Mulan – a ruptura de estereótipos e a polissemia feminina

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Tsiektsiek e novamente tsiektsiek,
Mulan tece, de frente para a porta.
Você só ouve os suspiros da filha…
Perguntam o que está em seu coração,
perguntam o que está em sua mente.
Ninguém está no coração da filha,
ninguém está na mente da filha.

(Balada de Mulan – anônimo – sec.Vd.C)

Provavelmente está esclarecido ao público que a proposta dessa série, intitulada “Princesas: estereótipos e o universo feminino” é o de discutir como os contos de fada, que engendram o universo infantil feminino, influenciam a internalização subjetiva no que se refere às relações humanas, principalmente as conjugais. De forma genérica, poderíamos analisar sobre como a empresa produtora dos filmes de princesas embute valores em seus enredos, compondo e transformando os processos subjetivos das pessoas através de sua influência midiática, porém não analisamos com tanto afinco ou crítica sobre como a mídia nos compõe em particular.

Em meio a isso não esqueçamos que até pouco tempo não existia no universo de princesas da Disney qualquer uma que fosse negra, assim como não havia aquela que no final da história não casasse, ou com isso não sonhasse. São inúmeras as questões passíveis de análises. Não é minha pretensão nesse texto rebuscar acordos e desacordos sócio-políticos entre a Walt Disney Company e governos (capitalistas, comunistas, ou o que seja), mas acho interessante, até mesmo como escudo contra a alienação midiática, que saibamos os contextos de surgimento dos filmes e desenhos, e os oportunismos nas entrelinhas, como sugere Averbach (2003):

É importante mencionar que os valores que se apresentam nos filmes da Disney vão mudando conforme a evolução das novas sociedades. Isto se pode observar de forma clara desde o filme de Branca de Neve, onde a mulher representava o papel típico de dona de casa. Por outro lado, com as novas produções, se pode observar uma evolução dentro dos filmes, onde as protagonistas como Bela, Mulan, Ariel, Jasmine, entre outras, desempenham papéis distintos, desafiando a sociedade tradicional. Essa mudança se dá em consequência de que o papel que as mulheres vem desempenhando na sociedade vem mudando. A nova geração de princesas, como é considerada por muitos, busca promover um ambiente de justiça, igualdade, reconhecimento e sobretudo de mostrar que são completamente capazes de defenderem-se. Estes são valores que muitos dos pais ocidentais desejam que suas filhas pequenas cultivem, para que elas tenham uma mente mais aberta ao mundo de hoje (Averbach, 2003).

Diante das histórias de princesas da Disney é impossível não recorrer à literatura que trata da instituição do casamento, uma vez que é essa a temática basilar da maioria dos roteiros. Embora a história originária da personagem Mulan não aborde o tema do casamento, a versão adaptada e, portanto, circulante e conhecida, o aborda. Nos contos de fadas e princesas, os finais felizes sempre se apresentam através da cena do matrimônio. É curioso como não é relatada ou mostrada a vida do casal após união simbólica do casamento. Desse fato, várias questões – creio que já abordadas em outros textos da série – surgem, como, por exemplo, a associação que é feita entre ideal de felicidade e casamento clássico, entre homem e mulher.

A personagem escolhida por mim foi a Mulan. Poderia, sem muitos esforços, me ancorar à temática do matrimônio para dizer sobre a sua história, embora acredite que nos textos de outras princesas tal tema esteja mais relevado.

Ademais, escolhi falar de Mulan porque através de aspectos de sua história consigo introduzir ideias sobre o feminismo e as transformações dos estereótipos com o passar dos tempos.

Para tanto, precisamos primeiramente entender que um estereótipo pode ser. Segundo Barzabal & Hernández (2005) é um conjunto de traços típicos os quais se supõem inerentes aos membros de um grupo. Tais traços são transmitidos por meio da repetição de normas de comportamentos, e assimilados e construídos a partir dessa repetição.Trata-se de uma ideia pré-concebida a respeito de algo. Tal ideia pode ser reforçada ou enfraquecida. Isso depende de como ela se desenvolve e comunica com outras ideias, pré-concebidas ou não.Diante do mundo midiático, estereótipos convertidos em modelos a seguir estão em disparate como criadores de valores e formadores de subjetividades.

De acordo com Gómez (2005), o modelo de realidade proposto pela mídia está pleno de papéis estereotipados, que são internalizados e assumidos de maneira inconsciente pelos espectadores, já que tais papéis não são algo real e sim ideal, o que facilita a assimilação. Gómez (2005) defende que os estereótipos são os responsáveis por atraírem audiências massivas, sendo essa a sua maior utilidade. Outrossim, podem ser compreendidos por crianças, como é o caso das histórias de princesas.

Segundo Alafita et.al. (2012), “(…) a realidade criada pela mídia pode ir se incorporando desde a tenra idade nos esquemas cognitivos e emocionais, assim como nos esquemas de pensamentos e comportamento”. Segundo os autores, o desenvolvimento do processo de socialização se dá através da empatia, que envolve a forma como as crianças percebem os entornos da história, internalizam suas normas, seus valores, e as propostas de condutas sociais, como num recado que sucintamente diz “se você se comportar como a princesa do filme, você será feliz”.

A formação de um estereótipo depende de aspectos como: cenários, apetrechos, comportamentos, conversas, sonhos, fantasias etc.

Mediante estas informações, podemos lançar uma primeira indagação: quais os estereótipos proeminentes da história de Mulan?

Adianto a vocês que a história do filmeé baseada na e antecedida pela “Balada de Mulan.” Reza a lenda que a história de Hua Mulan é verídica e aconteceu na China antiga do século 5 d.C. A Balada, escrita nessa época, é a fonte de toda a história, embora tenha tomado diversas vertentes no decorrer dos anos em que foi contada e repassada entre as gerações. Configura-se como o primeiro poema chinês a abordar a igualdade de gêneros (tema ainda polêmico no país asiático). Além da história de Mulan, há o boato de que o primeiro conto de Cinderela seja de origem chinesa, (com algumas peculiares diferenças), o que também nos faz refletir a respeito da repercussão da cultura e folclore orientais pelo mundo.

Não analiso a história de Mulan como um proeminente de estereótipos. Pelo contrário, acredito que sua história traga vários e fortes aspectos que rompem com estereótipos caducos.

Muitos são os aspectos divergentes entre a Balada de Mulan e a história mostrada nos filmes da Disney. Tentarei, no decorrer do texto, apresentar algumas destas diferenças, adiantando que a maior e mais significativa delas é a de que na Balada, a personagem Mulan não se casa. Classificaria este ponto como a primeira ruptura com o estereótipo do casamento (embora a personagem se case ao fim do segundo filme).

Lembremos que a história de Mulan foi adotada pela Walt Disney em 1998, quando virou filme de animação, fazendo dessa personagem mais uma princesa do reino do entretenimento, imaginação e fantasia. Em 2005 foi lançada a segunda versão de sua história através do filme Mulan 2, que possui um roteiro completamente independente da Balada originária. Na versão original, Mulan é tida como a maior mulher guerreira da China.

Na época em que o filme sobre Mulan foi lançado, o mundo (principalmente a parte ocidental dele) rodava junto à disseminação dos movimentos feministas. Segundo a história do feminismo no mundo, há três momentos distintos e marcantes. O primeiro deles é datado entre o século XIX e o início do XX, onde a luta voltava-se aos direitos trabalhistas e educacionais das mulheres; o segundo momento, datado entre as décadas de 1960 a 1980, é marcado pela luta pelos direitos legais e culturais da mulher na sociedade e o terceiro momento, datado entre o final dos anos de 1980 até o início do novo milênio, é marcado pela continuação da luta anterior, onde as mulheres buscavam o fortalecimento do que já havia sido conquistado e a conquista do que ainda não havia. É em meio a esse terceiro momento que os filmes de Mulan são lançados, ou seja, é em meio a um momento onde a mulher foi incorporando novos papéis na sociedade em que vivia, assumindo-se cada vez mais como o ser polissêmico que é.

