O cerceamento da loucura e a luta antimanicomial no Brasil

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Um breve compêndio da reforma psiquiátrica brasileira: completando 23 anos em 2024, permanece mais necessária do que nunca!

No passado, as pessoas com sofrimento mental eram encarceradas em manicômios, instituições marcadas por práticas desumanas, como isolamento social, contenção física, terapias agressivas e uso excessivo de medicamentos. A privação de liberdade, a negação da individualidade e a ausência de perspectivas de reinserção social eram realidades cruéis que permeavam o dia a dia nesses locais.

Inspirados por movimentos sociais e pela crescente crítica à lógica manicomial, diversos profissionais de saúde mental, ativistas, familiares e pessoas com sofrimento mental se uniram para dar início à Luta Antimanicomial, motivados por ideais humanistas e pela busca por um futuro mais digno para aqueles que sofrem com transtornos mentais.

Ao longo das últimas décadas, a Luta Antimanicomial conquistou importantes avanços no Brasil, com a desinstitucionalização de milhares de pessoas, a criação de serviços extra-hospitalares e a aprovação de leis que garantem os direitos das pessoas com sofrimento mental. No entanto, ainda há muitos desafios a serem superados, como a falta de infraestrutura adequada, a carência de profissionais qualificados, a persistência do estigma e a desigualdade no acesso a serviços de saúde mental de qualidade.

Foucault (1972) defende que a loucura passou a ser internalizada dado o momento que foi atribuída à pobreza, à incapacitação para o trabalho, transformando-se em problema social. As pessoas agem distintamente em diferentes realidades e contextos sociais, buscando a conformidade e o enquadramento, em uma perspectiva de instituição total (FOUCAULT, 1987). A loucura desestabiliza a ordem dominante e os padrões de normalizações produzidas.

O pensamento de Franco Basaglia e a Luta Antimanicomial no Brasil foram inspirados por um movimento que buscava romper com razões excludentes para trancafiar o louco e lhes impor punições como forma de tratamento. A loucura, enquanto a não adequação à normalização social, é ainda controlada, silenciada, invisibilizada e regulada pelo discurso médico movido pela razão instrumental e pelo pragmatismo (BIRMAN, 2003).

Basaglia (1979) elucidou que a pessoa louca, destituída de razão, não era considerada como os outros cidadãos, ou seja, não tinha direitos pois, supostamente não poderia exercer sua vontade e nem se apropriar de sua liberdade, pela falta de discernimento. Birman (1992) aponta que a cidadania e direitos das pessoas loucas é a centralidade da proposta da luta antimanicomial, demandando não somente uma rede de atenção à saúde mental, mas a recuperação histórica de sua cidadania e de novas relações com a sociedade, em que a pessoa louca também seja reconhecida como agente de transformação da realidade.

No Brasil, a adesão à construção de colônias agrícolas para alienados encontrou um “ambiente político e ideológico propício ao seu florescimento” (RESENDE, 1987). A cidade de Barbacena, por exemplo, tornou-se conhecida como a “Cidade dos Loucos” devido aos trens lotados de pessoas vindas de todo o Brasil que eram deixadas lá, muitas vezes sem nenhum transtorno mental que justificasse sua internação (ARBEX, 2013).

Hospício Colônia: acusações pontuais de irregularidades levaram ao fim de todo o sistema manicomial do Brasil. Fonte: Luiz Alfredo/ Divulgação/ Wikipedia

Os métodos empregados no Hospital Colônia em Barbacena foram extremamente desumanos, configurando um genocídio, onde mais de 60.000 internos foram exterminados (ARBEX, 2013). O extermínio intencional visa eliminar uma comunidade, um grupo étnico ou religioso, uma cultura ou civilização, como exemplificado pelo genocídio dos índios das Américas (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2022).

A Reforma Psiquiátrica no Brasil iniciou-se no final dos anos 70, resultando na promulgação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080) de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, com princípios fundamentais de universalidade, integralidade e equidade (PAIM, 2009). Além disso, a Lei No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, salvaguarda os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, proporcionando a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e dos Centros de Assistência Psicossocial (CAPS).

Por isso, no dia 18 de maio é celebrado o dia nacional da luta antimanicomial, que defende a humanização e dignidade na saúde mental, seus  princípios fundamentais convergem com os pilares dos direitos humanos, por isso essa duas temática vem sendo adotadas nos Encontros Nacionais de Luta Antimanicomial projetando discussões como “Cidadania e Exclusão”; “Por uma sociedade sem exclusões”. 

A exemplo dessa atuação a obra de Marcus Vinicius de Oliveira o “A Instituição Sinistra – Mortes Violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil” o seguinte relato:

“os ares democratizantes assistiram o nascimento e crescimento do movimento nacional da luta antimanicomial, que fez sua a causa da transformação da realidade da assistência psiquiátrica nacional. Não por acaso, as situações aqui recolhidas resultaram dos esforços de intervenção e denúncia dos Núcleos deste movimento, em atuações políticas concretas em defesa dos direitos humanos. E em quase todos eles, as apurações e responsabilizações obtidas, apesar de insatisfatórias, resultaram da militância e da vigilância desse movimento junto às autoridades responsáveis.” (OLIVEIRA, 2001, p. 9).

A reflexão sobre a importância da continuação da luta antimanicomial, mesmo após o extermínio dos manicômios, é essencial para o desenvolvimento de um sistema de saúde mental mais justo, humanizado e comprometido com a inclusão social das pessoas com sofrimento mental. O fechamento dos manicômios no Brasil representou um marco histórico na humanização da saúde mental, significando o fim de um sistema que violava os direitos básicos desses indivíduos. Entretanto, a luta antimanicomial não termina com a desinstitucionalização. Sua relevância se estende à defesa de um sistema que promova a reinserção social das pessoas com sofrimento mental, garanta acesso a serviços de qualidade e combata estigma e discriminação.

