“Os Seus, os Meus e os Nossos” – famílias reconstituídas e seus desafios

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Famílias reconstituídas podem afetar profundamente os membros do sistema familiar, uma questão cada vez mais vivenciada pelas famílias atuais.

O conceito de família vem sendo modificado ao longo dos anos, ajustando-se aos novos tipos de constituição familiar. Sluzki (1997) atuou na ampliação de tal significado ao compreender o conceito como sendo abrangente a todos os membros de determinada moradia, que anteriormente era entendida como sendo formada apenas por pai, mãe e filhos.

No que diz respeito às mudanças sofridas pelo conceito original de família, destaca-se o entendimento sobre famílias reconstituídas, que são compreendidas como uma estrutura familiar que se origina de um novo casamento ou união, após uma ruptura familiar, sendo que um ou ambos integrantes já possuem filhos de outro relacionamento. Ainda, ressalta-se que as relações entre um cônjuge e os filhos do outro definem o eixo central que comanda essa nova organização familiar. Essa fusão de famílias é composta por sujeitos de diferentes regras, valores e costumes, o que pode ocasionar conflitos dentro do ambiente familiar. Os membros dessa nova formação vivenciam novas dificuldades quanto à autoridade dentro de casa, espaço e tempo, precisando ajustarem-se em uma nova normativa que funcione para o grupo todo.

O filme “Os seus, os meus e os nossos” foi lançado em 2006 e se trata de uma comédia e é um remake do do filme homônimo de 1968. O pai possui dez filhos e é viúvo, reencontra sua namorada do colégio, agora também viúva e que conta com oito filhos, e decidem se casar sem contar aos filhos.

Fonte: encurtador.com.br/gszK4

Como esperado, as famílias não se dão bem logo no início. São duas estruturas familiares completamente diferentes, com regras e costumes bastante distintos. Por isso, ao longo da produção, os telespectadores se divertem com os planos das crianças de acabar com o casamento dos pais. Quanto às novas relações fraternas do sistema, Ferraris (2002) citou alguns problemas que podem acontecer ao iniciar o processo de junção familiar, sendo divisões materiais e de espaço, mudanças na posição familiar, sentimento de perda do seu lugar, alianças ou coligações.

Tais problemas são evidenciados no filme, quando os atritos começam a acontecer entre os filhos devido ao antigo funcionamento familiar. Mudanças como o horário de usar o banheiro, barulhos excessivos, bagunças, reclamações, entre outras, são sentidas pelos jovens, que se incomodam a ponto de tramarem juntos contra o relacionamento dos pais. Sabe-se que cada membro da nova família possui uma história única, construída dentro do sistema familiar anterior, diante disso, os novos familiares não compartilham o mesmo estilo de vida, já que suas histórias familiares não são compartilhadas.

Portanto, os filhos são submetidos a regras e estilos de parentalidades distintos, o que pode prejudicar a formação de vínculos nesse novo grupo. É comum que surjam triângulos conflitivos, aumentando a complexidade do cotidiano familiar. O pai ou a mãe, ocasionalmente, pode tentar exercer um papel de substituição, que pode ser interpretado como um inconveniente, uma transgressão de papéis. Nesses casos, a relação conflituosa piora e a complexidade do sistema apenas aumenta.

No filme, as crianças foram criadas de formas extremamente diferentes, sendo uma família acostumada a seguir várias regras, e a outra bastante permissiva. Os jovens se incomodam com a desorganização desse novo ambiente familiar, gerando desentendimentos e sofrimento.

Além de toda essa perspectiva, ressalta-se o fato de que os pais não comunicaram aos filhos a respeito do casamento, o que gerou ainda mais sofrimento ao processo. Minuchin (1982) destacou a importância do diálogo no ambiente familiar, que foi prejudicada pelo segredo mantido pelos pais.

Günther (1996) discorre sobre o bem-estar dos jovens, alegando que este é amplamente dificultado por problemas de comunicação e falta de compreensão por parte das figuras parentais. Ainda é necessário levar em consideração que essas crianças vieram de outra relação conjugal, precisam lidar com a crise originada na separação, que os afeta em diferentes níveis de acordo com sua idade.

Como dito por Garbar e Theodore (2000), o laço biológico é claro e descomplicado, enquanto o laço afetivo é subjetivo e complexo. No entanto, é totalmente possível que se formem laços afetivos entre os membros da família recasada, o que se configura como uma “adoção emocional”, de acordo com Ribeiro (2005).