Voltando à história de Mulan, conta o enredo que estando a antiga China em guerra, o imperador decide convocar um membro de cada família para lutar contra a invasão dos bárbaros. O pai de Mulan, já idoso e debilitado, é convocado para a guerra, mas sua filha decide tomar seu lugar, se disfarçando de homem.

Segundo a Balada, a batalha entre os chineses e os nômades se estendeu por doze anos e Mulanfoi se destacando ao passar desses anos por suas estratégias de batalha, chegando a ocupar o posto máximo de general, recebido mesmo após todos saberem que se tratava de uma mulher. No entanto, Mulan recusou tal posto para voltar para casa. Ainda pela história original, Mulan tem uma irmã mais velha e um irmão mais novo, que ainda é criança. No filme, Mulan é filha única.

O que mais difere Mulan (principalmente no primeiro filme) de outras princesas da Disney, ou melhor, das princesas mais clássicas, como Branca de Neve, por exemplo (que é a primeira da casa), é o próprio estereótipo de princesa. Poderíamos nos perguntar quais os diversos aspectos fazem de uma mulher uma princesa que nenhum deles seria tão mais bem adequado do que aquele que fala de uma princesa como uma mulher ou menina, ou menina-mulher, que precisa de proteção. Estereótipo tradicional sobre a mulher (ou  subjetivação feminina): “a mulher é um ser dependente”, discurso já batido com o termo “sexo frágil”. Assim como esse termo já está batido, o que a história de Mulan traz é uma segunda ruptura, nesse caso, com a conceituação do que uma princesa é ou pode ser. Percebemos não só em Mulan, mas nas mais recentes princesas da Disney, as mudanças do corporal feminino. Em Mulan, vemos alguém de postura salutar e imponível, esguia e ereta. Vemos o comportamento corporal de alguém que é forte e independente. De alguém que fala e argumenta.

Em Mulan, é ela quem é forte e protege. É ela quem salva todo um país. É pela história dela que a mulher concretiza sua emancipação em contextos sociais, culturais, políticos e históricos e é (também) através dela que o estereótipo de princesa vem mudando, principalmente a partir da tentativa de igualdade das identidades de gênero. No filme, Mulan é tão guerreira, inteligente e corajosa quanto seu marido. Através de sua história vê-se um afastamento com a ideia de submissão feminina e uma proximidade com a construção de novas subjetividades, feminina e masculina.

Se nos dispuséssemos a analisar mais profundamente a história de Mulan com relação à história da mulher na China, estaríamos a falar de uma crítica aguda e de cunho extremamente feminista ao sistema atrasado e excludente a que a mulher chinesa era submetida. Na história das mulheres na China, há partes tidas como vergonhosas e até humilhantes, a começar pela questa~o tradicional (que prevaleceu por muito tempo) dos pés pequenos, onde, na infância, os dedos dos pe´s das meninas eram quebrados e enrolados dos 4 aos 12 anos para que estas não conseguissem percorrer grandes distâncias para fugirem de seus proprietários (pais e maridos). Essa situaça~o so´ foi abolida em meados das décadas de 40 e 50. Além disso, a agência casamenteira chinesa, que adornava as mulheres como modelos de vitrines para que assim fossem escolhidas pelos homens, ajudou a manter o estereotipo de mulher-produto, tema amplamente mostrado nos filmes Mulan I e II.

Para nós ocidentais – os ditos modernos, que tanto falam de igualdade de gênero e afins – é cômodo tecer críticas do que está lá distante e nos é estranho, mas não esqueçamos que a análise do feminino, do que é essa identidade de gênero ou mesmo o que é o “tornar-se mulher”, requer sempre uma referência ao contexto a que pertence, que é o que lhe dá sentido e significado. Mulan nos apresenta uma faceta do feminino. Uma faceta que rompe algumas tradições, mas ao conservar outras nutre sua própria identidade.

A partir da personagem de Mulan nos é introduzido aspectos que em outro momento se transformam em estereótipos. Tais aspectos se apresentam por uma personagem (mulher) que tem desejo e o realiza, que não “se submete à” e “concorda com”, ao contrário, ela concilia, articula, escuta, discute, debate, concede, pede e se impõe circunstancialmente dentro do seu direito de falar, ser ouvida e também ouvir o que lhe falam.

Assim vemos que, com o passar dos anos, os enredos vão se adequando à forma como as pessoas existem no mundo. Os filmes de Mulan são recentes e concernentes à toda emancipação feminina de que falamos e vemos gradualmente acontecer. Os filmes nos fazem repensar sobre os inúmeros papéis que a mulher vem desempenhando em nossa sociedade e sobre como isso vai repercutir no fortalecimento de alguns estereótipos e enfraquecimento de outros. Além disso, podemos pensar em como o “tornar-se mulher” vem sendo internalizado a partir do que mostra a mídia, em especial, nos filmes de princesas. Que princesas estão sendo criadas e quais novos adornos vem sendo usados? Pensemos.

Referências:

ALAFITA, M.; VILLASUSO, M.; RIVERA, T. Las princesas de Disney: lo que aprendem lasniñas mexicanas a través de las películas? Revista Comunicación n°10, Vol.1, año 2012, pp. 1505-1520. Disponível em: <http://www.revistacomunicacion.org/pdf/n10/mesa9/115.Las_princesas_de_Disney-lo_que_aprenden_las_ninas_mexicanas_a_traves_de_las_peliculas.pdf> (Acessado em 25/01/2014).

ANAVERBACH, Márgara. (2003) “Huellasimperiales” de Imago Mundi, Buenos Aires, pp.163-175. Disponível em: http://es.scribd.com/doc/55569918/averbach-maccarthismo  (acessado em 27/01/2014).

BARZABAL, LuisaMaría; HERNANDEZ, Antonio. (2005). “Enseñemos a  discriminar estereotipos sexistas enlatelevisión.” Comunicar: Revista científica iberoamericana de comunicación y educación, Huelva, España n°25. Disponível em: <http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=2929133> (acessado em 27/01/2014).

BONILLA, José. (2005). “El cine y los valores educativos. A labúsqueda de una herramienta eficaz de formación”. Pixel-Bit Revista de Medios y Educación, Sevilla, España, n°26, pp.39-54. González Alafita, Villasuso y Rivera Revista Comunicación, Nº10, Vol.1, año 2012, PP.1505-1520. Disponível em: http://redalyc.uaemex.mx/pdf/368/36802604.pdf  (acessado em 27/01/2014).

GÓMEZ, Bernardo (2005). “Disfunciones de la Socialización através de los Medios de Comunicación”. Razón y Palabra, n°44 (Abril – Maio 2005). Disponível em:http://www.razonypalabra.org.mx/anteriores/n44/bgomez.html (acessado em 27/01/2014).

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O Eu dividido – Três ou quatro apontamentos sobre a existência psicótica

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“A experiência e comportamento que recebem rótulo de Esquizofrenia é uma estratégia
especial que uma pessoa inventa para viver uma situação insuportável”

R.D. Laing

Nesse resumo sucinto discorro algumas das idéias do psiquiatra escocês Ronald D. Laing contidas no livro O Eu dividido (The Divided Self – 1960), a respeito da existência psicótica.

Ronald D. Laing foi, no decorrer da sua vida, bastante criticado por algumas correntes psiquiátricas, principalmente as mais clássicas. De fato, seus estudos diversificados, misturando misticismo, psicanálise e psicopatologia ganharam entoadas diferentes e, por vezes, contraditórias, mas por nenhum momento as críticas puderam retirar-lhe o mérito de ter abordado a psicose de maneira tão afinca e profunda. O existencialismo sartreano muito influenciou as concepções do psiquiatra. Nesse sentido, Laing dizia da psicose como uma tentativa do sujeito em significar a sua própria existência. Ou seja, a psicose em si seria um significado existencial.