Historicamente, o movimento antimanicomial buscou substituir práticas violentas e desumanas por tratamentos mais humanizados e cuidadosos. Ao longo dos anos, foram alcançados avanços significativos, como a abolição do tratamento com choque e a mudança da nomenclatura de “manicômio” para “centro de reabilitação”. No entanto, desafios persistentes, como a estigmatização da causa e a luta contínua contra o retrocesso das conquistas alcançadas, ainda existem.

É fundamental que a luta antimanicomial seja vista como um processo contínuo e evolutivo. A implementação de políticas públicas adequadas é crucial, pois garante o acesso universal ao tratamento com dignidade. Mantendo a luta antimanicomial ativa, contribuímos para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Isso resulta em menos estigma e maior acolhimento, assegurando que pessoas em sofrimento psicológico recebam o tratamento adequado, independentemente de sua condição mental.

Referências

AMARANTE, P.Nunes, M. D. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & saúde coletiva, 23, 20672074.

AMARANTE, P. (Ed.). (1998). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. -Editora FIOCRUZ.

AMARANTE, P. (1996). O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Editora Fiocruz. 

ARBEX, D. (2019). Holocausto brasileiro. Cidade: Intrínseca.

BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979.

BIRMAN, Joel. A cidadania tresloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos doentes mentais. In: BEZERRA JÚNIOR, Benilton; AMARANTE, Paulo (Orgs.). Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.

BIRMAN, Joel. Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 2 abr. 2024.

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 2 abr. 2024.

CORREIA, M. G. O. A Luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica brasileira. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – UFRN [Mossoró- RN], [2022].

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.

OLIVEIRA, Marcus Vinicius de. A Instituição Sinistra: Mortes Violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2001. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2004/05/Instituicao_Sinistra_Mortes_violentas_em_Hospitais_Psiquiatricos.pdf>. Acesso em: [4 abr. 2024].

OLIVEIRA , V. de M. C. . The historicity of madness and the anti-asylum struggle and deinstitutionalization in Brazil. Research, Society and Development, 2023. Disponível em <: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/39729 >. Acesso em: 4 abr. 2024.

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Esquadrão Suicida: Arlequina e os humanos, demasiadamente humanos

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Com uma indicação ao OSCAR:

Melhor Maquiagem e Cabelo 

Banner Série Oscar 2017

Esquadrão Suicida (Suicide Squad, 2016), um dos filmes mais hypados dos últimos meses, consiste na reunião dos vilões mais perigosos do universo DC em missões perigosas, onde suas vidas não têm muita importância em relação ao objetivo da tarefa que devem executar. Seus personagens, todos fora da lei, não querem salvar a humanidade ou o planeta, se o fazem é porque são obrigados.

Essa adesão do grande público por personagens dúbios com características destoantes com relação à ética e a moral vigente não é um fato isolado, mas uma tendência, vide os sucessos das séries Dexter (2006-2013) e Breaking Bad (2008-2013) e do filme Deadpool (2006). Se há uma aderência maior pelo público é por que existe uma identificação inconsciente com a história contada, os dramas, medos e desafios que os personagens carregam. Assim, é mais cool o público identificar-se com um anti-herói – que convive com seus defeitos e os usa na sua jornada – do que o herói – que sempre busca ir além do ser humano, para se tornar o super-humano.

Fonte: http://migre.me/w88EB

Arlequina

Entre tantos personagens, uma ganhou ares de protagonista à medida que o material publicitário do longa era liberado. Arlequina (Margot Robbie) se tornou a figura feminina mais popular do ano, desde a sua primeira aparição em 2015, no trailer do filme. Anarquista, ousada e forte, a garota de cabelos coloridos e jeito transloucado seduziu com seu corpo esbelto e roupas minúsculas a ala masculina, enquanto as adolescentes foram atraídas por sua – aparente – originalidade e coragem.

Mas ao analisar com detalhes a construção da personagem para os cinemas, temos na sua superfície um produto embalado propositadamente para reforçar fetiches condizentes com a nossa cultura patriarcal. Trocando em miúdos, Arlequina está mais para o reforço do machismo do que para qualquer sinal de empoderamento feminino. Como referência, uso para comparação Katniss, da franquia Jogos Vorazes (Hunger Games), figura cinematográfica feminina mais importante de 2015. Segue abaixo as imagens para melhor explicitar o contraste.

Fontes: http://zip.net/bhtFy3 e http://zip.net/bltDVM

O alívio do macho na guerra

Arlequina nasceu Harleen Frances Quinzel, criada especialmente para a série animada do Batman, é uma psiquiatra que cedeu sua racionalidade e sua vida ao Coringa, preso no Asilo Arkhan, até se tornar sua “companheira” fiel. Porém, essa transformação foi transposta para as telas superficialmente, o que basicamente assistimos é a regressão de uma mulher bonita, independente e de sucesso, em um objeto. Enquanto no filme a paixão pelo Coringa (um motivo por demais forte para enlouquecer mentes fracas) é o grande divisor de personalidade da Dr. Harleen Quinzel em Arlequina.

Na versão cinematográfica acrescentaram uma sessão de eletrochoque para ”formalizar” sua nova identidade. O encontro entre o sádico e o masoquista é explicito na cena que, subliminarmente, traz traços de BDSM (sadomasoquismo). Infelizmente, por causa deste detalhe, a Arlequina do desenho passa a ter mais nuances a serem destrinchadas do que sua versão em carne e osso, que se resume a alienação sentimental advinda, em partes, de um trauma físico.

