade de Brasília, 2001.

GAVIÃO, A. C. D., & PALAVÉRI, F. K. C. (2000). O papel do psicólogo. In Y. A. O. Duarte & M. J. D. Diogo, Atendimento Domiciliar: Um enfoque gerontológico. São Paulo: Atheneu. 

LAHAN, C. F. (2004) Peculiaridades do atendimento psicológico em domicílio e o trabalho em equipe. São Paulo. Disponível em: <link>. Acesso em 19 de agosto 2024.

SILVA, L. B. Doença Mental, Psicose e Loucura: Representações e Práticas da Equipe Multiprofissional de um Hospital-dia . São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.

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O impacto da automação na Psicologia: a busca do equilíbrio entre a IA e o trabalho humano

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A rápida evolução da Inteligência Artificial (IA) e da automação vem transformando ao longo do tempo diversos setores em diferentes áreas de atuação, e a Psicologia não está imune a essas mudanças.

Todos os dias, caminhamos a passos largos rumo à evolução e modificação de histórias, cenários, contextos, práticas e afins, tudo por meio da tecnologia. Assim sendo e enquanto as tecnologias avançam, faz-se muito relevante examinar como a automação de tarefas psicológicas pode afetar os profissionais promotores de saúde mental, bem como encontrar um equilíbrio entre o uso da IA e a preservação dos empregos e da dignidade do trabalho humano.

A automação na Psicologia

A automação envolve a utilização de sistemas de controle e tecnologias da informação para minimizar a necessidade de intervenção humana na produção de equipamentos e serviços. No campo das tarefas psicológicas, a automação está se tornando cada vez mais prevalente, com algoritmos e sistemas de inteligência artificial (IA) sendo desenvolvidos para desempenhar uma variedade de funções de maneira rápida e eficiente. Por exemplo, a triagem inicial de pacientes em clínicas de saúde mental já pode ser automatizada através de questionários online e algoritmos de análise de dados. Um estudo realizado pela Universidade de Stanford demonstrou que algoritmos de IA podem ser tão precisos quanto psicólogos na identificação de transtornos mentais comuns, como depressão e ansiedade.

Não somente nisso, a Inteligência Artificial oferece maneiras diversas de apoiar e aprimorar o trabalho dos psicólogos. Algoritmos de IA podem acelerar a triagem e diagnóstico de transtornos mentais, processando grandes conjuntos de dados. Também podem analisar padrões linguísticos em interações terapêuticas, ajudando o profissional de saúde mental a identificar problemas subjacentes ou progresso terapêutico. A IA ainda personaliza planos de tratamento com base em características individuais dos pacientes e fornece suporte teórico e bases da literatura à tomada de decisão clínica. Assustador? Não, inovador.

                                                                                                                                    Fonte: Freepik

Dispositivos vestíveis e aplicativos de monitoramento de saúde mental utilizam IA para detectar mudanças no estado emocional dos pacientes, permitindo intervenções preventivas e/ou precoces. Na formação universitária de psicólogos, simulações de casos clínicos e programas de treinamento virtual desenvolvidos com IA, ajudam estudantes a adquirir habilidades teóricas e práticas referentes à desenvoltura clínica. Em suma, a IA pode melhorar a eficiência, precisão e acessibilidade dos serviços psicológicos, mantendo a empatia como foco central do cuidado.

Implicações no âmbito do trabalho

Todavia, “nem tudo são flores”. O impacto das IAs nos empregos é uma questão complexa e multiforme, com diversas previsões e muitas incertezas. Alguns especialistas preveem que elas terão um grande impacto na automação de tarefas repetitivas e rotineiras. No entanto, outros acreditam que as IAs também criarão novas oportunidades de trabalho, especialmente em áreas relacionadas à tecnologia, como desenvolvimento de IAs, análise de dados e programação. Além disso, as Inteligências Artificiais podem aumentar a produtividade e a eficiência em muitos setores, o que poderia levar a um crescimento econômico e à criação líquida de empregos em outras áreas. É importante notar que tal impacto nos empregos não será uniforme e dependerá de vários fatores, incluindo o tipo de trabalho, o nível de qualificação necessário e a capacidade de adaptação dos trabalhadores às mudanças tecnológicas.

Seria parcial não admitir que a automação levanta preocupações legítimas sobre o futuro das atividades laborais no âmbito da Psicologia. À medida que mais tarefas são automatizadas, há o risco de que certos trabalhos se tornem obsoletos ou sejam substituídos por tecnologia. Já existem relatos de psicólogos que expressam preocupações sobre o impacto da automação em sua profissão, especialmente quando consideradas questões éticas, sociais e legais.

Apesar das preocupações com a automação, é possível encontrar um equilíbrio entre o uso da IA e a preservação do trabalho humano na psicologia. Em vez de substituir completamente os profissionais, a IA pode ser utilizada como uma ferramenta complementar que potencializa as capacidades dos psicólogos. Como já dito por exemplo, sistemas de IA podem auxiliar na triagem inicial de pacientes, permitindo que os terapeutas se concentrem em casos mais complexos e personalizados. Podem ainda analisar grandes volumes de dados e identificar padrões que podem passar despercebidos, sendo assim uma ferramenta valiosa que ajuda a refinar os diagnósticos e os planos de tratamento.

A automação de tarefas administrativas, como o agendamento de consultas e o gerenciamento de registros, pode liberar mais tempo para os psicólogos dedicarem à interação direta com os pacientes. A IA pode ainda fornecer suporte contínuo aos pacientes fora das sessões de terapia, através de aplicativos que monitoram o estado emocional e oferecem intervenções personalizadas (e claro, supervisionadas pelo psicólogo) quando necessário.