Ferrenhamente contrário à linguagem psiquiátrica, Ronald D. Laing objetava tudo o que tinha a função de circunscrever o sujeito, embora ele mesmo tenha criado conceitos para explicar a sua maneira de enxergar a psicose (e o sofrimento, a solidão e o desespero embutidos nela).

Um dos primeiros conceitos apresentados por Laing (e talvez o fundamento de todos os outros) no inicio de seus estudos sobre a psicose é o conceito da Insegurança Ontológica. De acordo com Gabriel e Carvalho Teixeira (2007), a Insegurança Ontológica para Laing seria uma experiência irreal ou uma sensação de não estar vivo, o que conduziria o sujeito a uma preocupação central em sua auto-preservação (ao invés de uma preocupação com a auto-gratificação). Foi a partir desse conceito que o autor introduziu o termo “o eu-dividido”, se referindo à percepção fragmentada que o sujeito psicótico tem de si. Nessa percepção, o sujeito se questiona quanto à sua existência, à sua essência e à sua identidade.

Analisando alguns sinais e sintomas nosológicos da psicose junto aos conceitos introduzidos por Laing, é possível dizer da Insegurança Ontológica como crença mantenedora ou alimentadora do embotamento afetivo e da postura esquiva frente aos relacionamentos interpessoais, já que o psicótico vai se “trancando” dentro de si mesmo, deixando de ser “um para o outro” para ser “um para si”. A noção de ser desintegrado ou dividido, aproxima-se da noção de divórcio entre um eu falso, ou self falso, e um eu verdadeiro, que não se manifesta; fica guardado somente para o sujeito. Nesse eu (que é dividido), há um que é uma casca e pode ser deteriorado, enquanto há o outro intocável, impenetrável, inatingível e inacessível. A partir dessa conceituação Laing defendeu que não há propriedade para se falar de um psicótico quando não se é um. Para o psiquiatra a psicose enquanto agravamento ou doença seria nada mais do que a retirada da casca do falso self, o que comumente chamamos de surto, ou crise.

Na Insegurança Ontológica há três tipos de ansiedade vividas pelas pessoas ditas psicóticas. O primeiro tipo é o Engulfment ou absorção, que seria uma sensação constante de perda de identidade, onde a estratégia de preservação usada é o isolamento; o segundo tipo é aimplosão, que seria uma constante sensação de vazio, onde esse vazio é o próprio sujeito e a realidade é tida como algo perigoso capaz de tomar o lugar do vazio e, por fim, destruí-lo; e apetrificação ou despersonalização como terceiro tipo de ansiedade, seria o medo constante da perda da subjetividade. Frente a essas ansiedades, muitos dos sintomas psicóticos são, na verdade, estratégias protetoras contra a Insegurança Ontológica. Algumas estratégias parecem contraditórias, mas no fundo prezam por uma existência que é, a todo instante, ameaçada.

Em suma, Ronald D. Laing defendeu a psicose como uma maneira diferente do sujeito existir no mundo, propondo uma análise fenomenológica-existencial dos sintomas ditos irracionais ao invés de uma análise neurofisiológica do quadro psicótico. Nas obras posteriores ao “O Eu dividido”, estudou e discorreu a respeito dos fatores sistêmicos relativos à existência psicótica, como vínculos familiares e aspectos culturais (e por vezes místicos) entrelaçados à temática da loucura.

 

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Sutilezas

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O que vemos diz o que somos.
O que registramos diz de sermos.
É de sermos que somos.

São para visões profundas,
As coisinhas.
As de todos,
Suas, minhas.

Encontram-se nas texturas,
Entrelaçadas.
De cores puras
E misturadas.

Para vê-las
Deve-se sê-las.
E elas sendo o que somos:

Um registro apenas,
De coisinhas que nos são
Quando a elas vamos sendo.

Victor Melo

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Outras cartas do mundo líquido moderno

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As seguintes cartas do mundo líquido moderno tratadas nesse texto começam abordando a questão monetária inerente à configuração do mundo contemporâneo. Não que a temática do dinheiro tenha virado moda. Na verdade, ela nunca saiu de moda, mas Bauman analisa em sua obra o crescimento paralelo entre a alienação e a futilidade: componentes marcantes das subjetividades atuais. Nessas cartas ele trata da inospitalidade do mundo frente à educação, trata da massificação dos corpos à um ideal estético (a começar pelas meninas-mulheres e pela adultização infantil), trata da moda e do consumismo desenfreado (como atravessadores das gerações e moldadores da sociedade atual), trata da desigualdade existencial, que limita a liberdade de ação de certas categorias sociais (humilhadas, desrespeitadas e inferiorizadas) e trata da cultura e da sua reconfiguração em meio à lógica mercadológica.

Cena do filme Little Miss Sunshine (2006)

Bauman sabiamente analisa que o padrão de gastos dos jovens começa a se manifestar mais precocemente do que antes (quando se começou a registrar estatisticamente tais padrões). Isso é criticamente discutido no documentário “Criança: a alma do negócio” (de Maria Farinha Produções e direção executiva de Marcos Nisti, de 2008) que diz que a precocidade infantil tem servido para alimentar o capitalismo com consumidores que, diferente dos adultos, ainda não conseguem racionalizar sobre o desejo.

Maria Farinha Produções (2008)

O sociólogo polonês analisa que, hoje, os objetos de desejos passaram a fazer parte da existência da maioria das pessoas como componentes indispensáveis para a sobrevivência. O mercado consumidor tem se utilizado do universo infantil para expandir seus negócios. Nesse sentido, a mídia fala com a criança e se foca nela. A publicidade conversa mais com os filhos do que os próprios pais. Trata-se de um movimento que é, ao mesmo tempo, individual e social, pois atinge massas e constrói processos de subjetivação.

O autor alerta que dessa forma o que se vê em disparate são falsos alvoreceres de liberdade fornecidos por um mercado que estereotipa e segrega e, ao segregar, impede encontros que fazem as pessoas pensarem. Em outras palavras, o consumismo rouba a capacidade crítica e a discernibilidade, enquanto impõe alienação e superficialidade como formas de lidar com as relações.

Utilizando das ideias de Bauman e da temática que aderna o documentário citado acima, é possível dizer, com clareza, que a mídia tem ensinado as pessoas a competirem. A publicidade, com seus meios midiáticos, promete mais do que a alegria da posse, promete a alegria da inscrição na sociedade, o que pode vir a significar a existência de uma pessoa nessa mesma sociedade. O que a maioria das pessoas não aprende é teorizar a respeito de sua existência social, sendo esse mais um dos motivos pelos quais a mídia escolhe o mundo infantil como ponto de partida, porque o conteúdo comunicacional da criança não é racional, mas sim emotivo, e é através disso que esses conteúdos vão afetando e compondo o sujeito em questão.

 


“We don’t need no thought control” –Another brick in the wallPink Floyd (1979)

A condição de pertencimento numa sociedade vem sendo determinada pela possibilidade que a pessoa tem de ostentar o consumismo. De acordo com o documentário “Criança: a alma do negócio”, os pais tem se transformado (ou foram transformados) em negadores dos desejos da criança. A mídia hoje é tida como o primeiro fator na construção e criação de valores numa sociedade, enquanto a família, a igreja e a escola ficam de escanteio. Nesse processo de construção, a imaginação infantil diminui na medida em que as coisas lhe chegam prontas, impedindo-as de criarem sobre suas próprias vidas. Antes, as meninas eram as mães das suas bonecas e adornavam tal brincadeira com histórias ricas e fantasiosas, hoje as bonecas são projeções das meninas que, embora também tenham que possuir roteiros de vida, se adornam de penduricalhos e acessórios, enquanto escolhem, no finito leque de roteiros que tem ideais éticos e estéticos padronizados, o roteiro mais concernente ao instante da escolha.