Fonte: http://zip.net/bytFS9 e http://zip.net/bytFTb

Mas acredito que o maior ultraje a um personagem tão cativante quanto Arlequina, a ponto de ser inserida no rol fixo de vilões do Batman após uma curta participação, é sua delimitação como uma simples personagem Pin-up, inserida na trama com o único intuito de elevar a testosterona de um público majoritariamente masculino. O óbvio que reafirma modelos antigos com roupagem de moderno. Encontrar várias meninas se fantasiando tal qual a Arlequina dos cinemas, com o intuito de trazer transgressão para sua rede social ou alma é, no mínimo, incoerente quando historicamente isso já foi feito há décadas com a função de agradar homens e perpetuar sua fantasias.

Segundo matéria da revista Superinteressante o “Cabelo vintage, pele alva, batom vermelho e uma postura provocante, porém com algo de ingênuo, estão no manual da pin-up moderna”. E somar violência com sexo, esse último como válvula de escape, parece não ser nenhuma novidade se considerarmos o roteiro permeado de tiros e destruição do filme com o cenário a qual as pin-ups estavam exercendo sua função. “No começo, lugar de pin-up era na parede. Nos anos 40 e 50, era passatempo entre os soldados americanos pendurar (em inglês, pin-up) fotos de mulheres bonitas em seus alojamentos”. Como podemos ver, um retrocesso.

Fonte: http://zip.net/bbtFh6

A Arlequina propriedade

Adereços e a maquiagem pesada compõem a personagem. Tudo o que vemos no filme é como ela se coloca para o mundo, ou melhor, para o Coringa. No desenho, ela encarna o oposto feminino do seu amado, sua anima mal-resolvida, diria Jung. No longa, narra-se que ela passou uma temporada no circo quando fugiu com ele. Ao simplificar sua jornada, tiramos de cena uma característica de sua psicopatia para apresentarmos um projeto de, literalmente, uma palhaça. A graça da sua congênere advém da sua inteligência (ela é psiquiatra e atleta) somada a sua maneira distorcida de ver o mundo; no filme soa tudo muito vago, com suas ligações circenses.

Fonte: http://zip.net/bktFsc

Se a maquiagem e o (mini) uniforme já não seriam suficientes para a identificação imediata com sua fonte de amor, temos vários símbolos que vão dos descarados aos sutis para expor como um relacionamento pode ser alienante. Há a coleira onde está escrito o apelido do seu amado: Puddin (Pundizinho na versão tupiniquim) e uma jaqueta personalizada com os seguintes dizeres nas costas: “Property of joker”.  Externamente, temos uma mulher anunciando na parte frontal e dorsal que é “propriedade” exclusiva de uma pessoa.

Outro detalhe peculiar: Arlequina não tem uma arma branca, arma de fogo (que precisa recarregar depois de usada – a libido personificada na bala) ou magia (característica que denotaria certo contato com seu inconsciente, algo explorado em outra personagem feminina). Ela tem um bastão como principal arma de defesa e ataque, que ninguém toca. O bastão, símbolo fálico nas mãos de uma mulher enlouquecidamente apaixonada, é a sua ilusão de proteção que a figura do Coringa proporciona em sua ausência, a força masculina, rígida, forte e viril em suas mãos.

E a virilidade é uma característica essencialmente masculina, para Arlequina. Mesmo em uma condição de vilã, ela não deixa de ser uma encarnação de uma princesa que almeja ser resgatada pelo seu príncipe encantado. Temos o encontro, o baile, a dança do casal, o passeio romântico, a separação dos mesmos por forças malignas (Batman), a redenção e o grande resgate. Para o filme, independente do nível de loucura que uma mulher se encontra, ela sempre vai almejar – pelo menos para o roteirista do filme – ser a donzela que precisa de ajuda ou que sonha ser dona de casa.

Fonte: http://zip.net/bstFGZ

“Coringa: Você morreria por mim?
Arlequina: Sim.
Coringa: Não, isso é fácil demais… Você viveria para mim?”

Arlequina e suas “vozes”

Como estamos falando de um personagem de animação, transposto para os quadrinhos e, agora, para os cinemas, temos transtornos de personalidade apresentados hiperbolicamente. Podemos observar traços, distúrbios, síndromes de forma didática e expositiva. Ressalto que sou mais simpático à análise em si da personagem, para encontrar o porquê do sintoma, sua razão de existir.

Em alguns momentos a identificação de alguma característica aparecerá de maneira superficial, por culpa da baixa qualidade do roteiro que não permite maiores reflexões, impossibilitando uma maior profundidade no diagnóstico. Devido a essa limitação, utilizaremos a condição indicada pela psiquiatra Katia Mecler, no seu livro Psicopatas do cotidiano (Leya, 2015) de que “basta que o indivíduo apresente um único traço, em grau tão levado que o torne prejudicial – em um ou mais setores da vida – para que o diagnóstico possa ser feito.” Maneira delicada para diagnosticar uma pessoa, mas que não fará tanta diferença aqui, já que se trata de um indivíduo ficcional.

Para uma observação mais psicanalítica, é preciso aguardar uma possível extensão do desenvolvimento da história da Arlequina em uma continuação para, sem inferências superficiais ou sobreposição do sintoma aquém do paciente, obter uma possível leitura mais profunda da sua psique.

Fonte: http://zip.net/bltDVN

O gatilho

É bem claro que o Coringa é o desencadeador de todo o investimento psíquico da Dra. Harley. E é a sua proximidade que determinará quais traços de psicopatias irão preponderar. A própria Margot Robbie, em entrevista ao site Omelete, buscou trazer isso na sua interpretação (tal sutileza foi aniquilada na edição final do filme). De acordo com ela, “essa é uma das coisas que mais gosto na personagem, sempre que ela está perto do Coringa ela é super submissa, muito frágil às vezes, mas quando está longe dele é uma pessoa independente, é impressionante que ela possa ser tão codependente de um homem. (…) É como um interruptor, se ele está perto, ela muda completamente, ele meio que consome os pensamentos dela. Eu a interpreto assim, como se fosse um interruptor, quando ele está lá ela é uma coisa, quando ele não está ela é uma coisa completamente diferente”.

