Os Anormais

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Nesse livro, Foucault analisa o dispositivo médico-jurídico, mais precisamente, a perícia psiquiátrica entranhada no sistema judiciário, pressupondo transformações consideráveis no regime de poder da sociedade contemporânea, pela engrenagem saber médico/sistema penal.

Então, no cerne desse novo funcionamento do poder, estão os indivíduos perigosos, loucos, criminosos, entre outros, cujos comportamentos e pensamentos são percebidos como atraso do desenvolvimento mental. Por conseguinte, o crime, por exemplo, é abordado pelo sistema penal, não somente como uma infração à lei, mas também, como sintoma de uma perturbação do desenvolvimento psicológico do indivíduo. Daí, a identificação entre crime e loucura, na medida em que são atribuídos ao indivíduo anormal.

De acordo com Foucault, o anormal é o indivíduo definido pela perícia médico/psicológica acerca de seupotencial de periculosidade, ou melhor, de criminalidade, indicado por seus traços psicológicos, tais como,<imaturidade psicológica>, <personalidade pouco estruturada>,<instabilidade emocional>, que “no discurso médico-psicológico, são apresentados como a causa, a origem, a motivação, o ponto de partida do delito” (FOUCAULT, 1999, p.15). Assim, o anormal é uma figura constituída a partir da articulação entre o saber médico e as práticas penais. Trata-se, nesse sentido, do objeto do conhecimento e, também, das práticas de regulação social a propósito do qual se estabelecem novas formas de relação entre o sujeito e seu delito.

Com efeito, o anormal, é a figura que do interior das instâncias de poder, tais como a família, escola e meio de trabalho, surge como problema do desenvolvimento humano, cognitivo e/ou moral. São os hábitos sexuais e sociais cotidianos que revelam o grau de anormalidade do indivíduo, assim, como por exemplo na atualidade, a desconcentração nas tarefas escolares revela a criança com déficit de atenção.

De fato, podemos assinalar, em conformidade com as análises foucaultianas, que nesse domínio médico/jurídico é o indivíduo anormal que se torna alvo das intervenções sociais, uma vez que não é pelo crime, como uma violação da lei, que o indivíduo é julgado pelo sistema penal, mas pela sua delinquência, quer dizer, nem doença nem delito, mas desenvolvimento incompleto e imperfeito, como por exemplo, a imaturidade emocional. Daí, as práticas normalizadoras operarem nas mais diversas instituições, como a família, escola, fábrica e prisões etc, visando a correção e a melhoria do desenvolvimento do indivíduo e não sua punição.

Para ilustrar a proposição foucaultiana sobre o anormal, como princípio das relações de poder, podemos usar, o caso policial da família Pesseghini, recentemente acontecido no Brasil, que foi amplamente divulgado pelas mídias e teve grande repercussão social. Tratam-se das mortes de 5 membros da família: o casal de policial, o filho, a avó e a tia-avó.

A tragicidade desse acontecimento se torna ainda mais aguda pelo fato das suspeitas policiais recaírem sobre o único filho adolescente do casal, Marcelo Pesseghini, que após a morte dos familiares foi à escola e ao retornar se matou. Vejamos a matéria publicada no Correio Popular, em 13/12/13:

Dois colegas do estudante Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, de 13 anos, disseram em depoimento ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) nesta terça-feira (20), que o adolescente teria matado os pais, a avó e a tia-avó. Ele teria revelado o fato aos amigos no último dia 5, minutos antes do início da aula. De acordo com as investigações da polícia, Marcelo foi à escola horas depois de matar a família, voltou para casa, na Brasilândia, na zona norte de São Paulo, e se suicidou.

(…) Os amigos de Marcelo disseram que ele criou um grupo de meninos chamado ‘Os Mercenários’, que também tinha o desejo de assassinar os pais, inspirado no jogo de videogame ‘Assassin’s Creed’.??Segundo a polícia, o depoimento de um dos amigos confirmou a suspeita de que Marcelo também pretendia matar a diretora do colégio. Ela teria percebido uma grande mudança no comportamento do adolescente – ele começou a usar um gorro até mesmo dentro da sala de aula –meses antes das mortes.??Para avaliar a mudança brusca no comportamento do menino, a polícia convocou o psiquiatra forense Guido Palomba para acompanhar as investigações.(http://correio.rac.com.br/_conteudo/2013/08/capa/nacional/92780-marcelo-pesseghini-disse-a-colegas-que-matou-a-familia.html)

Para o esclarecimento desse acontecido, esses testemunhos ainda não são suficientes para se declarar a culpabilidade de Marcelo, uma vez que no sistema judiciário, articulado ao saber médico, a condenação de um indivíduo, requer, como prova legal, não só a comprovação da autoria do crime, mas também, os modos de implicação do indivíduo no ato. Em outros termos, para o processo penal funcionar é preciso que se ateste a criminalidade do acusado, isto é, seu potencial para a “passagem ao ato” (como diríamos lacanianos). Daí a pujança do caso de Marcelo,que faz ecoar perguntas a respeito do caso de um menino de 13 anos que silenciosamente mata a família e vai à escolar: por que Marcelo matou o pai a mãe, a avó e a tia?