Série fotográfica que retrata meninas e suas bonecas quase gêmeas – Fonte: Hypeness

Bauman (2011) diz que é como se os desejos fossem implantados nas pessoas, alimentando circuitos de consumo e buscas incessantes por objetos que não trazem o que neles é buscado, o afeto. De qualquer forma, são esses mesmos objetos que desempenham papéis diferenciadores entre as pessoas, marcando (e, por vezes, determinando)os relacionamentos. Nesse sentido, o desejo de comprar passa a ser a coisa em si e o que vai ser comprado torna-se apenas um veículo para a consumação ilusória do desejo.

Suely Rolnik, em Esquizoanálise e Antropofagia (2000), diz que para Deleuze e Guattari:

[…] o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de vista dele mesmo que ao se ver desestabilizado pelos movimentos do desejo, o interpretará como sinal de uma carência de completude. Aquilo que para o sujeito é falta revela-se como excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. (ROLNIK, 2000, p.458)

É em cima dessa carência de completude que a publicidade e a propaganda trabalham, criando dispositivos cada vez mais atrativos e irresistíveis; criando consumistas ao invés de consumidores. Para Bauman, o consumo é uma necessidade, enquanto o consumismo é um produto social onde há uma enorme tendência em situar a preocupação com o consumo no centro de todos os demais focos de interesse na vida das pessoas. O consumismo tem regras a serem seguidas. Trata-se de um fenômeno multifuncional ou um dispositivo universal que anda de mãos dadas com outro fenômeno (num processo de alimentação mutua), que é a moda. Segundo Bauman, não é possível dizer o que é moda, pois ela está fazendo a si própria a todo o momento. Tentar defini-la é tão difícil quanto acertar o maior prêmio naqueles jogos de tiros. O que se pode dizer dela é que trata-se de um processo inesgotável e irrefreável, que tem válvulas de escape para si mesma, quando já estão chegando novas enxurradas de si mesma. Para o autor, a moda é um fenômeno social instigante que, independente das vias que utiliza para fluir, afeta e compõe os aspectos culturais da a sociedade. José Saramago em A Bagagem do Viajante dimensiona o que vem a ser a moda, dizendo:

“Certos usos e costumes (certas vendas, certas compras) não surgem por acaso, e para o assunto que hoje me ocupa nem sequer o apelativo de moda designa seja o que for, uma vez que a moda não é mais do que a difusão promovente de um uso primeiramente limitado” (SARAMAGO, 2010, Saudades da Caverna – A Bagagem do Viajante, p. 45).

Consumo vs. Consumismo. Fonte: Google Imagens

E sendo indispensável – em meio à análises genéricas, porém consistentes, sobre o funcionamento da sociedade atual, ou do mundo líquido moderno – se falar de aspectos culturais, é nesse segmento que seguem as cartas de Bauman: falando sobre cultura.

Nesse sentido, ecoa a pergunta: o que é cultura? Segundo o autor, consumismo, moda e cultura já são indissociáveis, não tendo como se referir sobre um sem se adentrar no outro. Hoje parece não mais haver estratificações culturais, pois “não há nada ‘cultural’ que eu rejeite previamente sem fruí-lo, embora também não haja nada ‘cultural’ com que eu me identifique de modo inabalável e definitivo a ponto de excluir outros prazeres”. Assim, a cultura vem se formando como um produto passível de consumismo indiscriminado. Bauman não aponta “a cultura de hoje” como uma cultura melhor ou pior do que a cultura de ‘antigamente’, ele apenas aponta para efemeridade do que é moda, cultura, produto e consumismo, como se toda a sociedade visse no consumismo o antídoto maníaco contra a polaridade deprimente e deprimida de suas vidas. Dessa forma, o autor define cultura como algo constituído de ofertas e não de normas, pois ela se forma mediante a possibilidade de escolhas. A cultura vive de sedução e não de regulação. Ela tem se tornado um armazém de produtos para o consumismo (e, é claro, sempre tem a moda por perto, engendrando todo o processo). E nisso da cultura virar armazém, dispara a invenção (ou construção) de demandas para os produtos que o mercado lança. Isso abrange todos os campos, desde o material até o espiritual. O que se vê hoje não são medicações adequadas para diminuírem sinais e sintomas de um quadro, mas sim invenções de síndromes para que a venda de medicações já lançadas aumente.

E por fim, para encerrarmos as últimas cartas do compêndio, falaremos da inospitalidade do mundo frente à educação. Bauman afirma que “a história da educação sempre esteve repleta de períodos cruciais nos quais se tornou evidente que pressupostos e estratégias experimentadas e em aparência confiáveis estavam perdendo contato com a realidade e precisavam ser revistos ou reformados”, mas que, no entanto, a crise atual da educação parece consideravelmente diferente das crises anteriores (BAUMAN, 2011, p. 112).

Alienação. Fonte: Google Imagens

Que o mundo anda rodando rápido demais, todo mundo já sabe. Que as relações estão sendo efêmeras e pautadas por outros significados, todo mundo também já sabe. Quanto à educação, também já sabemos que algumas ideias pedagógicas, com suas características constitutivas e pressupostos nunca antes criticados também já não colam mais, mas o que vem a ser discutido agora é o valor do conhecimento, antes aparentemente muito prezado e garantidor de algum futuro. Hoje, de acordo com Bauman, o conhecimento só é atraente quando apto ao uso instantâneo (o que – não esqueçamos – influenciará em nossa própria forma de associar e memorizar conteúdos).

Nisso, Bauman adentra numa temática que já vem sendo discutida por outros autores, que é sobre a transformação da educação em um produto. Segundo o autor, o conhecimento sempre foi valorizado porque tratava-se de uma fiel representação do mundo, mas hoje, em meio à transformações rápidas e abruptas, a pergunta é: “(…) e se o mundo se transformar de maneira tal que desafie continuamente a verdade do conhecimento existente até então e pegue de surpresa mesmo as pessoas ‘mais bem informadas’?” (BAUMAN, 2011, p.114). Como estudar e aprender em um mundo que nos ensina a esquecer? Para o autor,

“Todos os recursos ortodoxos de organização utilizáveis – classificação por relevância temática, atribuição de importância, necessidades que determinam a utilidade e autoridades que determinam o valor – sucumbiram, foram tragados e diluídos no acúmulo de informações, como se atraídos por misterioso buraco negro cósmico. A massa torna todos os conteúdos uniformes e igualmente entediantes” (BAUMAN, 2011, p.124).

Se o conhecimento virou um produto passível de compra (que nos dá um título utilizável e praticável às demandas criadas) e se a educação já não consegue atender ao que propunha ou oferecer o exercício do discernimento, Bauman (2011) sugere (ou eu interpreto dessa forma) o caminho da arte quando diz que:

“A educação assumiu formas no passado e se demonstrou capaz de adaptar-se à mudança das circunstâncias, de definir novos objetivos e elaborar novas estratégias. Mas permitam-me repetir: a mudança atual não é igual às que se verificaram no passado. Em nenhum momento crucial da história da humanidade os educadores enfrentaram desafio comparável ao divisor de águas que hoje nos é apresentado. A verdade é que nós nunca estivemos antes nessa situação. Ainda é preciso aprender a arte de viver num mundo saturado de informações. E também a arte mais difícil e fascinante de preparar seres humanos para essa vida” (BAUMAN, 2011, p.125).

Desse texto fica a sensação de acúmulo e superficialidade não só do conteúdo que foi tentado trazer, mas também da forma como foi trazido. As decorrências de tudo o que Bauman fala é notória até mesmo em um texto que será publicado um dia e depois esquecido por vários outros. Parece que ao invés de panos limpos, a opção de colocar o lixo debaixo do tapete é mais confortável. No entanto, no embate com a angústia de ver o tempo passar rápido demais e nos engolir na efemeridade com que passa, opto pela sugestiva alusão de Dori (do filme Procurando Nemo): “continue a nadar”.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2011.