Segundo Luana Dullius, um transtorno sempre traz outro a tiracolo. “Os pacientes que são diagnosticados com algum transtorno da personalidade de acordo com os critérios estabelecidos, não raramente, encaixam e satisfazem os critérios para outro tipo de transtorno da personalidade”, diz.

Assim, podemos identificar de maneira crescente, de acordo com DMS-V, uma Arlequina com Transtorno Obsessivo Dependente, Histriônico e Borderline.

Fonte: http://zip.net/bjtFkN

Encontre algo que você ame,
e deixe que isso mate você:”
Arlequina

A Arlequina dependente

É inegável que a personagem em si tem personalidade e força, isso devido ao ambiente em que é obrigada a viver e as tarefas que tem que executar. Mas basta o Coringa aparecer que Arlequina comece a agir de maneira infantil e submissa. No filme percebemos os seguintes traços do Transtorno de Personalidade Dependente (TPD): a ida a extremos para obter carinho e amparo, raras manifestações de desacordo, para não perder apoio ou desaprovação, falta de iniciativa para começar novos projetos ou fazer coisas por conta própria, terceirização da responsabilidade sobre as principais áreas de sua vida a outras pessoas e busca urgente de outra relação como fonte de cuidado após o termino de um relacionamento íntimo. Como) exemplifica:

O dependente deixa claro seu sentimento de inferioridade em relação ao outro e considera um privilégio poder receber alguma atenção, ainda que se ache tão desprovido de qualidades. (MECLER, 2015, p. 205)

Coringa não a chama pelo nome, assobia. Atenta a todos os seus atributos físicos, ao mostrar o belo “objeto” que possui. Em uma das cenas ela recebe ordens como uma boneca e se comporta como tal, tudo para agradar seu “pudinzinho”.

Carente e inseguro, o indivíduo com essa faceta dedicará todo o seu tempo e sua energia a quem considerar importante em sua vida. Embora esse traço pareça fortemente associado às relações amorosas, o sujeito pode ser submisso em todos os aspectos da vida. (MECLER, 2015, p. 200)

E aí que nossa querida psicótica começa a se distanciar da sua faceta Dependente e agregar outros transtornos.


Fonte: http://migre.me/w88d1

“Não gostaram do meu show, foi? Bem, tentemos esse
então: ‘Quando os animais atacam pessoas que odeio!’
É
uma comédia.”
Arlequina

A Arlequina estriônica

E aqui começamos a enxergar a Arlequina na transição entre a presença e a distância do Coringa. Observamos os seguintes traços do Transtorno de Personalidade Histriônico (TPH) nela: comportamento sexualmente sedutor e exagerado, uso excessivo da aparência física para atrair olhares, dramatização das emoções, mudanças emocionais rápidas e personalidade sugestionável. Pessoas com traços histriônicos são, segundo Mecler (2015, p. 162)

“[…] hábeis em seduzir com sua atitude e aparência. Se preciso, usam a sensualidade como arma. Em geral, têm um humor peculiar, o que lhes pode garantir muitos aplausos, gargalhadas e curtidas, seja na vida real, seja nas redes sociais.”

Toda a ação da personagem é uma dramatização para ser e permanecer no centro das atenções. Seja em uma boate, na prisão ou em um tiroteio. No entanto, nem o histriônico percebe que está interpretando, para ele, a vida é performance.

Fonte: http://migre.me/w88eW

“Você acha que me mete medo?
Eu já conheci o medo, e você não tem o sorriso dele!”
Arlequina

A Arlequina limítrofe

Aqueles que usam somente o DMS-V como referência para identificação de psicopatias, basta encontrar apenas cinco traços para diagnosticar um indivíduo com algum transtorno de personalidade. Dito isso, poderíamos renomear Arlequina com o nome Borderline ou Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL). As características que identificam o TPL são:

1) Esforços frenéticos de evitar um abandono real ou imaginário, sem a inclusão de um comportamento suicida ou auto mutilante;

2) Padrão de relacionamentos instáveis e intensos, oscilando entre extremos de idealização e desprezo;

3) Distúrbio da identidade: instabilidade acentuada e resistente da auto-imagem ou do sentimento de self;

4) Impulsividade em pelo menos duas áreas prejudiciais a si mesmo, como na sexualidade, em gastos financeiros, na direção, no abuso de substancias etc. Prejudicam a si próprios quando um objetivo está quase sendo alcançado;

5) Ameaças, comportamentos ou gestos suicidas ou auto mutilante;

6) Instabilidade afetiva devido a reatividade do humor;

7) Sentimento crônico de vazio;

8) Raiva intensa e inadequada ou dificuldade em controlá-la;

9) Situações de estresse devido a um abandono real ou imaginado: ideação paranóide, sintomas dissociativos e psicóticos transitório.

São todos os traços elevados a enésima potência na personagem. Entretanto, alguns transtornos parecem acentuar ou amenizar outros. Por exemplo, a promiscuidade observada é relativa em Arlequina, influencia do TPD. O jeito doce e infantil, influenciado por um estado regressivo, maquia a raiva intensa presente na personagem, uma bomba relógio ambulante com o cronometro quebrado. Os gestos suicidas podem ter raízes mais profundas, vide que no desenho ela era ginasta e, após se formar, decidiu trabalhar no Asilo Arkhan, o centro psiquiátrico com os indivíduos mais perigosos de Gothan. Mas, se atermos aos fatos mostrados no filme, o medo é algo que não existe no seu dicionário. Não é à toa que a colocaram em um grupo chamado Esquadrão Suicida!