À medida que a automação transforma o campo da Psicologia, é fundamental considerar suas implicações nas atividades laborais dos psicólogos e encontrar maneiras de equilibrar o uso da IA com a preservação do trabalho humano, reconhecendo que as inteligências artificiais vieram para ficar. Adotando uma abordagem cautelosa e colaborativa, é possível garantir que a tecnologia beneficie não apenas a eficiência, mas também a qualidade e a integridade do cuidado psicológico.

REFERÊNCIAS

OLIVEIRA, L. M. de; FERNANDES JUNIOR, L. C. C. Aplicabilidade da inteligência artificial na psiquiatria: uma revisão de ensaios clínicos. Debates em Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 14–25, 2020. DOI: 10.25118/2236-918X-10-1-2. Disponível em: https://revistardp.org.br/revista/article/view/41. Acesso em: 16 mai. 2024.

KAMINSKY, Leah. Como a Inteligência Artificial detecta sinais de doenças que humanos não podem enxergar. BBC Future, 15 mar. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/future/article/20190315-how-ai-can-detect-signs-of-disease-that-humans-miss. Acesso em: 16 mai. 2024.

CARVALHO, A. C. P. DE L. F. DE .. Inteligência Artificial: riscos, benefícios e uso responsável. Estudos Avançados, v. 35, n. 101, p. 21–36, jan. 2021.

 

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Explorando a envelhecência: a vida e a funcionalidade na terceira idade

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Por meio das vivências de seis indivíduos vibrantes, o documentário revela a plenitude da vida após os 60 anos, demonstrando como a rotina pode ser repleta de atividades e bom humor

O documentário “Envelhecência” mergulha profundamente na complexa e multifacetada experiência do envelhecimento. Com uma mistura envolvente de histórias pessoais e análises de especialistas, o filme oferece uma visão abrangente e perspicaz das diversas facetas desse estágio da vida. Através de relatos comoventes de indivíduos idosos e suas famílias, o documentário aborda uma variedade de questões enfrentadas pela população idosa, desde desafios de saúde até questões emocionais e sociais. São explorados temas como a solidão, a busca por propósito e significado na terceira idade, e as dificuldades enfrentadas para se manterem socialmente ativos e engajados na comunidade.

“Envelhecência” também oferece percepções valiosas de profissionais da área da saúde, psicologia e assistência social, que compartilham suas experiências sobre como lidar com os desafios específicos enfrentados pelos idosos. Dentre tais assuntos, o filme destaca a importância da conexão intergeracional e da valorização da sabedoria e experiência dos mais velhos na sociedade contemporânea. Ao longo do documentário, somos levados a refletir sobre como podemos criar ambientes mais inclusivos e solidários para os idosos, promovendo sua qualidade de vida e respeitando sua dignidade. “Envelhecência” nos inspira a reconhecer o valor intrínseco da velhice e a redefinir nossas percepções sobre o envelhecimento, oferecendo uma poderosa celebração da vida em todas as suas fases.

Casos da vida real

O documentário explora o conceito de envelhecimento com vitalidade e liberdade, mergulhando na revolução da longevidade e seu impacto tanto individualmente quanto na sociedade. Através de narrativas inspiradoras, o filme destaca pessoas que desafiam as expectativas sociais, encontrando alegria e realização em atividades como corrida e surfe, independentemente da idade. Enfatizando a importância da atividade física para a saúde e a superação das limitações associadas ao envelhecimento, ele também compartilha histórias tocantes de perseverança e autodescoberta. “Envelhescência” encoraja uma vida vivida segundo os próprios termos, incentivando a quebra de tabus e estereótipos sociais sobre o envelhecimento.

Judit Gaggiano exibe um corpo adornado com tatuagens e mais de 20 piercings, enquanto compartilha momentos em um moto clube ao lado de seu filho. Após escapar de um relacionamento abusivo, a morte do esposo desencadeou uma transformação profunda em Judit. Ela emergiu como uma versão completamente diferente de si mesma. Decorando seu corpo com tatuagens e piercings, trocando o blazer por uma jaqueta de couro, e se integrando a um moto clube, ela abraçou uma nova identidade com fervor.

Aos 84 anos, Oswaldo Silveira, maître de profissão, mantém uma rotina disciplinada ao acordar cedo todos os dias para calçar seus tênis e enfrentar de 10 a 15 quilômetros de corrida antes do trabalho. Em seu relato, ele compartilha as dificuldades de sua infância, marcada pela perda precoce da mãe, o que resultou na separação dos irmãos ao redor do Brasil. Iniciando sua jornada profissional aos 10 anos como garçom, ele gradualmente ascendeu a barman e hoje continua como maître. Desde tenra idade, Oswaldo demonstrou paixão pelos esportes, especialmente corrida e futebol. Aos 50 anos, decidiu abandonar o futebol para se dedicar inteiramente à corrida, rapidamente se destacando como maratonista. 

Ono Sensei, mestre de Aikidô, entra em sua nona década com a destreza e agilidade de um jovem, continuando a lecionar sua arte marcial com maestria. Sua vida é marcada por uma atitude ativa e saudável, estendendo-se além das práticas marciais. Além de ser um mestre de Aikidô, Ono Sensei também é acupunturista e dedica-se a ensinar técnicas de respiração diárias, com sessões que duram duas horas. Desde cedo, ele reconheceu a fugacidade da vida e a importância de mantê-la ocupada. Sua filosofia de vida reflete a crença de que a verdadeira felicidade reside na ocupação constante e significativa do próprio tempo.