ROLNIK, Suely. “Esquizoanálise e antropofagia”. In: ALLIEZ, Eric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000.

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Céus

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Seria o céu um mata borrão com suas nuvens manchadas e torturadas de sufoco?
Seria o céu outra dimensão?
Lugar para onde os mortos vão?
Vão? Imensidão?
Céu de Ícaro ou de Galileu? De Deus? Do sol? Das estrelas? Da lua?
De brigadeiro? Colorido? Escurecido? Seria o dono do céu o tempo?
Seria o céu um templo? Seria o céu um véu?
Onde existem arco-íris e potes de mel?
Quantos céus há para os seus olhos?
Quantos olhos se voltam pro céu?

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Algumas cartas para o mundo líquido moderno

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O livro “44 Cartas do mundo líquido moderno” (44 Letters from the Liquid Modern World) do sociólogo polonês , é, na verdade, um compêndio de textos que o autor escreveu no decorrer de dois anos para uma revista italiana chamada La Repubblica delle Donne. Cada texto era considerado uma carta que abrangia temas culturais, políticos e cotidianos daquilo que Bauman chama de mundo líquido, atual e moderno. As cartas eram enviadas quinzenalmente e reverberaram quanto aos comentários e respostas ao autor. Tanto que a partir disso surgiu a necessidade de compilar tais cartas no que viria a ser o presente livro.

44 Cartas do mundo líquido moderno foi traduzido e publicado no Brasil a partir de 2011, mas já era febre em outros lugares, a começar pela Itália. A revista La Repubblica delle Done é uma revista semanal voltada para o público feminino. As cartas foram escritas entre 2008 e 2009 e foram minimamente editadas para a publicação do livro.

Capa do livro publicado pela editora Zahar (2011), no Brasil.

Um primeiro ponto interessante sobre a origem desse livro está ligado aos temas que a referente revista aponta e para quem aponta. É costumeiro que as vitrines ou expositores de lojas e bancas estejam enfestadas de revistas para o público feminino onde a capa figura imagens corpóreas sensuais e luxuosas. O recado da maioria das revistas dirigidas a esse público centra-se em dietas milagrosas (com uma receita hiper calórica no fundo da mesma revista), exercícios físicos, dicas de moda e estética, resenhas de novela, “truques” de comportamento e conquista, e por aí vai.

La Repubblica delle Donenão é diferente. Quer dizer, ela também abrange todos esses temas ditos acima, inclusive suas capas são de modelos muito bonitas e bem vestidas, mas acontece que ao mesmo tempo ela aborda assuntos subjetivos que não tem receita pronta, tampouco testes de rotulação. É um jogo bacana: de um lado lhe são mostradas as tendências que o mundo vai seguir no próximo inverno, de outro lado é ponderadaa questão de você (querer) seguir ou não a uma tendência. Afinal, o mundo moderno é fluentemente líquido e mutável e ninguém engessa ninguém sequer por uma estação, pois o que se pode observar hoje em dia é uma multiplicação infinita de tudo aquilo que se opera sobre a subjetividade, onde alguns aspectos vão se pulverizando (quando não fazem mais sentido), mas outros são construídos por outras lógicas, principalmente mercadológicas.

Uma das capas da revista La Repubblique delle Done

Bauman, polêmico e autêntico que é, não poderia deixar de apimentar suas cartas às leitoras (preciso considerar que não só mulheres leem essa revista), incitando-as a pensar sobre as enxurradas de informações que chegam a todo instante, dificultando a digestão dessas informações.

O intuito desse texto – já que trata-se de um “Em Cartaz” – não é o de analisar os diversos processos subjetivos embutidos e transmutáveis nos temas de uma revista feminina. Além dessa ser uma pretensão imensurável, os assuntos das 44 cartas não são dirigidos só para as mulheres mas sim para o mundo (talvez esse seja o maior motivo das cartas terem virado um livro). O objetivo desse texto é prático: apresentar o resumo de uma parte obra, onde terá mais citações do Bauman do que inferências minhas e serão apresentadas – a princípio – temas de algumas das 44 cartas, enquanto outras cartas serão discutidas em outro texto dessa seção e serão publicadas conseguintemente.

Dessa forma, nessas primeiras cartas, o autor analisa a indústria e os dispositivos de informação (não só pelo fato de se recorrer à eles para se falar deles). Ele chama isso de “autoestradas de informação”. Humberto Gessinger[i] chama de “highway da superinformação”[ii], mas é tudo a mesma coisa.

A pergunta inicial do livro é mais ou menos nesse sentido: De que forma estamos sendo afetados pelos dispositivos que nos conectam imediatamente a todo e qualquer canto remoto do planeta e tudo isso através de pequenos aparelhos que podemos carregar e utilizar quando quisermos e (de)onde quisermos? Em proporções e abrangências estupendas, o que isso vem a significar na configuração das relações e das comunicações? Bauman analisa que:

“(…) o pesadelo da informação insuficiente que fez nossos pais sofrerem foi substituído pelo pesadelo ainda mais terrível da enxurrada de informações que ameaça nos afogar, nos impede de nadar ou mergulhar (coisas diferentes de flutuar ou surfar). Como filtrar as notícias que importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia de opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos falta uma máquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de mentiras, ilusões, refugo e lixo” (BAUMAN, 2011, p. 8 e 9).

O mesmo autor, que tem a característica de jogar a isca e esperar que o leitor a mordisque para em seguida puxar a corda do anzol, instiga-nos a pensar em respostas quando ele mesmo apresenta as suas em páginas seguintes. Em sua maneira peculiar de escrever, Bauman recorta retalhos para depois costurá-los juntamente com os leitores. Com isso, ele aponta que a enxurrada de informações e a dificuldade em discerni-las decai no que Marcelo Camelo chamou de “Bloco do Eu sozinho” (segundo álbum da banda Los Hermanos), o que significa dizer que as pessoas estão cada vez mais sozinhas em meio à multidão e que tudo o que fazem ao se relacionarem através dos aparelhos de comunicação e sites de relacionamentos é tentar fugir da solidão de estar só, ou melhor, de estar consigo mesmo.

Bauman é claro ao dizer que as pessoas estão “desaprendendo” a estarem sozinhas. Ele diz:

“A essa altura, ela (a pessoa) deve ter se esquecido de como uma pessoa vive, pensa, faz coisas, ri ou chora na companhia de si mesma, sem a presença de outros. Melhor dizendo, ela nunca teve a oportunidade de aprender essa arte. O fato é que somente em sua incapacidade de praticar essa arte é que ela não está sozinha” (BAUMAN, 2011, p.13).

No livro, a influência dos meios de interação (se bem que “interação” possa não ser a palavra certa a se usar nesse caso) é comparada ao estado de prazer (ou suspensão de desprazer) que uma substância psicoativa pode proporcionar. Bauman chama os aparelhos de comunicação de drogas poderosas que viciam as pessoas em enviar e receber recados em intervalos mínimos. O rápido manuseio e domínio dos aparelhos têm virado uma necessidade quase vital. A impossibilidade de acessar os aparelhos que conectam as pessoas com o mundo tem trazido aos viciados um estado de abstinência predominado pela angústia, pela sensação de isolamento e solidão ou, em outras palavras, pelo esvaziamento do ego.

Bauman diz que

“(…) os aparelhos eletrônicos respondem a uma necessidade que não criaram; o máximo que fizeram foi torna-la mais aguda e evidente, por colocarem ao alcance de todos, e de modo sedutor, os meios de satisfazê-la sem exigir qualquer esforço maior que apertar algumas teclas” (BAUMAN, 2011, p. 14).