Fonte: http://migre.me/w88gg

Nos quadrinhos, a redenção

Reafirmo que a personagem Arlequina, na sua gênese, é uma das mais interessantes que compõem o rol dos vilões da cidade de Gothan – e uma das raras que conseguem ter um arco que leva a uma possível redenção. Nos gibis, a redescoberta e libertação de todas as “vozes” da Dra. Harleey Queen é uma caminhada tortuosa, a exemplo das histórias reais de mulheres que sofrem diverso abusos, sejam físicos ou/e psicológicos. Espera-se que, com o sucesso do personagem, os próximos roteiros procurem explorar esse lado mais dramático, e que haja possibilidades além do que um belo corpo e uma maquiagem podem proporcionar. Agora, só aguardar que essa complexidade ganhe as telas do cinema.

REFERÊNCIAS:

MECLER, Katia. Psicopatas do Cotidiano – como reconhecer, como conviver, como se proteger. Ed. Leya. São Paulo, 2016.

RISO, Walter. Amores de alto risco. Ed. L&PM. Porto Alegre, 2013.

BRIDI, Natalia. Por que todos amam Arlequina? Site: Omelete. [Consult. 22 Ago. 2016]. Disponível na internet < https://omelete.uol.com.br/filmes/artigo/esquadrao-suicida-por-que-todos-amam-arlequina/ >.

DULLIUS, Luana. Transtorno de personalidade borderline. Site: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. [Consult. 20 Ago. 2016]. Disponível na internet < https://www.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php?title=Transtorno_da_Personalidade_Borderline >.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

008711

ESQUADRÃO SUICIDA

Diretor: David Ayer
Elenco: Margot Robbie, Will Smith, Jared Leto, Cara Delevingne
País: EUA
Ano: 2016
Classificação: 12

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Ser ou não ser psicopata, qual o remédio?

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A personalidade dos grandes homens faz-se das suas incompreensões.

ANDRÉ GIDÉ

Cheguei com o livro Psicopatas do Cotidiano a casa da minha avó, um lugar bem tranquilo nos fins de semana, para conversar um pouco com ela e, após o café com cuscuz, ler um pouco. Além dos seus setenta anos, mas curiosa como uma criança de cinco, logo perguntou do que se tratava aquele livro. Capa dourada e com um espelho no lugar do rosto de um homem, era mesmo de chamar a atenção. Respondi que era um livro da área de psicologia, com o intuito de mostrar características específicas que algumas pessoas possuem e que podem ser prejudiciais a elas e àqueles que a cercam.  Ela sorriu, disse que tinha um livro assim também. Levantou da cadeira, adentrou seu quarto, ouvi o barulho do guarda-roupa sendo aberto, revirou, fechou e surgiu sorridente com seu “guia”. Em suas mãos estava o Horóscopo 2016. Folheando, disse que aquele livro já tinha “avisado” ela sobre muitas pessoas e, com o adicional, ajudava a escolher os melhores dias para comprar, vender ou viajar. Sem graça, respondi que não era a mesma coisa, que o meu livro era baseado em pesquisas e o dela em superstição. Com a sabedoria da idade, não se ofendeu, mas me desafiou, pediu para ler alguma coisa que parecesse interessante e científico para ela. Sem pensar muito, abri no capítulo que falava dos obsessivos-compulsivos, como são apegados a regras, com tendências a inflexibilidade e comportamento rígido e teimoso. Do nada, ela falou alto: VIRGEM! Fiquei sem entender… vendo minha cara de tonto, ela esclareceu que aquelas características eram “sem tirar e nem por” de virginianos, signo considerado muito organizado, beirando a chatice. “Veja o caso do seu tio João, só vive para trabalhar e ir à igreja. E junto tem que ir a família.” Fiquei refletindo, tio João realmente tinha traços de personalidade obsessivo-compulsivo. Bufei. Não satisfeito pulei para outro capítulo. Narcisistas – conhecidos por sua busca por atenção, o que pode, às vezes, levar a arrogância e insolência. LEÃO! Bradou inesperadamente. “Lembra do teu primo Leandro, aquele metido, só porque fez medicina acha que é melhor que os outros.” Suspirei, as lembranças que tinha do primo não me deixavam negar, ele era um tremendo narcisista. Não querendo mais jogar com o acaso, apelei ao índice, decidido a escolher a psicopatia mais moderna e estranha que tivesse ali, nada que levasse a personalidades que minha vó poderia conhecer com sua experiência. “Ouve esse, vó. Bordeline”. Nome estrangeiro, pronúncia difícil. Citei as características: não se ajusta as normas sociais, incapacidade de planejar o futuro, descaso com a própria segurança e… ÁRIES! Disse animada, como se estivesse em um bingo. “Lembra daquele teu amigo, Zezinho? Era sábado e domingo bebendo, sempre com uma namoradinha diferente. Falava que ia ganhar muito dinheiro com um novo negócio, mas só sabia gastar o dinheiro do pai.” Fiquei olhando para o rosto da minha vó, satisfeito na sua sabedoria, e tinha que concordar – José era um borderline nato. Deixei o meu livro sobre a mesa e, humildemente, pedi que ela me emprestasse o dela. Esperta, passou o seu tesouro para mim e complementou “O melhor é que todo ano sai uma edição atualizada.”