Mesmo aos 74 anos, Luiz Schirmer continua a desafiar os céus com a mesma paixão que o impulsionou desde a adolescência: o paraquedismo. Em uma idade em que muitos optam por atividades mais calmas e seguras, Schirmer destaca-se ao persistir nessa aventura extraordinária. Cada salto é um testemunho não apenas de sua coragem e determinação, mas também de sua vitalidade e espírito indomável. É um exemplo inspirador de como a idade não precisa ser um obstáculo para perseguir paixões e conquistar novos horizontes.

Edmea Corrêa descobriu sua paixão pelas ondas após ultrapassar a metade de um século de vida. Aos 58 anos, iniciou sua jornada como surfista motivada pelo filho, que aos 24 anos enfrentou uma doença rara que o deixou cego. Inspirada por um projeto de surf adaptado para pessoas com deficiência visual, Edmea decidiu experimentar as ondas junto com seu filho. Desde a primeira aula, foi um encontro transformador. Ela se apaixonou pelo surf instantaneamente, descrevendo-o como “amor à primeira onda”.

Edson Gambuggi, aos 76 anos, tornou-se calouro na faculdade de Medicina, realizando um sonho que fomentou ao longo de toda sua vida. Apesar das tentativas durante sua juventude, as dificuldades do processo e as responsabilidades familiares o levaram a adiar esse objetivo. Em 1971, optou por cursar Direito, buscando estabilidade financeira e uma melhor qualidade de vida para sua família. No entanto, com a chegada da aposentadoria, o tempo ocioso trouxe à tona o desejo inabalável de estudar medicina. Para Edson, essa jornada representa não apenas a busca por conhecimento, mas também a realização de um propósito adiado por décadas.

O receio do envelhecimento é algo comum a todos nós, mas é mais recompensador aceitar esse processo em vez de lutar pela perfeição e juventude eterna. Envelhecer é uma parte natural e inevitável da vida e, embora apresente desafios, devemos sempre considerar a alternativa – morrer jovem, mesmo velho. Para tal, faz-se necessário manter um senso de humor e vitalidade, pois isso nos permite surpreender os outros e manter conexões sociais vivas. Oswaldo, por exemplo, destaca os benefícios da corrida e como ela contribui para uma vida longa e saudável. A sensação de realização e triunfo ao completar uma maratona é descrita por ele como indescritível, trazendo orgulho e impulsionando a autoestima. Abraçar o processo de envelhecimento e manter uma mentalidade positiva pode levar a uma vida gratificante e satisfatória.

O segredo, segundo “Envelhecência”, reside em concentrar-se na busca por interesses e em manter uma qualidade de vida elevada ao longo de toda a jornada, inclusive na velhice. Devemos evitar nos sentir perdidos ou inativos e é essencial aproveitar ao máximo o tempo que nos é dado, resistindo à ideia de nos considerarmos “velhos” prematuramente. Devemos valorizar a importância de permanecer ativos, buscando a felicidade e realizando atividades que nos tragam alegria. Faz-se importante lembrar também, que a velhice é uma etapa universal da vida, inevitável para todos, independentemente de outros aspectos sociais. Assim, é fundamental que construamos desde já uma base sólida para um envelhecimento futuro pleno e gratificante.

FICHA TÉCNICA

Um documentário de ProacSP (Incentivo de Cultura do Estado de São Paulo)

Direção: Gabriel Martinez

Produção: Samarah Kojima

Direção de fotografia: Daniel Dias

Montagem: Caio Rodrigues

Duração: 1:24:00

Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=i4cLyLdK5EA>

 

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Plasticidade cerebral na velhice à luz da vivência de Édson Gambuggi

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O envelhecimento é um processo natural que pode ser encarado como uma fase de desenvolvimento humano rica e significativa. Este insight, fundamentado no documentário “Envelhescência”, gravado em 2015, destaca a história inspiradora de Édson Gambuggi, um médico que iniciou seus estudos de medicina aos 76 anos e concluiu o curso aos 82 anos.

Enfrentando desafios como a adaptação a um novo ambiente acadêmico e uma rotina de estudos intensa, Édson personifica a capacidade do cérebro humano de se adaptar e se regenerar, um fenômeno conhecido como plasticidade cerebral. Tal conceito é respaldado por teorias que indicam que o cérebro é capaz de reorganizar suas conexões e até mesmo criar novos neurônios, independentemente da idade.

A jornada de Édson ilustra vividamente como a plasticidade cerebral pode ser acionada mesmo em idades avançadas, permitindo que indivíduos continuem aprendendo, crescendo e se desenvolvendo ao longo da vida. Esse fenômeno é explorado aqui à luz dos estudos de Papalia e Feldman (2012), que abordam o envelhecimento do cérebro e os mecanismos envolvidos na sua adaptação às novas experiências e desafios.

O caso de Édson Gambuggi não apenas demonstra a capacidade de superação e resiliência dos idosos, mas também destaca a importância de reconhecer o potencial de crescimento e aprendizado em todas as fases da vida. O envelhecimento, longe de ser um declínio inevitável, pode ser uma jornada de descobertas e realizações profundamente enriquecedoras.