A análise do livro debruça parcialmente sobre os dois principais sites atuais de relacionamento: os populares Facebook e Twitter. Além disso, discute também sobre a eminência desenfreada do sexo virtual. Questionar sobre as reverberações dos dois sites na vida dos usuários é um trabalho complexo e infindo. Quando se fala sobre como o Facebook revolucionou o mundo, estamos falando, de certo, de apenas uma parte dessa revolução (pois deixamos de lado nesse texto a discussão sobre outros mecanismos e outros sites revolucionários como o Google e o Wikipédia, por exemplo). Provavelmente falamos da parte que nos faz mais sentido ou a que nos salta aos olhos (isso quando ainda não estamos impetuosamente apaixonados pelo Facebook ou peloTwitter).

Zygmunt Bauman – sociólogo polonês

Bauman em sua carta sobre “Como fazem os pássaros” esclarece-nos sobre o significado de “Twitter”, que do Inglês para o Português significa “gorjear”. Segundo o autor, o gorjeio serve para duas coisas: manter contato e evitar que outros pássaros invadam seu espaço ou território. Transportado para o intuito do Twitter, o site serve basicamente para que você manifeste o que está fazendo de forma rápida, sucinta e fácil de digerir (o que pode ser perigoso!). Você manifesta seu recado em apenas 140 caracteres e aprende uma forma pragmática de – as vezes – dizer coisas que não podem passar pelo pragmatismo, como num simples filtro simplificador.

Da mesma forma, os ícones passíveis de compartilhamento no Facebook tem servido para que uma pessoa diga algo do tipo: “isso me representa” e “isso compõe quem sou”, mesmo que as afirmativas sejam abruptamente controversas; não importa. Não me aprofundarei na questão da necessidade de pertencimento que é muitas vezes sanada ilusoriamente ao dizermos que gostamos de algo ou pertencemos a tal grupo. Parece que o que importa é “saber contar aos demais o que estamos fazendo – neste momento ou em qualquer outro; o que importa é ser visto”. E nessa história entra, sim, pelas palavras de Bauman, a substituição do contato face a face pelo contato tela a tela, a perda de intimidade, da profundidade e da durabilidade da relação e dos laços humanos. O autor é declaradamente partidário e vê de forma pessimista a nossa impossibilidade em segurar a onda que carrega tudo vorazmente (e sem dó).

Para Bauman uma das máximas dos nossos tempos está em “Sou visto, logo existo”, pois em se tratando de objetivos, como quando falamos do intuito doTwitter há poucas linhas atrás, há o grande objetivo de “ser seguido”. E assim as pessoas vão se comportando e se mostrando de forma que faça com que aumente mais e mais o número de seguidores até que elas se tornem, por fim, famosas. E a fama se dá por ela mesma, ou seja, é a fama pela fama e nada mais.

Isso penetra em dois campos discutidos pelo sociólogo: o da privacidade e o da publicidade. O primeiro refere-se à capacidade de uma pessoa ou de um grupo em controlar a exposição e a disponibilidade de informações ao seu respeito, enquanto que a publicidade refere-se justamente ao contrário: a tornar público o que era privado e a expor o que estava de alguma forma escondido. Nisso, a máxima do “o quê ou quem eu sou?” é respondida pelos juízes que decidem e impõe respostas, fazendo com que o sujeito seja aquilo que os outros dizem que ele é. Essa é, para Bauman, outra consequência das relações virtuais que, no entanto, não se configura como perda de identidade e sim como uma transmutação inconsistente do que se é por si mesmo, sem o outro.

Para Bauman, os sites de relacionamento, especialmente o Twitter, representam os “substitutos da igualdade para os destituídos”. As pessoas ganham uma “fama virtual” e vivem de forma a aumentá-la e sustentá-la pelo maior tempo que conseguirem.

Em se tratando de sexo virtual, o autor usa as palavras de uma escritora – Emily Dubberley – para definí-lo:

“(…) obter sexo hoje é como encomendar uma pizza… Agora você pode conectar-se à internet e encomendar genitália. Não há mais necessidade de flertar ou fazer corte, não é preciso empenhar todas as energias para obter a aprovação do parceiro, nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro (…) (BAUMAN apud DUBBERLEY[iii], 2011, p.31).

Para Bauman, em detrimento da conveniência, da velocidade e da garantia contra as consequências, alguma coisa – muito importante – se perdeu. Como Humberto Gessinger diz em sua música “Terceira do Plural”, há uma satisfação garantida, mas uma obsolescência programada para tudo, pois as coisas (e pessoas) podem ser rapidamente substituídas! Bauman afirma que o que se ganhou em quantidade perdeu-se em qualidade devido à superficialidade com levamos as relações. Hoje, a medida do valor das coisas é o sacrifício necessário para obtê-las.

Outro questionamento referente ao rumo que as relações humanas vem tomando aborda a afirmativa de que estar ausente não mais significa estar fora de alcance. Bauman discute sobre os significados escondidos nos atos, pois é como se o fato d’alguém deixar de responder a um e-mail ou atender a um telefonema significasse, irredutivelmente, negligência, indiferença condenável e ofensiva, afronta, dentre outras falhas subjetivas que expressam descaso e má vontade. Assim, da mesma forma que há meios instantâneos de promover a conexão entre as pessoas, há – pelos mesmos meios – como promover a desconexão. Tudo isso pautado pela noção de conveniência e proteção. Os contratos humanos são, portanto, reconfigurados (e os valores também).

A cada dia, muros simbólicos vêm sendo criados e os afetos vão se transformando, isso quando ainda não se é discutida a temáticado vínculo virtual. Talvez algumas noções e alguns conceitos (bem como as formas como estamos nos relacionando) não podem ainda ser respondidas na efervescência dessas reconfigurações. Pode ser que quando estivermos nos relacionando de uma forma predominantemente diferente da que estamos hoje, possamos inferir algum sentido sobre isso. Para tanto, supomos alguns caminhos. E se de hoje pudermos fazer algumas perguntas, elas podem estar voltadas para a maneira como se pode produzir saúde em meio à um mundo fluido e mutável(se é que não é disso que a saúde precisa para firmar-se).

Compreensivelmente, as colocações de Bauman  podem já parecer remotas (a depender de quando alguém as lerá), mas se de tudo elas conseguirem fazer com que alguém tome parte do seu tempo para refleti-las, o tempo que o autor despendeu para fundamentá-las já foi muito bem aproveitado. Aliás, acho essa uma boa maneira de se utilizar a virtualidade: para disseminar ideias e promover debates sobre a nossa forma de ser e estar no mundo. Encerro esse primeiro texto com as palavras do Saramago, usadas pelo autor:

“O que de tudo não compreende (…) é que, ao se desenvolverem as tecnologias de comunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com suas avenidas ilusórias, tão dissimulada no que expressa quanto no que dissimula.” (BAUMAN apud SARAMAGO[iv], 2011, p. 47).

 

Notas:

[i]Cantor da banda Engenheiros do Hawaii (já extinta)

[ii]Referido na música A Promessa.

[iii]Livro: Brief Encounters: The Women’s Guide to Casual Sex.

[iv]Livro: O homem duplicado.

 

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2011.

Para acessar o livro em PDF, clique aqui: (http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos//t1388.pdf)

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Das loucuras que me compuseram

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Da Loucura sempre estive próxima, ou ela de mim, a começar pelo traço genético herdado de não sei quem. Sempre tentei manter uma relação cordial com ela, pois jamais pensava em ceder aos encantos que me trariam algum custo, como vi acontecer com pessoas bem próximas a mim. Depois descobri que não foi a Loucura que tinha deixado aquelas pessoas daquele jeito que eu não queria ficar. No entanto, eu continuava a fugir dela como o diabo foge da cruz. Pude saber, com o tempo, que a Loucura é um caminho, não um início ou um fim, como fui ensinada a acreditar.