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A pequena crônica acima serve para reflexão sobre o livro da psiquiatra Katia Mecler, Psicopatas do Cotidiano (Ed. Leya, 2015) que procura caracterizar, com uma linguagem acessível, transtornos de personalidades normatizados pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Assim temos dez transtornos – esquizóide, esquizotípico, paranóide, antissocial, borderline, histriônico, narcisista, dependente, evitativo e obsessivo-compulsivo. – divididos em três grupos distintos – os “excêntrico-esquisitos”, os “dramáticos-emocionais-volúveis” e os “ansiosos-temerosos”.

Classificar é uma característica da espécie humana. Fazemos isso com tudo que permeia nosso ambiente, de plantas, pedras a nuvens. Nomear traz segurança, passamos a entender os “sinais” que determinado ambiente emite para que o ser humano melhor usufrua dele, em miúdos, criamos uma sensação de controle. E é assim também com a nossa espécie. O primeiro a fazer tal tentativa foi Hipócrates, na Grécia Antiga, que caracterizava o homem em quatro tipos: sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. Já no século XXI, há várias formas de classificação e estas dependerão da proposta a que é direcionada, seja para descobrir talentos, líderes ou transtornos.

Transtornos de personalidade, segundo Mecler (2015, p. 55), são perturbações mentais, caracterizadas por uma alteração no desenvolvimento da personalidade, decorrente de falhas na estruturação do caráter. Para a autora, a personalidade seria a junção de duas características:

(…) a interação entre dois componentes: o temperamento e o caráter. O temperamento é herdado geneticamente e regulado biologicamente. Já o caráter está ligado à relação do temperamento com tudo o que vivenciamos e aprendemos na relação com o mundo (MECLER, 2015, p. 24).

Assim, se a personalidade é o que define o homem, qual o parâmetro utilizado para identificar os transtornos sem buscar uma massificação ou eliminação do que distinguiria uma pessoa de outra? Simples, a própria sociedade. A autora, no decorrer do livro, demonstra que cada transtorno tem sua época para classificá-lo de maneira positiva ou negativa – vide a cultura narcisista atual em comparação com os evitativos do século XIX. Ou seja, podemos nos achar únicos, mas a realidade é que nos adequamos socialmente. A máxima “nasceu na época errada”, tem seu fundo de verdade

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Outro fator preponderante para levar a identificação, classificação e tratamento de tais psicopatias é a necessidade do mercado em manter uma população apta para produção e consumo, como esclarece Miguel Chalub no prefácio do livro:

Na Idade Média eram considerados no máximo como marginais (à margem da sociedade): vagabundos, prostitutas, bandoleiros, mendigos e outros, mas não “doentes”. Agora, no entanto, era preciso que entrassem na ordem de produção. O capitalismo, em especial o industrial, não tolera aqueles que não produzem (2015, apud MECLER, p. 12).

Com esse pensamento, transformamos, teoricamente, grupos de marginalizados em potenciais consumidores (usuários de remédios e práticas terapêuticas) e, também, produtores (enquanto medicados, aceitos socialmente). Imagina internar, no antigo modelo psiquiátrico, todos aqueles diagnosticados com transtorno de personalidade antissocial ou narcisista?! Esvaziaríamos o Congresso Nacional e o Facebook.

Mecler, durante todo o livro, faz ressalvas aos leitores quanto aos julgamentos que possam ser tomados ao passar os olhos por cada transtorno.

Quando o excesso de rigidez e a repetição de aspectos comportamentais, a partir da adolescência, assumem um padrão negativo, que causa prejuízos diversos nas relações interpessoais, podemos ter o indicativo de um traço patológico de personalidade (MECLER, 2015, p. 247).

Como o ditado popular avisa que de médico e louco, todos temos um pouco, a advertência é clara para não termos leigos (possivelmente com traços encontrados no livro) diagnosticando parentes, amigos e colegas de trabalho. Até porque a própria Associação Americana de Psiquiatria tem suas ressalvas

Tanto o DSM-5 quanto a CID-10 não consideram uma condição médica (as psicopatias). Apesar de muito debate, a hipótese mais aceita hoje é de que se trata de um transtorno grave de personalidade antissocial (Idem, 2015, p. 58).

Com ressalvas até para os profissionais da área, é necessário atenção e cuidado com o conteúdo do livro – ótima introdução para futuros psicólogos e psiquiatras – e visto como conteúdo para conversas com os amigos ou para aqueles que, após um diagnostico correto, queira conhecer mais sobre o transtorno que alguém ou o próprio esteja passando. Até porque será mais tolerável alguém lhe apontar o dedo e dizer, “típico de um leonino” do que um apocalíptico “procura um tratamento, você está com traços narcisistas”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A crítica, talvez insustentável na sua forma, mas não ao seu conteúdo, está para a praticidade do título, sutileza publicitária de um livro de receitas (Psicopatas do cotidiano: como reconhecer, como conviver, como se proteger). Trata-se de um exagero ou uma simples brincadeira, porque quando o leitor olha para a capa, se depara com a própria face a encará-lo.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

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PSICOPATAS DO COTIDIANO : COMO RECONHECER, COMO CONVIVER, COMO SE PROTEGER

Autor: Katia Mecler
Editora: Leya
Ano: 2015

Lista de figuras:

Figura 1-http://www.updateordie.com/wp-content/uploads/2015/07/1Toilet-Paper-Roll-Masks-by-Junior-Fritz-Jacquet-990×7391.jpg

Figura 2-http://2.bp.blogspot.com/-tHHh4x3RBsI/U-1wgcbwuGI/AAAAAAAAADo/B1OKM8yhrlY/s1600/faces.jpg

Figura 3-https://ominutodosaber.files.wordpress.com/2011/08/varias-faces.jpg

Figura 4-http://necesitodetodos.org/wp-content/uploads/2013/02/mascaras-personalidad-enga%C3%B1o.jpg

Figura 5-http://www.leblogdefanaworld.fr/wp-content/uploads/2013/09/i-robot-wallpaper.jpg

Figura 6-http://f.i.uol.com.br/livraria/capas/images/15238233.jpeg

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“Sexta-Feira 13” e as instâncias da personalidade em Freud

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Com todo, el grado em que este trabajo de cámara fuerza La identificación del espectador com el asesino sigue siendo uma cuestión abierta a debate.
Paul Duncan

Em 9 de maio de 1980, estreou nas salas de cinema americanas uma das mais prolíficas e improváveis séries de terror da história do cinema: Sexta-feira 13 (Friday the 13th). A história do assassino que persegue jovens em um acampamento aterrorizou multidões e lucrou com o medo: o primeiro longa custou míseros 500 mil dólares e teve o saldo final de cerca de 40 milhões.