É a propósito desse questionamento sobre a crimininalidade de Marcelo, quer dizer, do grau de sua inclinação ao crime, que a perícia médico-legal investiga sua vida, buscando no seu dia a dia na família, na escola, na vizinhança os indícios da tragédia.Trata-se aí de traçar ao longo da vida de Marcelo uma série de atitudes, que se equivalem ao crime, na medida em que dizem respeito a um padrão regressivo do desenvolvimento psíquico, situando, assim, a anormalidade no lugar de destaque da cena do crime.

Ora, o comportamento de Marcelo de ir à escola após ter matado toda a família é vinculado pelos peritos, mas também, pelo senso comum, ao crime, ambos indicam o caráter regressivo de Marcelo em lidar com a realidade, quer dizer, referem-se às falhas do desenvolvimento das funções psicológicas de autoregulação/autocontrole em referência às interdições constitutivas das relações humanas.

Nessa perspectiva, conforme a leitura foucaultiana, é esse dado concreto, qual seja, a forma de vida do indivíduo, como índice da periculosidade, de Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, por exemplo, que certifica, para a perícia, a sua culpabilidade. Portanto, através dessa engrenagem medico/judiciário se cria uma relação de identidade entre indivíduo e crime, assim, por exemplo, no caso de Marcelo, o crime se relaciona a identificação do jovem ao “’Assassin’s Creed’.

Para Foucault, essa vinculação, estabelecida pela perícia médico/psicológica, entre indivíduo e delito se estende a outros aspectos da vida, como os modos de ser sexual, uma vez que aí também diz respeito ao processo de desenvolvimento físico e mental do indivíduo. Daí, as práticas de regulação dos hábitos sexuais, relacionando-os às psicopatologias, da atividade escolar, da vida cotidiana, ocorrendo, dessa maneira, uma extensão da norma em toda teia social.

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História da Loucura, cinquenta anos depois… ainda é um livro atual?

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Há cinquenta anos Foucault publica seu livro sobre a história da loucura na idade clássica. Trata-se da formação de uma percepção da loucura como doença mental, a partir dos jogos de poder/saber característicos das sociedades européias dos séculos XVII e XVIII. A prática de enclausuramento do louco em instituições fechadas marca a emergência da relação de oposição entre loucura e civilização. Desse modo, Foucault condiciona a nossa experiência médica da loucura às práticas sociais, definindo-a como fato cultural e não natural e individual.

Assim, uma tese central no livro “História da loucura na idade clássica” de Michel Foucault, publicado em 1961, é a de que a intervenção médica sobre a loucura remonta às práticas de exclusão, portanto, implica dominação.

Ora, testemunhamos hoje reformas psiquiátricas, que consistem na abolição de práticas de exclusão dos doentes mentais nos hospícios. Daí, nossa indagação: o livro História da loucura é atual? Ou seja, as teorias e as práticas em saúde mental e psiquiatria podem ainda ser analisadas à luz das relações de poder?

Hoje, a psiquiatria goza de um alto prestígio no meio científico devido à objetividade das noções diagnósticas e ao tratamento farmacológico. Seu sucesso extrapola o campo estritamente médico, pois seus termos clínicos, como por exemplo, depressão e ansiedade, são usados cotidianamente pelos próprios indivíduos para descrever seus estados mentais. Vemos, então, a psiquiatria cada vez mais afastada daquela imagem que a caracterizou desde sua emergência, no século XIX, até meados do século passado, como prática autoritária, segregacionista e violenta.

Assim, alguns podem afirmar que a psiquiatria hoje não exclui, mas, ao contrário, visa à inclusão, portanto, não exerce relação de poder, mas de saber.

Ora, é essencial esclarecer, que a tese fundamental desse livro é a de que a loucura é ontologicamente, e não somente circunstancialmente, um fato cultural, quer dizer, a loucura como realidade cultural é um fenômeno que diz respeito aos modos como indivíduos se vinculam uns com os outros, (identificando-se, individualizando-se, opondo-se) e  suas instituições. Pois, mais do que para os maus tratos ou inoperância da clínica médica, Foucault chama atenção para o caráter constitutivo das relações entre loucura, ciência e laços sociais.

Portanto, podemos dizer que a História da loucura é um livro atual, na medida em que é a referência para os questionamentos acerca das relações de poder e saber subjacentes as políticas contemporâneas de promoção de saúde mental.

Daí, nossas indagações:

1) Que forma de poder caracteriza essas práticas(saúde) e quais seus efeitos no indivíduo e na coletividade?

2) Em que medida podemos dizer que as práticas em saúde mental rompe com a relação de dominação da loucura, uma vez que se afasta do modelo do enclausuramento?

Em linhas gerais, podemos dizer que as práticas e os saberes em saúde mental podem ser considerados dispositivos de normalização, pois, seguindo a linha de raciocínio inaugurada por Foucault, são intervenções que definem formas de subjetivação e de relações sociais a partir do imperativo da qualidade de vida, quer dizer, da realização subjetiva e social do indivíduo. Eis, assim, a grande expectativa acerca da saúde mental.

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