Plasticidade cerebral

A plasticidade cerebral encontra-se na possibilidade e capacidade do cérebro de se adaptar e remodelar ao longo da vida em resposta às experiências vivenciadas. Quando ocorre uma nova aprendizagem, os neurônios cerebrais estabelecem conexões entre si, formando uma rede neural que registra essa informação. Com cerca de 86 bilhões de neurônios, o cérebro humano é composto por células nervosas que captam, processam e transmitem informações aprendidas ao longo das experiências. Essas conexões entre os neurônios, chamadas sinapses, apresentam-se como fundamentais à comunicação no cérebro, e são fortalecidas através da prática repetida de uma atividade, o que significa que quanto mais uma habilidade é exercitada, mais intensas e consolidadas se tornam as sinapses relacionadas a ela. Por outro lado, comportamentos pouco frequentes não estabelecem conexões fortes e não solidificam hábitos.

A plasticidade cerebral ocorre de forma dinâmica e adaptativa. Quando uma parte do cérebro é afetada por um trauma externo, como lesão ou doença, o mesmo se reorganiza para compensar as funções prejudicadas, redistribuindo tarefas entre outras áreas saudáveis. Essa capacidade de reorganização contribui para a recuperação e adaptação do cérebro diante de desafios e mudanças ao longo da vida.

De acordo com Papalia e Feldman (2012, p.582), “as mudanças que ocorrem com o envelhecimento do cérebro de pessoas saudáveis são sutis e fazem pouca diferença em seu funcionamento.” Além disso, a plasticidade cerebral pode “reorganizar os circuitos neuronais para responder ao desafio do envelhecimento neurobiológico” (Park e Gutchess, 2006, p.107). É comum ao cérebro em envelhecimento que diminua de tamanho e perca parte de suas células nervosas. Todavia, “a perda neuronal não é substancial e não afeta a cognição” (Burke e Barnes, 2006; Finch e Zelinsky, 2005).

Apesar da realidade advinda do envelhecimento natural do ser, o caso de Édson demonstrou de forma impressionante o que Brayne (2007) afirmou: a deterioração cerebral não é inevitável e nem todas as mudanças são destrutivas. Conforme Papalia e Feldman (2012), cérebros mais velhos têm a capacidade de criar novas células nervosas a partir de células-tronco, e evidências de divisão celular foram encontradas no hipocampo, região relacionada à aprendizagem e memória.

Durante sua vida, Édson Gambuggi cultivou sinapses fortes, fortalecendo seus hábitos de estudo e trabalho. Após concluir sua segunda graduação e trabalhar por anos na área do Direito, Édson se aposentou conforme o prazo estabelecido. Sua esposa relatou:

“Quando ele se aposentou, eu nunca imaginei que ele fosse ficar sentado dentro de casa lendo jornal, porque ele nunca foi disso, nunca foi de ficar parado. Aí ele começou a correr atrás do sonho dele de fazer medicina, ele não parou. Eu nunca nem pensei que ele se aposentando fosse ficar em casa sem fazer nada.” (Arthemis Gambuggi, 2015).

Mesmo diante dos desafios impostos pelo envelhecimento natural do cérebro, que podem resultar em uma diminuição na rapidez da transmissão dos impulsos neuronais e afetar as funções cognitivas e motoras, Édson não experimentou danos significativos em suas habilidades executivas e sua idade avançada não o impediu de embarcar e concluir sua jornada acadêmica na Medicina, mesmo aos 76 anos. A dedicação contínua aos hábitos de estudo ao longo da vida, juntamente com sua boa saúde física e mental, mitigaram as limitações associadas à idade, permitindo que ele ampliasse suas capacidades e habilidades nesse período de sua vida.

Plasticidade cerebral no envelhecimento

Antigamente, a biologia afirmava que apenas o cérebro ainda em desenvolvimento teria capacidade de remodelação através da plasticidade – o adulto e o idoso estariam fadados aos eventuais desgastes cerebrais ocorridos no decorrer de sua vida. Todavia, o próprio Édson é um argumento vivo de que isso não procede. A plasticidade cerebral não é interrompida pela idade – é continuada enquanto hajam estímulos capazes de promover novas sinapses entre os neurônios. Muito embora o cérebro não seja capaz de se regenerar, ele possui a habilidade de reorganização, adaptação e modificação no processamento de informações. Este rearranjo forma novas sinapses forçadas.

“Assim, múltiplas possibilidades de respostas ao ambiente tornam-se possíveis, pois o cérebro é altamente maleável e com os estímulos adequados e intensos pode-se modificar a estrutura cerebral desenvolvendo habilidades e retardando o próprio envelhecimento natural.” (ABREU, 2020)

A história de Édson nos mostra como ele se afastou da rotina monótona e automática, buscando constantemente novos desafios para alimentar sua motivação. Seu desejo persistente de cursar medicina o levou a explorar oportunidades no Brasil, na Bolívia e na Argentina, mesmo enquanto equilibrava suas responsabilidades familiares e profissionais. Ao longo dos anos continuou a fortalecer essa motivação, independentemente do tempo necessário para realizar seu sonho. Assim como um músculo que é exercitado regularmente, sua determinação foi alimentada por suas experiências de vida. Seu cérebro se adaptou às mudanças e desafios do novo caminho que escolheu, desenvolvendo alterações funcionais para enfrentar os obstáculos que surgiam em sua jornada.

Aspectos cognitivos de Édson

“Declínios na força e na energia muscular resultam de uma combinação do envelhecimento natural, diminuição da atividade e doença.” (PAPALIA; FELDMAN. 2012, p.584).