Fonte: encurtador.com.br/cGJ19

Esse fenômeno é retratado no filme, que expõe uma nova dinâmica familiar ao fim da obra. Após a descoberta dos planos das crianças, a relação entre os membros melhora a partir do diálogo e da empatia. O avanço possibilita um ajustamento das regras e dos valores de ambos os grupos, agora combinados. Quando a família reconstituída não encontra um modelo em comum, todos os membros são afetados e sofrem.

No entanto, alguns pais possuem as esperanças de conseguir um recomeço em suas vidas a partir do novo casamento, e esperam que os filhos vejam a mesma oportunidade, deixando para trás seus vínculos afetivos formados anteriormente. Essa reconstituição pode ser admitida de diversas formas nos elementos do coletivo, como destaca Alarcão (2002). Alguns podem enxergá-la como a construção de um novo projeto, uma oportunidade de boas mudanças, enquanto outros a encaram como a perda de um progenitor, sofrendo durante o processo.

Amaral (2010) disserta sobre isso, ao dizer que as vivências anteriores do filho fazem parte da construção de sua identidade, e é difícil precisar se desvincular dos parentes que estavam mais presentes em suas vidas antes do recasamento. Esse quadro também é o criador de diversas resistências sofridas pelos jovens. A ideia de terem um “novo pai” ou uma “nova mãe” pode distanciá-los dos novos vínculos a serem formados. Diante disso, novamente destaca-se a importância da comunicação entre os membros da nova família.

Conviver com novas pessoas, em um ambiente familiar completamente desconhecido pode ser assustador para muitas crianças. Trata-se de uma grande mudança que acontece no meio de seu desenvolvimento, este também deve ser levado em consideração ao se lidar com a formação de uma família. Para que não haja o distanciamento da criança, além de sofrimento a todo o grupo, deve-se considerar os aspectos subjetivos vivenciados por cada membro. Uma boa comunicação também é imprescindível para a formação facilitada de vínculos afetivos.

As famílias reconstituídas não são estranhas quanto ao desenvolvimento da sociedade. É possível verificar, ao longo da história, uma clara adaptação dos conceitos familiares aos novos modelos que surgem com o passar do tempo. É de extrema importância considerá-los, pois são parte fundamental do crescimento de cada indivíduo. Em contrapartida, esse novo sistema familiar pode oferecer um espaço para crescimento individual e coletivo, como apontado por Alarcão (2002). Não existem apenas reações negativas, e nem apenas malefícios. A mudança pode acarretar em um funcionamento saudável e benéfico a todos os membros.

É necessário atentar-se às necessidades e especificidades de cada membro, entendendo o processo vivenciado por cada um e acolhendo suas reações, por mais adversas que sejam. É possível, ainda, que o funcionamento do sistema demore a acontecer, passe por um tempo de reajuste, por isso a paciência e a compreensão devem ser os melhores amigos dos integrantes.

REFERÊNCIAS

  1. Alarcão, M & Relvas, I. Novas formas de família. Coimbra: Edições Quarteto, 2002.
  2. AMARAL, D. H. Recasamento: percepções e vivências dos filhos do primeiro casamento. [Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica], Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2010.
  3. FERRARIS, A. Filhos de famílias divorciadas e reconstituídas: identidade e história familiar. . Porto Alegre: Artmed, 2002.
  4. MINUCHIN, S. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artmed; 1982.
  5. GÜNTHER, I. A. Preocupações de adolescentes ou os jovens têm na cabeça mais do que bonés. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12, 61-69, 1996
  6. SLUZKI, C. A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
  7. GARBAR, C.; THEODORE, F. Família mosaico. São Paulo: Augustus, 2000.
  8. RIBEIRO, R. M. F. Adoção emocional em famílias de recasamento: um estudo sobre a construção das relações afetivas entre padrastos/madrastas e seus enteados. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
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Como a família de Harry Potter impactou seu desenvolvimento?

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Conflitos intrafamiliares, segredos e negligências fizeram parte do processo de desenvolvimento de Harry Potter.

Harry Potter é o personagem principal de uma saga de sete romances publicada pela autora J.K.Rowling. Os volumes da autora percorreram o mundo, tornando Harry Potter um dos personagens mais queridos da literatura fantástica. Em 1998 o primeiro livro era lançado e, em 2001 era adaptado para os cinemas. Os filmes e livros da saga Harry Potter marcaram a infância e adolescência de muitas pessoas, e ainda hoje são conhecidos mundialmente e consumidos pela população.

O primeiro livro introduz a história de Harry Potter, um garoto de onze anos que perdeu seus pais com apenas um ano de idade, em um confronto contra o Lorde das Trevas. No embate, seus pais se foram, mas Harry sobreviveu, ficando famoso no mundo dos bruxos por ter sido o único a sobreviver a um encontro com o poderoso bruxo.

