Cachorros não usam calças: A redescoberta do sentido da vida através do tabu

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“Cachorros Não Usam Calças” (2019), dirigido por Jukka-Pekka Valkeapää, é um filme finlandês que aborda temas de luto, descoberta pessoal e práticas BDSM (Bondage, Disciplina, Sadismo, Masoquismo). A trama segue Juha, um cirurgião cardíaco que perde sua esposa em um trágico acidente de afogamento. Anos após a perda, ele ainda está imerso em uma profunda apatia, incapaz de se conectar emocionalmente com o mundo ao seu redor. Sua vida muda ao conhecer Mona, uma dominatrix que o introduz ao universo do BDSM, levando-o a explorar novas formas de sentir e encontrar significado em sua existência. 

O filme retrata o BDSM não apenas como uma prática sexual, mas como um meio de exploração emocional e psicológica. Juha encontra nas sessões com Mona uma maneira de confrontar sua dor e vazio, utilizando a asfixia erótica como uma ponte para acessar uma experiencia de quase morte e, paradoxalmente, sentir-se vivo novamente. Essa jornada destaca o tabu em torno das práticas BDSM, mostrando-as sob uma luz complexa e humana, onde o sofrimento físico se entrelaça com a cura emocional.​

Podemos ver a imagem do tabu quando Juha apresenta marcas no pescoço no hospital em que trabalha, deixando seu colega de profissão preocupado com o crescente afastamento de Juha de sua ocupação profissional. Além disso, sua recusa em atender fora do horário, demonstrando uma aparente obsessão em não faltar às sessões com Mona, assim como marcas corporais cada vez mais frequentes, evidenciam como essas práticas começam a ocupar um espaço central em sua vida, afetando suas responsabilidades e relações pessoais.​ Esses elementos ressaltam a complexidade da jornada de Juha, que busca na dor física uma forma de lidar com sua dor emocional, desafiando normas sociais e profissionais ao se aprofundar no mundo do BDSM.

O encontro dessa experiência se intensifica a cada sessão, à medida que Juha se entrega mais profundamente às práticas de asfixia erótica conduzidas por Mona. Durante esses momentos, ele vivencia uma sensação de êxtase, onde sua mente parece romper com a realidade imediata e mergulhar em um estado limítrofe entre a vida e a morte. Nessas experiências, ele tem visões ou recordações vívidas de sua falecida esposa, como se, por breves instantes, pudesse estar novamente ao seu lado.

Mais do que uma experiência física extrema, esses momentos representam simbolicamente a capacidade de Juha de recuperar o sentido de sua existência, um sentido que se perdeu com a morte da esposa. A asfixia, nesse contexto, não é apenas uma forma de prazer, mas um mecanismo pelo qual ele reconstrói seu vínculo emocional e encontra uma maneira de ressignificar sua dor. Assim, paradoxalmente, ao flertar com a morte, Juha reencontra a vida – não no sentido convencional, mas em uma nova forma de existência, onde a dor física se torna um catalisador para a cura emocional.

O BDSM, portanto, se torna para ele mais do que uma prática sexual ou fetichista; é um veículo para acessar sentimentos reprimidos, um caminho de reconstrução psicológica e existencial. Ele não apenas revive sua perda, mas encontra uma nova maneira de dar sentido à sua vida, descobrindo que sua jornada de luto não precisa ser um ciclo interminável de sofrimento passivo, mas pode ser transformada em uma busca ativa por significado.

Já para Mona, a relação com Juha também representa uma descoberta significativa, marcando uma ruptura com sua abordagem profissional e emocional habitual. Acostumada a interações superficiais com seus clientes, onde a dominação é exercida de maneira estritamente performática e impessoal, ela se depara com alguém que não está apenas em busca de prazer momentâneo ou de uma experiência fetichista passageira. Juha, ao contrário da maioria de seus clientes, se entrega ao BDSM com uma intensidade emocional genuína, enxergando as sessões como um meio de acessar sua dor e encontrar um sentido para sua existência. Esse envolvimento transcende a dinâmica convencional entre dominadora e submisso, desafiando Mona a repensar seu próprio papel e os limites que estabelece em sua prática.