 À medida que envelhecemos, é natural que ocorra um declínio no funcionamento do cérebro, resultando em uma diminuição na sua capacidade e proporção. No entanto, evidências científicas mostram que ainda é possível a divisão celular no hipocampo, uma região crucial para a aprendizagem e memória (Eriksson et al., 1998; Van Praag et al., 2002). Édson teve que encontrar novas estratégias para estimular seu cérebro e absorver as informações durante seus estudos na faculdade. Uma dessas estratégias foi o desenvolvimento de relacionamentos interpessoais com os jovens ao seu redor, que compartilhavam de seu sonho e experiências de vida.

Contextualizando Papalia e Feldman (2012, p. 584), a idade funcional destaca-se pela habilidade de se relacionar com pessoas de diferentes idades e adaptar-se a diferentes ambientes. A conexão entre o idoso e o jovem proporciona crescimento mútuo. Através desses vínculos, Édson teve a oportunidade de compartilhar conhecimentos e habilidades, o que resultou em um aumento de sua autoestima e crenças fortalecidas em sua capacidade de enfrentar desafios.

“O começo das aulas foi meio cansativo, mas a todo instante a graça da garotada enriquecia o meu espírito, (…) e acabei levando as coisas de maneira que, no fim fui sendo absorvido por tudo aquilo, sem me perceber que eu sou tão velho em relação a isso.” (Edson Gambuggi, 2015).

 

Retornar aos estudos na velhice trouxe a Édson um renovado sentimento de autoconfiança, experiência compartilhada por muitos idosos na mesma situação. Tal exemplo inspirador nos lembra que a idade não precisa ser vista como um obstáculo para alcançar nossos objetivos. A vida plena pode ser desfrutada em qualquer fase, e a velhice não tem que representar um caminho para a solidão ou desânimo – ela pode ser uma oportunidade de aproveitar o tempo de forma significativa. É um período de maturidade, libertação de amarras sociais e realização de sonhos adiados. A respeito, a plasticidade cerebral vem como potencializadora da capacidade do cérebro de se adaptar e aprender ao longo da vida, reforçando a ideia de que o tempo restante pode ser dedicado ao que antes era deixado de lado pela falta de tempo. A consciência da finitude da vida deve nos motivar a buscar o que realmente importa, vivendo com propósito, prazer e compromisso com nossa própria felicidade.

Referências

ALTMAN, Miriam. Envelhescência: um fenômeno da modernidade à luz da Psicanálise. Rev. bras. psicanál, São Paulo, v. 48, n. 1, p. 203-206, abr. 2014.

Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-

641X2014000100018&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 21/03/2024

PAPALIA, D. E. e FELDMAN, R. D. (2013). Desenvolvimento Humano. Porto Alegre, Artmed, 12ª ed.

ENVELHESCÊNCIA. Direção: Gabriel Martinez. Produção: Samarah Kojima.

São Paulo: Proac SP, 2015. 1 DVD (84 min). Disponível em: <https://goo.gl/YN2zQO>. Acesso em: 10/10/2021.

GAMBUGGI, Edson. Aos 82 anos, paulista realiza sonho e se forma médico, entrevista concedida a Giovana Sanchesz, G1, em São Paulo. 15/07/09-12h56.

GOLEMAN, Daniel,ph.D.Inteligência Emocional:Rio de Janeiro:Objetiva,2011.

MINOZZO, Leandro. Um novo envelhecer: Tempo de ser feliz. Porto Alegre: WS editor, 2012.

 

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Bate-papo com Pedro Henrique Furtado

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TEMA: Desvio da atenção e perda do foco em função da tecnologia.

Nenhuma cadeira fica de pé sem 3 apoios. Neste caso é: escola, família e estudante.

(En)Cena entrevista Pedro Henrique Furtado, professor, graduado em Matemática e Física pela Universidade Luterana do Brasil, com MBA em Gestão Escolar pela USP. Atualmente exerce a função de Diretor Escolar no Colégio Simbios em Goiânia/GO, e possui especialização em Metodologias do Ensino de Física e Matemática.

 

(En)Cena: Pedro, é um prazer entrevistá-lo. Para começarmos, gostaria que você nos explicasse de onde surgiu seu interesse pela educação. Ser professor sempre foi seu projeto? Como tem sido pra você ser diretor escolar?

Pedro: Sim, ser professor… Definitivamente, lecionar! Sempre me vi feliz ao estar na frente dos colegas apresentando um trabalho. Fosse no quadro, cartolina ou nos slides. Cogitei me tornar engenheiro, mas para dar aula de engenharia. Ser professor sempre foi um alvo particular. Hoje como diretor escolar, reconheço que o apreço pela organização, coordenação e gestão, habilidades que os colegas sempre destacaram em mim, me fizeram chegar a essa função de gerir, ou dirigir. A função de diretor não é fácil, não é apenas cuidar dos professores e alunos ou atender famílias. Tem muita coisa em jogo a respeito do mercado escolar com suas estratégias, táticas e operações. Detalhes como precificação, marketing, engajamento, gráficos e muitas planilhas e relatórios.

(En)Cena: Quais são as principais diferenças na rotina e nas responsabilidades entre exercer a função de professor e a de diretor?

Pedro: O diretor escolar necessariamente precisa (eu diria que deve) ser professor. A sala de aula é um treinamento quanto à gestão do tempo, do conteúdo, da conversa, da atenção e foco do aluno. E somente um diretor que passou pela sala de aula como professor entenderá os desafios e necessidades dos seus professores. Há muita semelhança, mas eu destaco como principal diferença o olhar macro, e nesse olhar, enfatizo o conhecimento da legislação educacional. Há um universo extenso de leis, portarias e documentação para dominar.