No lado oposto, a crítica especializada da época nunca entendeu o desejo do público de ver e participar de uma chacina – por que ao contrário dos antecessores do gênero, em Sexta-feira 13 – e seus congêneres – o expectador observa tudo a partir da perspectiva do serial killer, com todos os detalhes sórdidos: o voyeurismo, a perseguição, o acuamento para, por fim, o assassinato. Logo, o público passou de mero expectador para cúmplice na história. Para Jonathan Penner

[…] no existe una respeuesta fácil al interrogante de por qué las películas gore gozan de tanta popularidad. […] lo que no puede negarse es que estas películas atraen a um público muy diverso em momentos muy distintos y por razones diferentes, y que continuarán generando acalorados debates em hogares, aulas y tribunales (JONATHAN PENNER, p. 26, 2008).

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No total, em três décadas, temos doze filmes acompanhando a saga do assassino mascarado e suas brutais e criativas formas de matar – que só as mentes sem limites dos roteiristas de Hollywood são capazes de conceber. O último capítulo, lançado em 2007, arrecadou, para surpresa de muitos, quase cem milhões de dólares ao redor do mundo. Feito invejável para uma franquia que consiste basicamente em jovens, drogas, sexo e morte. Mas o que há de tão especial nesse produto que se tornou objeto de culto? Porque as massas ainda respondem a essa experiência de encontrar a representação de um bicho-papão e sentir medo e terror associados à punição de comportamentos considerados subversivos na sociedade ocidental? Acredito que, literalmente, Freud explica!

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O Id, o Ego e o Superego – Juventude, a garota final e Jason

Na teoria psicanalítica, Freud desenvolveu uma topografia do aparelho psíquico necessária para estruturar e explanar os conteúdos mentais e sua atuação e dinâmica na personalidade do homem. O primeiro sistema, segundo Talaferro, consistiu em dividir a psique em três planos delimitados

[…] Deve-se considerar que são forças, investimentos energéticos que se deslocam de certa forma, que têm um tipo de vibração específico e que vão todas estruturar os três sistemas que Freud denominou e dividiu topograficamente em Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, cada um deles com características determinadas (TALAFERRO, 1996, p. 38).

Mas o que nos importa aqui é sua segunda teoria, que trouxe a tona as três instâncias da psique: o id, o ego e o supergo.  A instauração dessa nova perspectiva, segundo Laplanche e Pontalis (2001, p 125) trouxe a possibilidade de novas orientações, ampliando a base psicanalítica da análise além do inconsciente, voltada para a análise do ego e dos mecanismos de defesa do superego. Essa dinâmica existente entre as três instâncias pode ser, analogamente, transportado para o universo presente nos dois primeiros filmes da série Sexta-feira 13; assim, talvez a psicanálise consiga explicar porque filmes do gênero até hoje atraem tanta audiência.

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O Id ou a geração “Sexo, Drogas e Rock & Roll”

O acampamento Cristal Lake é o local onde ocorrem os massacres de praticamente todos os filmes. E é bem apropriado: ele se restringe a algumas casas construídas a beira de um lago no meio da floresta para receber turistas e jovens nas férias. Essa peculiar característica será destrinchada em um artigo posterior, mas para facilitar a visualização, podemos identificar todo o cenário bucólico/selvagem, presente nas produções do gênero, como um reservatório de lembranças e impulsos recalcados ou latentes que encontrarão meios de vir à tona, geralmente, da maneira violenta. Mas para isso, o conteúdo precisa encontrar o espaço perfeito para agir, e a inserção de jovens sendo vigiados por outros jovens, sem qualquer interferência adulta, é a maneira perfeita para que o ID coloque em prática todas as suas vontades e desejos, em teoria, sem receios de repreensão ou punições. Para Zimerman

Do ponto de vista topográfico (…) o ID é fundamentalmente constituído pelas pulsões. Sob o ponto de vista econômico, o ID é a um só tempo um reservatório e uma fonte de energia psíquica. Do ponto de vista funcional, ele é regido pelo princípio do prazer  (ZIMERMAN, 1999, p. 83).

Aqui, então, teríamos a juventude como a representação perfeita das pulsões do Id. Para Zimerman a pulsão (1999 p. 117) é uma fonte de excitação que estimula o organismo a partir de necessidades vitais interiores e o impele a executar a descarga desta excitação para um determinado alvo. O corpo em Cristal Lake é sensorial, observamos em uma escala cada vez maior os jovens buscarem um direcionamento para suas necessidades. É visível que todos eles carregam uma grande carga de energia que precisa ser liberta. Para Laplanche e Póntalis (2001, p. 394) uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional. A chegada dos jovens ao acampamento leva a demonstrações eróticas subliminares, sua exposição não é apropriada, ainda, ao local e nem ao horário, pleno dia.