Harry passou a viver com seus tios e o primo após a perda, que mantiveram em segredo as origens do garoto, assim como o fato de que ele possuía habilidades especiais. Ao completar onze anos, Harry recebe cartas que o convocam até Hogwarts, a escola de magia. Mesmo com as tentativas do tio de impedi-lo de recebê-las, Harry descobre a verdade e parte para a escola.

No primeiro volume da saga, Harry faz amizades, descobre mais a respeito de seus pais e aprende os segredos do mundo dos bruxos. Os leitores acompanham o desenvolvimento pessoal, social e acadêmico do garoto que, anteriormente, se sentia deslocado e sozinho.

Inicialmente, a autora contextualiza a criação do personagem principal narrando como eram suas relações com a família Dursley e os sentimentos do jovem bruxo. Harry, seus tios e seu primo compõem uma família marcada por disfuncionalidades que afetam o garoto de diferentes formas.

Uma família é compreendida como funcional quando os integrantes do sistema são capazes de prepararem-se para enfrentar crises internas e externas, que afetam diretamente a saúde familiar e o bem-estar dos membros.¹ Quando a família não consegue promover um desenvolvimento saudável para seus integrantes, não apresenta comunicação e capacidade de se adequar às mudanças, é caracterizada como sendo disfuncional.²

Boneco Funko Harry Potter.
Fonte: Imagem de PokeyArt no Pixabay.

Os primeiros anos de vida do sujeito são de extrema importância para um crescimento emocional saudável e configuram uma base para seu equilíbrio psicossocial. Sentimentos como abandono, perda, ausência, tristeza, humilhação, medo e angústia podem servir como origem para comportamentos antissociais.³ Torna-se possível, portanto, identificar diversos momentos na saga Harry Potter que contextualizam os leitores da criação que o personagem recebeu na casa de seus tios, sendo um crescimento marcado por violências e falta de atenção.

No primeiro livro da saga, Harry Potter e a Pedra Filosofal, a autora traz situações fundamentais para o entendimento da criação da criança. O garoto dormia em um pequeno cômodo localizado embaixo da escada, usava roupas antigas do primo – que muitas vezes estavam desgastadas, possuía um péssimo relacionamento com todos da casa, era responsável pelas tarefas domésticas e recebia muitos castigos da família. Ainda no primeiro volume, é apresentada a situação na qual é aniversário do primo de Harry, Duda. No entanto, apesar do protagonista precisar fazer o café da manhã do primo, não é convidado para as comemorações. Nesta cena, a pessoa responsável por ficar encarregada de Harry durante o passeio da família é impossibilitada, então seus tios começam a debater o que fazer com a criança.

Inicialmente, discutem a respeito das pessoas que poderiam monitorá-lo, na falta de opções, consideram deixar a criança sozinha em casa, mas concluem que a mesma “destruiria” a casa. Posteriormente, refletem a possibilidade de levá-lo ao passeio e deixá-lo no carro, para só então resolveram levá-lo à comemoração. A criança ainda recebeu uma ameaça do tio, que disse “a primeira gracinha que fizer, a primeira, vai ficar preso naquele armário até o Natal”⁴.

A família de Harry se recusa a mandá-lo para o colégio e, posteriormente, não querem arcar com nenhum custo de materiais escolares que o garoto possa precisar, não oferecendo qualquer tipo de suporte para que o protagonista possa partir para Hogwarts. No segundo livro, Harry Potter e a Câmara Secreta, o tio do personagem recebe pessoas importantes em casa. Por isso, Harry precisa ficar trancado em seu quarto e é proibido de descer até a sala, pois seus tios não querem que ele atrapalhe a reunião importante, mesmo assim, seu primo participa do encontro.

A cena se repete em outros momentos, nos quais Harry é impedido de participar de programas realizados pela família e precisa ficar em outro local enquanto isso. Além disso, o garoto é vítima de bullying do próprio primo e seus amigos, que atormentam-no diariamente, enquanto o mesmo não possui nenhum círculo de amizades.

A violência vivenciada por crianças tem o poder de prejudicar todos os aspectos de sua vida, não apenas psicológicos, mas também físicos, comportamentais, acadêmicos, interpessoais, entre outros fatores que seguem todo o seu crescimento.⁵ As situações experienciadas por Harry em sua casa são marcadas por humilhações, violência e negligência.