(En)Cena: Pedro, um dos objetivos desta entrevista é entendermos sobre os efeitos benéficos e maléficos do uso de tecnologias no âmbito escolar. Assim sendo, gostaríamos de discutir os desafios relacionados aos desvios de atenção e à perda de foco devido ao uso de tecnologia pelos alunos neste contexto. Como você, enquanto diretor, enxerga essa questão?

Pedro: Os estudantes mudaram muito na última década, essa mudança foi muito forte após a pandemia. Dos malefícios, vou destacar um: a perda do foco e da atenção durante a aula. Não é mais suficiente o professor elaborar uma aula atrativa, eu diria que o professor tem que ser atraente. Não é apenas lecionar bem, mas ter muita conexão com seu aluno. A atenção do atual estudante é frágil. De igual modo, nos benefícios, destaco um: velocidade do compartilhamento. Um professor consegue entregar para seu aluno muito mais que 45 ou 50 minutos de aula. Ele consegue envolver o aluno no ato de estudar por um dia inteiro. Há muitas formas, por meio da tecnologia, de manter esse aluno nutrido com atividades, leitura e tarefas que agregam muito tempo de estudo para ele.

(En)Cena: Quais são os principais desafios enfrentados pela escola em lidar com o desvio de atenção causado pelo uso constante de dispositivos tecnológicos?

Pedro: Manter a atenção do aluno naquilo que se precisa passar. O celular é um vício, sem dúvida. Não sou daqueles que criminalizam o celular ao ponto de não poder trazê-lo para a escola. Não vejo problema no ato de trazer, apenas preciso de regras bem estabelecidas com relação ao uso. Tenho professores que combinam com seus alunos que o celular deve ficar dentro da bolsa e pronto. Nem ao sair de sala para ir ao banheiro esses professores permitem que os alunos o levem no bolso. Apesar disso, a dependência das telas é um fator destrutivo para o foco e a atenção, como mencionei anteriormente. Volto a dizer, não se trata apenas de tornar a aula atrativa, mas de ser um professor atraente em sua didática, eloquência e conduta diante da turma.

(En)Cena: Em sua opinião, de que forma o desvio de atenção relacionado à tecnologia pode impactar o bem-estar emocional e psicológico dos alunos? Você acredita que tal situação pode estar contribuindo para o aumento de problemas de saúde mental entre os alunos? Se sim, de que forma?

Pedro: De várias maneiras, da perda do raciocínio, até as perdas das habilidades sociais e emocionais. Acredito, especialmente no aspecto da desregulação do sono. Ter dormido bem é crucial para assistir a uma boa aula. Fisiologicamente, o impacto é sonolência, constantes dores de cabeça, tensão muscular, ardência dos olhos… Que dirá cognitivamente. Tenho estudantes que ficaram tão acostumados com a tecnologia, no aspecto de obter respostas rápidas na internet, que procuram seus professores para perguntas simples como: “Qual foi a primeira capital do Brasil?”. Bastava uma busca e eles teriam essa resposta em segundos, não precisariam ter percorrido a escola inteira atrás do professor para descobrir que a primeira capital do Brasil foi Salvador, na Bahia. E durante a aula, algumas perguntas tão óbvias são levantadas pelos alunos, mas parece que eles não buscam minimamente por 5 segundos em sua mente a possível resposta. 

(En)Cena: A unidade que você trabalha dispõe de um psicólogo escolar? Como a equipe pedagógica trabalha em conjunto com esse profissional, tendo em vista as demandas causadas pelo problema aqui levantado? 

Pedro: A unidade em que estou não possui um psicólogo escolar. Estamos buscando esse profissional, mas isso envolve um estudo orçamentário para não termos apenas um, pois entendemos que os psicólogos serão muito procurados dentro da escola.

(En)Cena: Como a escola tem envolvido os pais e responsáveis no combate ao desvio de atenção causado pela tecnologia, considerando o impacto familiar e social desse problema?

Pedro: Infelizmente, os pais também estão com déficit de atenção. Todos nós, na verdade, devemos ter algum grau de déficit de atenção. A escola em que sou diretor tem o perfil de aprovação e resultados. Sendo assim, conscientizamos as famílias e os estudantes de que focar no momento de estudos é um fator obrigatório. Incentivamos os estudantes a se ensinarem uns aos outros como método de aprendizado, mas também para que evoluam em suas relações sociais.

(En)Cena: Qual é sua percepção sobre a expectativa dos pais e alunos de que o diretor escolar assuma responsabilidades semelhantes às do psicólogo dos estudantes? Qual a relevância dessa prática psicológica no contexto atual, especialmente considerando o cenário tecnológico pós-pandêmico?

Pedro: Os pais transferiram responsabilidades difíceis aos diretores e coordenadores. Mas não apenas as difíceis, até as responsabilidades mais simples, como dizer ao adolescente que ele precisa tomar banho antes de vir para a escola porque isso é higiene pessoal. Esse é um exemplo da simples transferência que a escola recebeu das famílias. Outros mais graves também recebemos, como ser os primeiros a saber que uma criança ou adolescente vem sendo abusado sexualmente por um familiar seu, e a criança não consegue contar para outra pessoa senão seu diretor ou coordenador. Isso mostra o quanto é necessário que os pais tenham momentos de troca com seus filhos. Sobre o psicólogo, vejo como muito importante o acompanhamento feito por ele, até porque nem sempre dispomos de técnicas psicológicas necessárias para intervir. Equipe pedagógica não deveria fazer esse papel.