Cresci com medo da Loucura, pois – por ironia ou coincidência – uns dos loucos mais destacáveis da minha pacata cidade tinha como mania ou prazer atirar pedras nas coisas e nas pessoas. Lembro-me perfeitamente de quando eu tinha 5 anos de idade e estava, juntamente com minha mãe e meu irmão, voltando para a casa quando nos deparamos com o famoso “João de Dó” (nome fictício) com uma pedra na mão. Naquele instante, minha mãe recuou um pouco para procurar uma pedra ou um pau para poder se defender de João caso ele ousasse se aproximar. Lembro que senti muito medo. Eu não conseguia entender como a minha mãe poderia proteger a nós três de arremessos de pedras. Acontece que João de Dó sequer nos deu atenção e continuou com seus maneirismos esquisitos, andando para lá e para cá, catando coisas pelo chão. Conto esse episódio como o meu primeiro contato com a Loucura, embora tenha havido outros episódios anteriores dos quais não me recordo. Na minha cabeça ia se formando a ideia de queLoucura e Periculosidade andavam de mãos dadas. Formava-se também um medo desmedido que ia me impedindo de enxergar o louco como gente. E, assim, de um certo tipo de Loucura, comecei e me compor.

João tinha um quê misterioso, um olhar profundo que não cruzava por querer com o olhar de ninguém. Era um maltrapilho, visivelmente judiado pela vida e abandonado ao acaso. Nessa época da minha vida eu não pensava sobre sua condição de abandonado, bem como não sabia o motivo desse abandono ou de sua Loucura (se é que os há). Perambulavam pelas ruas da minha cidade muitos loucos que tinham casa e estavam ali apenas “passeando”, como era o caso de João, mas isso eu também só descobri com o tempo.

Outra figura notória e representativa da Loucura na minha infância era a mãe de João, a Dona Maria (nome fictício). Ela era uma senhora velha e gorda, tinha um andar apressado e agressivo e saía gritando mazelas pela rua como se tivesse agourando todos que por ela passavam. Lembrando dela hoje, enquanto escrevo, penso que ela tinha um quê rancoroso e desolado. Eu não tinha medo dela, ela não jogava pedras (e naquela época eu corria muito e bem). Dona Maria, além de João, tinha outra filha “doida”, a Joana (nome fictício), que era uma “louca mais comedida” (era essa a visão que eu tinha) e não fazia mal a quase ninguém (já que não sei se a si mesma ela fazia algum mal).

Cresci ouvindo que eu devia ter medo dos loucos, como se eles fossem sequestradores de crianças, tal qual o papa-figo, depois percebi que muitos dos que eram tidos como loucos por mim (e por muitos dos que me alertavam) eram pessoas em situações vulneráveis – na maioria das vezes pessoas com necessidades decorrentes do uso abusivo do álcool – pessoas maltratadas pela vida. Nessa parte entra o Kiko (nome fictício) que andava sempre trôpego, com os braços cruzados em si, se abraçando bem forte. Aquele jeito do Kiko chamava muito a minha atenção. Ele emanava uma tristeza que doía mais do que uma pedra e atingia qualquer coração. Kiko era silencioso. Ninguém tinha medo dele. Às vezes pena. Alguns o tentavam tirar do sério, mas sua solidão era tão profunda que ele parecia estar desconectado desse mundo. Hoje, mesmo sem saber direito a sua história, sei que admirava Kiko pela força que ele conseguia carregar em meio a tanta dor, mas naquela época eu não pensava nisso, tudo era muito estranho e esquisito para mim.

Um dos “loucos” mais inteligentes que eu já conheci (lembrando que todos que eu estou relatando nesse texto são da minha cidade e fizeram parte da minha infância e adolescência), já rodou, de carona, toda a América do Sul. Fala mais de um idioma e conhece o Brasil de “cabo a rabo”. Vira e volta ouve-se dizer que ele está em tal lugar, daí a família o busca, ele sossega por uns tempos (como quem está descansando e recuperando energias), e volta para estrada que é, na verdade, a sua casa. Saulo (nome fictício) tem um jeito todo catatônico de ser. Gosta de repetir as mesmas falas incansavelmente. De duas, uma: ou você sai irritado ou você morre de gargalhar. Mas, diga-me vocês se não gostariam de ser um “louco” assim, que faz amizades pelo mundo, que fala mais de uma língua, que se vira de qualquer forma, em qualquer lugar, que cuida de vários cachorros e que é feliz? Esse louco inteligente também ajudou a me compor de Loucura e inveja, ou inveja por esse tipo de Loucura. Com Saulo aprendi que, muitas vezes, Loucura nada mais é do que incompatibilidade de expectativas e opiniões. Quando a gente não se aceita é mesmo umaLoucura!

Arte: Miller Freitas

Uma louca da qual eu nunca me esquecerei apareceu para mim como numa cena de filme. Eu estava saindo da casa da minha avó quando deparei com uma senhora idosa cheia de tranqueiras, com uma mochilona nas costas e muitas sacolas nas mãos. Não me recordo como o nosso papo começou. Provavelmente ela quem puxou assunto, pedindo-me alguma coisa, como um copo de água. Desse copo d’água, eu a dei um teto por um mês! Isso mesmo! Ao lado da casa da minha avó havia uma casa vazia que pertencia a uma tia que morava em São Paulo. Nós (família, primos…) tínhamos livre acesso a essa casa, pois não havia muros separando o quintal da casa da minha avó do quintal da casa da minha tia. Essa casa era usada para guardar sacos de milho e feijão que davam na roça, e eu e os meninos a usávamos para fazer as reuniões da nossa “Patrulha Salvadora”. Nessa casa eu hospedei a andarilha louca. Desse ato, minha mãe e minha avó quase enlouqueceram também! Elas diziam: “- Espera só seu pai chegar para você ver. Como é que você coloca uma desconhecida dentro da casa da sua tia?”. O problema foi quando eu tive que pedir Isaura (nome fictício) para sair de lá e ela “virou uma arara” comigo. Ela ficou cerca de um mês naquela casa. Todos os dias eu a levava comida e a gente conversava. Ela me chamava de “Anja” e me deu um anjinho de lembrança (que até pouco tempo eu guardava). Nessa época eu devia ter 8 anos. Quando pedi para Isaura sair da casa, ela quis me ferir com um canivete, mas eu não tinha medo dela. Eu sabia que ela não me faria mal e ela sabia que se a casa fosse minha ela podia ficar lá quanto tempo quisesse. Não precisamos nos explicar. A gente sabia disso e ela sabia que eu não a temia. Isaura era mesmo andarilha. Talvez a avançada idade não permitisse que ela andasse mais por muito tempo, mas ela levantou suas trouxas e ficou por perto. Nosso elo se desfez. Brigamos sem brigar, mas essa foi, com certeza, uma alma iluminada que passou pelo meu caminho e me ensinou muita coisa. Ensinou-me, inclusive, que coragem é o melhor aliado que alguém pode ter. Queria, ao menos, que ela soubesse o quanto lhe sou grata por esse encontro. Soube, anos depois, que Isaura morreu de velhice, sem amparo ou assistência; sozinha como sempre foi.