Entende-se que a violência é uma maneira de restringir a liberdade do sujeito, por meio de repreensão física, sexual e moral. Crianças que vivem em constantes experiências marcadas por ausências ou presenças intrusivas, conhecem somente os extremos da distância afetiva. Por consequência, nota-se que o personagem é marcado por características como introversão e baixa autoestima. Ao ir para Hogwarts, a escola de magia, e se deparar com um mundo fascinante, Harry deseja, em uma cena, ter oito anos novamente. Essa descrição exibe a falta de infância vivenciada pela criança, que se maravilhou ao ir para um lugar diferente pela primeira vez.

O personagem é tido pelos tios como um bode expiatório, sendo punido por situações das quais não é culpado. O pavor dos tios pelo mundo bruxo é transformado em raiva pelo garoto, que é negligenciado pela família e culpado por todas as coisas ruins que acometem o ambiente familiar. A autoestima do personagem também é afetada pela forma como a família Dursley. Ao conhecer o mundo bruxo, Harry Potter descobre que é famoso por ter sobrevivido ao confronto que matou seus pais. Ao mesmo tempo, o garoto questiona suas habilidades a todo tempo, sem entender o motivo pelo qual sobreviveu, não se achando capaz de tal feito, além de enfrentar diversos conflitos no início de seu ano letivo, duvidando de sua aptidão.

Para que uma criança cresça e se desenvolva bem, é imprescindível que haja amor, segurança e limites impostos.⁷ No entanto, Harry é criado com limites rígidos, falta de afeto e suporte. Isso possui profundo impacto nos momentos seguintes, quando o garoto parte para a nova vida e estabelece relações interpessoais com os demais personagens.

No passar dos livros, Harry Potter consegue desenvolver relacionamentos com os novos colegas, e é acolhido por figuras que exercem o papel de direcionamento e afeto. Um exemplo disso é a relação com a família Weasley, que aparece com um funcionamento totalmente oposto à família de Harry. Os Weasley são numerosos, não possuem condições financeiras tão boas, mas são amáveis, cuidam uns dos outros e acolhem Harry como se fosse da família. Em várias cenas, Harry recebe presentes de Natal enviados pela família acolhedora.

Livros da saga Harry Potter.
Fonte: Imagem de crizgabi no Pixabay.

Outros personagens que foram fundamentais para o desenvolvimento social do garoto foram Dumbledore, Hagrid, Sirius Black, entre outros. Todos foram figuras importantes, que direcionaram o protagonista, demonstraram afeto e apoio emocional.

Mesmo tendo conflitos com outros garotos do colégio, o personagem é capaz de formar seu próprio círculo de amizades, desenvolver suas relações e tornar-se confiante de suas capacidades no meio acadêmico, recebendo o apoio necessário para sua evolução. É possível acompanhar o crescimento de Harry ao longo dos volumes da saga, que se torna um indivíduo obstinado, comprometido e com boas relações interpessoais. Sem uma intervenção precoce, crianças inseridas em famílias disfuncionais vivem em um cenário repleto de perdas, abandono, separações e angústias, podendo desenvolver e perpetuar graves patologias transgeracionais.

O rumo da vida do protagonista muda ao distanciar-se de casa e passar a conviver com pessoas que o acompanham em sua jornada. O sujeito em risco sempre se sente desamparado, sozinho, e necessita de uma intervenção que possa mudar suas concepções e acrescentar em seus conflitos.³ No caso de Harry Potter, os leitores acompanham uma nova rota em sua vida, ainda que o garoto tenha que retornar à casa dos tios. Os problemas como baixa autoestima e introversão são, aos poucos, superados, graças à presença de situações e indivíduos.

REFERÊNCIAS

  1. GÓMEZ, MTO. La família funcional y disfuncional, un indicador de salud. Rev. Cubana Med. Gen. Itegr. 1999;13(2):591-5. 
  2. SANTÍ, PMH. La salud familiar. Rev. Cubana Med. Gen. Itegr. 1997;15(4):439-45.
  3. STRECHT,  P.  (2003).  À  margem  do  amor.  Notas  sobre  negligência  juvenil.  Lisboa: Assírio & Alvim
  4. ROWLING, J. K. Harry Potter e a pedra filosofal. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000. p.23.
  5. GONÇALVES, Kellen Cristina. Ofendidos e Humilhados: O descortinar da violência infantil: Uberlândia MG  1976-1996. Uberlândia, 2009.
  6. STRECHT, P. (1999). Preciso de ti. Perturbações psicossociais em crianças e adolescentes. Lisboa: Assírio & Alvim.
  7. BLÉANDONU, G. (2003). Apoio terapêutico aos pais. Lisboa: Climepsi.
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