(En)Cena: Expressamos nossa gratidão pela sua disponibilidade e contribuição neste momento. Gostaríamos de lhe conceder a oportunidade de deixar uma mensagem final para o nosso público do portal.

A mensagem final é: enquanto houver escola, haverá a possibilidade de transformar a sociedade. A escola sempre foi muito forte e sempre será, o que precisamos é apenas que as famílias estejam sempre do lado da escola. A relação de parceria é crucial, uma relação que eu chamo de tripé, assim como nenhuma cadeira fica de pé sem 3 apoios: escola, família e estudante.

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(Re)definindo limites: uma narrativa sobre coragem, profissão e psicologia

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Relato pessoal sobre como a satisfação profissional é possível e atemporal

Já passou pela sua cabeça que nem todo mundo tem certeza absoluta sobre o que quer ser na vida? E que a escolha profissional de alguém pode estar além do final do ensino médio? Pois é. Esta é a história de uma formanda em psicologia que perpassou por vários dilemas e faculdades antes de chegar aqui.

Eu sou Amanda, professora e mestranda em Filosofia, acadêmica do 9º período de Psicologia. O intuito desse relato é, de alguma forma, te acolher dentro das possíveis dúvidas que um processo de escolha de carreira pode gerar. Para entender o contexto, você precisa saber que eu fui uma criança um pouco diferente do que se esperava na época. Negociava meus lanches por livros, passava recreios inteiros dentro da biblioteca folheando enciclopédias e facilmente trocava interações sociais por um momento a sós com minha literatura. O uso das telas em casa era limitado e a superproteção dos meus pais limitava a minha vida social (o que só se tornou um problema na adolescência, mas isso já era esperado).

Vivendo uma adolescência um pouco conturbada, o ano era 2008 e eu estava saindo do ensino médio com nada além da certeza de que não sabia que rumo tomaria. Durante a infância, meus pais foram presentes e empenhados em fazer do meu processo educacional o melhor. Estudei em boas escolas e tive todas as oportunidades que eram possíveis naquela época. A questão é que ainda assim, não me senti segura para escolher um curso superior ao término do ensino médio. Depois de pensar várias vezes e não concordar com os resultados dos testes vocacionais, o desespero e a pressão de todos sobre uma decisão, começou a me deixar em sofrimento. Na época, eu tinha uma professora muito querida que fez brotar em mim o interesse em cursar História. Soou como uma boa possibilidade. Todavia, eu queria estudar História pois aquela menina curiosa que trocava lanches por livros, queria saber das histórias e não necessariamente ensinar sobre elas. Sem muitas opções por afinidade, era hora de comunicar aos meus pais a minha decisão.

A cidade que eu residia era interiorana e não possuía o curso, logo, se levasse a frente o planejamento, precisaria montar toda uma logística para sair da cidade e estudar fora. A resposta dos meus pais foi “não”. Por seus particulares motivos, decidiram que eu não sairia da cidade para estudar, teria que escolher entre algum dos cursos disponíveis na faculdade local. E foi assim que eu ingressei no meu primeiro curso superior: Direito. Agora é o ponto em que você pode pensar: “Qual o problema em cursar Direito?” Aparentemente nenhum, caro leitor. Exceto por uma coisa: eu odiava o Direito. Vale salientar que eu tinha dezesseis anos e não consegui – por nove períodos – me imaginar em qualquer que fosse a área de atuação relacionada ao curso. Por algum tempo tentei me encaixar pelos meus pais, porque os dois estavam felizes com a decisão. Os exemplos de familiares próximos que tinham sucesso na carreira jurídica, também eram reforçadores para que eu continuasse no curso. Só que lá no dentro de mim eu sentia que aquilo não daria certo.

Quando o primeiro ano de curso estava chegando ao final, minha mãe decidiu que eu iria estudar fora, mas não era Direito. No final de 2009, fui aceita em um programa para jovens músicos em Belo Horizonte, um tipo de internato com duração de dois anos. Ah, eu falei que sou musicista “de berço”? Pois é. Mas isso também não era algo que eu queria fazer. A música sempre foi um hobby pra mim e eu não queria institucionalizar isso. Neste momento, a minha retida vida social estava ganhando forma e sobre isso, eu estava muito bem. Todavia, era a chance que eu tinha de me livrar do Direito pelo menos por um tempo e assim aconteceu. Em 2010 então cheguei em Belo Horizonte para residir por 2 anos e aprender muito sobre música e afins. O curso não era de nível superior, mas foi um técnico que me acrescentou muitas trocas e experiências. Passado o tempo, era hora de voltar para casa e consequentemente para a faculdade. Sem a menor empolgação e expectativa de futuro, continuei por mais 4 períodos, até que casei e mudei-me para Palmas. Aqui muitas coisas mudaram, mas por vários motivos eu tinha medo de deixar o Direito. Um deles era sentir a decepção dos meus pais no olhar dos meus pais. Nessa época eu entendia que “honrar pai e mãe” significava viver a vida conforme as decisões deles, e isso me prendeu por muito tempo a decisões que não eram minhas. Transferi o curso pra cá e me tornei aluna da Ulbra pela primeira vez, em 2014.