Arte: Miller Freitas

Nesse desenrolar existem outros loucos que marcaram a minha vida. De alguns me esquecerei por querer, outros nem querendo lembrar eu consigo, mas tem um que eu jamais me esquecerei, podem passar décadas a fio. Por mais que os nossos olhares tenham se cruzado pouquíssimas vezes nessa vida, seu olhar doce será a lembrança mais bonita que eu terei dele, para sempre! Eu tinha medo dele quando minha avó dizia que ele tinha acordado nervoso e agitado. Ele era meu tio Diu (nome fictício). Se você acha que fuma muito cigarro é porque nunca o viu fumando. Fumar para ele era como respirar: natural e constante. Ele adorava andar em sua bicicleta vermelha Monark pela pracinha. Bem pacífico com as pessoas, não agredia, não xingava. Gastava parte da sua energia cantando Bartô Galeno, Nelson Gonçalves, Waldick Soreano, dentre outras breguices. Dormia num quartinho dos fundos. Não sei se por opção ou obrigação. Só sei que ele e meu avô não se davam. Tinha dias que eles quase se matavam, se não fosse meu pai e outros homens para apartar a briga. Felizmente não me lembro desses episódios e infelizmente foi curto o tempo que o tive por perto. Meu tio passou boa parte da sua vida internado no Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador. Em minha infância eu não tinha noção de como era o lugar onde ele estava, só pensava que ele estava bem e estava sendo cuidado. Depois minha mãe me disse chorando sobre as inúmeras vezes que ele a implorou para sair de lá. Meu tio já é falecido. Meu avô também. Ambos até hoje estão marcados em mim, mas meu tio também está marcado através de uma cicatriz que eu tenho no pé. Lembro-me que minha avó estava tentando dar uma medicação para ele e ele não queria tomar, daí ele pegou o frasco e o rumou ao chão, mas o frasco bateu no meu pé, e o cortou. Tenho uma cicatriz diagonal no penúltimo dedo do pé direito. Um autógrafo que tio Diu me deu sem querer, e eu o agradeço por isso.

Arte: Miller Freitas

Há, em minha história, pessoas mais próximas que são chamadas de loucas. Foram elas que me apresentaram a Loucura de forma mais intensa. A proximidade de nossos laços ainda me impede de refletir sobre essas relações com um maior discernimento. Temo falar delas o que não é, de fato, delas, mas sim de mim e de um misto de afetos que sinto e não sei definir. A Loucura me compôs paulatinamente, ora de forma dolorosa e muito sofrida, fazendo a vida parecer injusta ou sem sentido, e ora de forma exultante, como uma essência de ser que eu devia assumir. Dentre esses acordos meus com a Loucura, encerro esse texto com a célebre frase do Renato Russo:“consegui meu equilíbrio cortejando a insanidade”.

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Uma viagem pelos sentidos

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Sim, muitos jovens tem a oportunidade de estudar em outro país e, afortunadamente, eu estou inserida nesse grupo. Daí, um dos primeiros impactos: quanta gente diferente tem por aqui (e porque não dizer quanta gente esquisita, pois, na maioria das vezes é esse estranhamento que predomina, particularmente em mim)! E mesmo sabendo que não é preciso se deslocar para tão longe para se impactar desse jeito, constando a diversidade cultural, racial, econômica e étnica que há em nosso próprio país, digo que esse impacto, de fato, se redimensiona aqui, d’outro lado do Oceano Atlântico, onde as pessoas costumam falar outra língua, comer muita batata e preservar, como podem, os resquícios do que um dia foi uma importante civilização, a celta.

Arquivo pessoal

Hoje moro num país que é uma ilha. Moro numa cidade costeira, húmida e extremamente chuvosa. Salva-me engano, em 275 dias do ano chove. Estou encerrando a minha segunda semana na Irlanda com uma efusão de sensações que ainda não encontrou todas as válvulas de escape necessárias. No entanto, sei que escrever sobre essa efusão é um caminho bastante saudável para mim. Vim para cá de avião. Vim para cá com uma tremenda sensação de suspensão que ainda não passa (ainda bem que a gripe e a dor de ouvido passaram). Aterrissei, mas meus pés ainda não sentiram o chão. E mesmo tendo levado uma queda de bicicleta em meu terceiro dia, onde pedaços de minha pele se misturaram ao asfalto, e vice-versa, o sentido do tato afeta-me, agora, de forma bastante diferente. Falta abraço, sobra mímica. Sobra vento e frio, falta abraço. Em quesito de gesticulação e interpretação, o corpo reaprende seus limites naquela velha história de dançar conforme a música. Ainda falando do tato, a pele começa a se acostumar com a textura das coisas e com a diferença que há em muitas das coisas que tocamos e que, obviamente, nos tocam.

Arquivo pessoal

Só ratificando, a palavra “sentido” (não como verbo no particípio, mas sim como substantivo masculino) corresponde, em seu simplificado significado, a um conjunto de faculdades que usamospara processar (não sei se essa seria a palavra correta a usar) as sensações e percepções que temos do mundo. Didaticamente, dizemos do tato, do olfato, da audição, do paladar e da visão que, trabalhando conjuntamente, ajudam e compõe o que é chamado de processo cognitivo, embora eu prefira dizer que, quando os sentidos trabalham conjuntamente, faz mais sentido. Acredito que exploramos nossos sentidos de acordo com as vivências que temos, ou, as vivências que temos aguçam mais uns sentidos do que outros. Talvez seja só questão de explorar. Disso, compus meu texto viajando pelas sensações e percepções que tive nesses 13 dias.

Viajo agora pelo sentido da audição, que tem sido bastante usado nessa nova experiência. Escutar, ouvir. Ouvir e escutar. De novo. Mais uma vez. Quantas vezes forem necessárias para o entendimento. Quando você não sabe um idioma, a escuta é como uma pescaria: sorte a sua quando pega um peixe, ou melhor, sorte a sua quando entende uma palavra dentre as inúmeras que escuta. O bom disso tudo é que, embora pareça ter dias em que o mar não está para peixe, não há dias em que sua cesta volta vazia. Definitivamente não há. E a audição vai sendo explorada, amplificada, expandida. E de repente é possível distinguir vários idiomas, e é possível até saber que aquela pessoa que está falando em inglês é, na verdade, um brasileiro. Bom, mas como eu disse, os sentidos costumam trabalhar conjuntamente e, desse trabalho, imensa é a importância da visão.

É difícil fazer essa divisão didática para falar das impressões, mas digo asseguradamente sobre o quanto a visão tem me ajudado nessa orientação. Como muitos devem saber, a orientação do tráfego é inversa à nossa. Os volantes dos carros ficam no lado direito. A via de ida é a da esquerda e a de volta da direita. Perante o movimento do centro de Galway, olhar para todos os lados tem me livrado de alguns atropelos. E sendo a configuração da vida irlandesa bastante diferente da que eu estou acostumada, olhar me orienta, ver me fascina, ler me ajuda, e observar me ensina muito. Novos olhares são propulsores de novas imaginações e outras criatividades. Os inúmeros olhares se cruzam, se misturam. Olhares azuis, castanhos, maquiados, cansados, alegres, jovens, chorosos. Olhares diversos que guardam toda uma vida de riquezas. Além disso, diante de tanto impacto, o olhar pede, quase implora, pelo registro de tanta peculiaridade.

Arquivo pessoal

Falar do olfato, assim como do paladar, é falar de uma amplidão sem fim. Mesmo no verão, para mim, o cheiro da vida aqui é cheiro de mofo. Ao falar isso, não pejoro os ares irlandeses, muito pelo contrário, os considero milenarmente abençoados e talvez por isso tenham cheiro de mofo. Mas não sufocam, abrem os pulmões. Na beira do mar, o vento dança e se renova sem parar. Há o cheiro das lindas e diversas flores, dos diversos perfumes, da grama molhada, das interessantíssimas comidas dos restaurantes. Há o cheiro dos peixes, assim como o gosto deles. Falando em gostos… ahhh… quantos gostos diferentes! Quantos temperos, quantos sabores! Quanta mistura. Não digo melhor ou pior, apenas diferentes.

Arquivo pessoal

E de toda essa profusão de sentidos (agora já me refiro aos sentidos como o significado de algo), onde paradigmas vão sendo estraçalhados e reconstruídos rotineiramente, talvez uma das únicas certezas que prevaleça seja a de que eu sou apenas mais uma diferença diante de tantas outras. Hoje, sou diferença. Sou diferente. E assim vou me sentindo a cada dia: desterritorializada, ainda incomodada (faz parte), mas também animada com (e por) isso.

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