À medida que os encontros entre os dois se tornam mais frequentes e intensos, Mona começa a demonstrar sinais de um envolvimento emocional que vão além de sua postura profissional. Pequenos gestos, antes impensáveis dentro de sua rígida separação entre vida pessoal e trabalho, passam a revelar sua crescente afeição por Juha. Um exemplo marcante é o momento em que ela decide vestir o vestido que ganha de presente dele, um ato que sugere não apenas gratidão, mas uma aceitação simbólica do vínculo que se forma entre os dois. Esse gesto rompe com sua imagem de dominatrix inatingível, demonstrando que, de alguma forma, Juha também a afeta em um nível mais profundo.

Além disso, Mona começa a flexibilizar suas próprias regras ao atendê-lo em horários especiais, algo que ela normalmente não faria para nenhum outro cliente. Essa concessão indica que Juha já não é apenas um submisso comum dentro de seu universo, mas alguém que desperta nela um interesse e uma conexão autêntica. Essa aproximação emocional desafia Mona a lidar com sentimentos que talvez ela própria não esperasse vivenciar dentro desse contexto. Se antes ela controlava completamente a dinâmica das relações que estabelecia, agora se vê em um território desconhecido, onde a dominação e a entrega emocional se entrelaçam de maneira imprevisível.

A jornada de Juha em Cachorros Não Usam Calças pode ser analisada à luz da logoterapia de Viktor Frankl, que enfatiza a busca por sentido como força motriz da existência humana. Após a perda de sua esposa, Juha se torna emocionalmente apático, vivendo de forma mecânica e sem propósito. Seu envolvimento com Mona e o mundo do BDSM rompe com esse estado de anestesia, permitindo que ele resgate sua capacidade de sentir através da dor física, que paradoxalmente se torna um canal para sua reconstrução emocional. A experiência do BDSM deixa de ser apenas um fetiche e se transforma em uma ferramenta de ressignificação, onde Juha encontra um novo propósito e identidade. Em vez de ser consumido pelo luto, ele aprende a transformar seu sofrimento em um caminho de autodescoberta, refletindo a ideia central da logoterapia de que, mesmo na dor, é possível encontrar um sentido para continuar vivendo.

Paralelamente, a jornada de Mona pode ser compreendida sob a perspectiva da psicologia humanista de Carl Rogers, que valoriza a autenticidade e a autorrealização como elementos centrais do desenvolvimento humano. Ao se permitir envolver-se emocionalmente com Juha, Mona dá um passo em direção a uma relação mais autêntica consigo mesma, quebrando barreiras que antes pareciam intransponíveis. Sua conexão com Juha não se baseia apenas em um jogo de poder, mas se transforma em uma exploração mútua da vulnerabilidade e da necessidade de pertencimento. Dessa forma, a história de Mona não é apenas a de uma dominadora que encontra um submisso capaz de acompanhá-la, mas também a de uma mulher que, ao sair de sua zona de controle absoluto, descobre novas camadas de si mesma e do que significa se conectar verdadeiramente com outro ser humano.

“Cachorros Não Usam Calças” é uma narrativa poderosa sobre como indivíduos podem encontrar sentido e autenticidade em lugares inesperados, desafiando tabus e explorando os profundos recantos da psique humana.

Cachorros Não Usam Calças (Dogs Don’t Wear Pants):

Título original: Koirat eivät käytä housuja

Título em inglês: Dogs Don’t Wear Pants

Ano de lançamento: 2019

País de origem: Finlândia, Letônia

Direção: J-P Valkeapää

Roteiro: J-P Valkeapää, Juhana Lumme

Produção: Aleksi Bardy, Helen Vinogradov, Jani Pösö

Elenco principal: 

Pekka Strang como Juha

Krista Kosonen como Mona

Ilona Huhta como Elli

Jani Volanen como Pauli

Gênero: Drama, Romance, Thriller

 

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