Nesta época eu trabalhava, estudava, e não poderia estar mais frustrada sobre qualquer coisa relacionada ao Direito. O ano era 2015 e nada melhorava minhas expectativas a respeito. Lembro de ter conversas com outros acadêmicos cheios de perspectivas sobre suas futuras profissões e eu não sentia nada além de um desânimo profundo. Até que um dia, fui adornada pela possibilidade de um “amor antigo”, a Filosofia. No início, pensei que poderia ser algo somente para melhorar meu humor e não para deixar o Direito, até porque eu não me via professora de Filosofia. Ela sempre foi um “lugar mágico” pra mim, onde desde a adolescência eu frequentava a fim de entender os mistérios sobre o mundo e as pessoas. Fiz vestibular na Universidade Federal do Tocantins e quase não me contive de alegria quando saiu o resultado positivo. Agora o desafio era conciliar duas faculdades e um emprego – não deu certo. Logo, os problemas com o Direito ganharam ainda mais evidência e os reforços da Filosofia também, foi este o cenário perfeito para que eu pudesse finalmente enfrentar meus pais e dizer que iria desistir do Direito por hora. Foi uma decisão difícil com reflexos que ressoaram quase até os dias atuais.

Este foi o período inicial da minha primeira transição, mas ainda não foi de carreira, apenas de nicho. Lembra que eu disse que era musicista de berço? Em paralelo a todos esses dilemas acadêmicos, construí uma carreira sólida e agradável como professora de Música. Foram muitas escolas, apresentações, eventos, corais, práticas em conjunto e momentos relacionados. Eu amei esse universo todos os dias, até sair dele. Era confortável ser eu ali dentro, porque não era eu à frente – sempre tinha um aluno, um grupo, uma banda, um coral… até que a Pandemia da COVID-19 veio e o que era tranquilo, começou a ser bem complicado. Tinha impressão que minha sala de aula, com 30 crianças ou adolescentes, ganhou uma expansão incalculável. Era pavoroso! Lembro-me do dia em que recebi meu diploma de Filosofia, senti uma alegria imensa, mas ao mesmo tempo muito medo. Dar aulas de Filosofia não seria como lecionar Música e aqui começaram os novos dilemas a respeito.

Em 2020 eu pude conhecer um novo universo, o das consultorias. “Ensinar adultos” fora da sala de aula. Deixei o diploma guardado e comecei a estudar muito sobre desenvolvimento pessoal, bem como sobre como trabalhar com isso. Fiz muitos cursos, palestras, viagens e quanto mais eu estudava, mais sentia que precisava estudar. Essa foi uma jornada de muita relevância para eu ser quem sou agora, pois foi nela que tive meu primeiro contato com a Psicologia. Eu lia e produzia muito conteúdo digital sobre performance e carreiras, imagem pessoal e afins. Me tornei uma Consultora de Carreiras. Todavia, cada vídeo postado, era um caos imenso dentro de mim: eu me sentia completamente invadida e exposta. Como era sofrido ter que me expor! A primeira live na rede social foi um verdadeiro tormento. Tudo aquilo era completamente aversivo para mim. A criança que teve sua vida social “atrofiada” e a adolescente que passou pelo mesmo, eram a mesma adulta que estava ali para mais de 6 mil pessoas todos os dias, se colocando à prova na tentativa de conseguir superar o desconforto. Quanto mais a Consultoria crescia, mais eu queria deixar as redes sociais de vez. Entenda, meu problema não era com o cliente, fiz várias consultorias maravilhosas nesse percurso. A minha questão era a exposição desnecessária e (na minha opinião), sem sentido.

Aqui entrou a relevância do acompanhamento terapêutico na minha vida. Existiam contextos inteiros a serem analisados no meu presente (e alguns no passado), até que eu entendesse qual a função de cada comportamento meu relacionado à minha vida profissional. Não foi (e não é) fácil, mas poderia ter sido muito mais difícil e até improvável, se eu não tivesse alguém para me acompanhar e me ajudar a entender coisas que eu nem sabia que precisavam ser pensadas em mim e sobre mim. Impressionante como saber sobre si mesmo é um combustível para qualquer coisa… eu descobri nesse processo.

2021 foi o ano em que eu iniciei a maior transição da minha vida profissional até hoje. Confesso que jamais havia pensado em cursar Psicologia antes, mas naquele momento fez todo sentido. Era um universo incrível a qual eu estava familiarizada, mas bem distante de compreender, e a cada disciplina cursada, cada teoria aprendida, cada estágio, intervenção e esforço devotados à conclusão dos semestres, eu me sentia mais “em casa”. Foi na Psicologia que entendi coisas sobre o outro e o mundo, que me mudariam completamente. Foi aqui também que eu me tornei um indivíduo em constante “desconstrução de certezas” e absorvi premissas irrefutáveis sobre subjetividade, seja a minha ou a do outro. Encontrei pessoas, histórias, pessoas com histórias e uma série de acréscimos que foram para além do âmbito cognitivo. Hoje, quase ao término deste processo, posso afirmar que eu não mudaria nada. Tudo o que vivi, somou ao meu repertório comportamental e por mais que eu não tenha visto ou compreendido de imediato, tudo me tornou quem sou hoje. E cá pra nós, eu sou muito interessante.

Não importa quantas vezes você precise recomeçar algo. Recomeços não precisam ser vistos como consertos de erros, entenda que para esta pessoa que te escreve, erros não existem – o que se tem são consequências de decisões tomadas por algum motivo que em algum momento fez sentido. Tome para si a certeza de que você pode ser feliz à uma decisão de distância, mesmo que esta te leve a uma série de outras que também precisarão ser tomadas. Seja realista, e se fizer sentido, se permita sonhar novas realidades certo (a) de que o caos da mudança é provisório. Então é isso, espero que conhecer esta parte da minha história te acolha em seus dilemas. Independente de quem você seja, eu acredito no seu potencial de mudança. Com amor, Amanda.

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