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Então temos o redirecionamento dessa energia, inicialmente, para o trabalho corporal, organização e manutenção do local, e, posteriormente, para objetos que cada vez mais dominam e desarmam as fortalezas do ego: comida, álcool e drogas. Tudo isso avançando em escala crescente enquanto o dia se esvai e a escuridão se aproxima. Esse investimento pulsional, para Zimerman (1999, p. 118) alude ao fato de que certa quantidade de energia psíquica esteja ligada a um objeto, tanto externo como ao seu representante interno, numa tentativa de reencontrar as experiências de satisfação que lhe estejam correlacionadas.

Assim, temos uma preparação do corpo, uma eroginização para na entrega total ocorrer a satisfação final. Mas existe um grande obstáculo perante o descarregamento indiscriminado da libido, que pode tanto intervir quanto proibir ou punir. O descontrole das pulsões do ID traz a tona aquele que será a lei e o juiz, a mãe e o pai, a instância psíquica que ditará os limites e as regras que devem ser seguidas para manter o equilíbrio em Cristal Lake, ou melhor, a homeostase psíquica.

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O Superego ou a sede de controle extremo de Jason Voorhees

Há aqui uma peculiaridade, que reforça o papel do vilão como uma faceta do Superego descrito por Freud: somente no segundo filme Jason ataca ferozmente os jovens em Cristal Lake. A “encarnação da morte” no primeiro capítulo é vivida por sua devotada e vingativa mãe, Pamela Voorhees (Betsy Palmer).

É coerente e, até, interessante analisarmos essa transferência de poderes de mãe para filho de acordo com a formação do superego (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p. 498): “(…) a criança, renunciando à satisfação dos seus desejos edipianos marcados de interdição, transforma o seu investimento nos pais em identificação com os pais, interioriza a interdição.” Ter a mãe como a figura que se interpõe de maneira cruel diante excitações juvenis nos remete a condição do superego como agente de controle, por vezes, tirânico das pulsões do Id. Zimerman define supergo como

[…] uma estrutura composta por objetos internalizados, aos quais geralmente atribui-se um caráter persecutório, de intensidade maior ou menor e que, por meio de mandamentos, opõe-se às pulsões do Id, faz ameaças e um boicote às funções do ego, distorce a realidade exterior e, ao mesmo tempo, submete-se a ela, cumprindo as determinações sobre o que o sujeito deve e o que não deve fazer, o que sempre provoca nele um estado mental de culpas, acompanhado de medo e atitude defensiva (ZIMERMAN, 1999, p. 133).

Pamela em nenhum momento hesita ou demonstra culpa diante de seus atos, porém quando seu filho, Jason Voorhees assume o papel da mãe, como um baluarte sanguinário da moral e dos bons costumes, encontramos resquícios de piedade, mesmo que seja acessos de esquizofrenia onde a figura materna ainda mantém controle. Ao retirarmos as referências fantásticas que colocam Jason como uma “máquina invencível de matar” – às vezes com poderes paranormais – podemos afirmar que o verdadeiro mal, aquele que não remete a piedade ou arrependimentos, provem da mãe, Pamela, e sua ânsia incansável por vingança.

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Como regra clássica dos slashers movies da década de 80, drogas, sexo e, principalmente, o gênero feminino, remetem a morte. Não é somente a maconha ou a ânsia da cópula que trazem a fúria do superego nestes filmes, a presença feminina instiga a crueldade, reforça a perversidade sádica do supergo sobre o ego, decorrente das investidas do Id. Além de Sexta-feira 13 temos Halloween (1978) e O Massacre da Serra Elétrica (1974) com exemplos de personagens femininas que são mortas sem o uso de drogas ou a sugestão de sexo. Basta ter peitos!

Para o público, majoritariamente masculino, a mensagem poderia não ser clara, mas existia: o sexo feminino – com características de sedução e independência – não são aprovados. É preciso eliminar essa figura que demonstra poder e atitude e preservar somente a que traga a pureza e a inocência no seu caráter e a virgindade do corpo. Essa garota é a “final girl”, a última garota, a única que pode trazer o equilíbrio entre essas duas forças. Entre as pulsões do Id e os mandamentos do Superego, temos aquele que procura manter-se intacto nessa batalha: o Ego.

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O Ego ou a “Final Girls”

Observe a garota do centro, na foto acima. Entre os jovens, ela destoa – suas roupas têm cores neutras e cobrem todo o corpo e seu cabelo a deixa bem distante do arquétipo feminino que as outras personagens querem vender, beira a androginia. Alice (Adrienne King) é uma das monitoras do acampamento, ela é responsável, durona e mantém-se distante dos convites para o uso de drogas ou sexo que parecem pulular de forma convidativa por todos os cantos em Cristal Lake. Ela é a representação do Ego. Para Lanplanche e Pontalis (2001, p. 498), há uma relação de dependência do ego, do ponto de vista tópico, tanto para com as reinvidicações do id, como para com os imperativos do superego e exigências da realidade.

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Cada “final girl” da franquia representaria, assim, uma resolução desse conflito interno constante entre a pulsão e o controle. No primeiro capítulo, o ego, representado por Alice, deixa o superego interditar toda forma de expressão psíquica do id, de maneira gradual e silenciosa. Lanplanche e Pontalis ressaltam que a censura exercida pelo superego é inconsciente

[…] o sujeito que sofre de compulsões e interdições comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa acerca do qual, porém, ignora tudo, de forma que podemos chamá-lo sentimento de culpa inconsciente, apesar da aparente contradição dos termos (LANPLANCHE E PONTALIS, 2001, p. 498).

Logo, as transgressões, impulsionadas pelo id, que observamos no desenvolvimento da história soariam mais emergentes do que o perigo de interdição encarnado pelo superego. Para Alice, a sobrevivência torna-se primordial quando percebe que o que está ocorrendo em Cristal Lake não é uma paz advinda pós-satisfação dos prazeres, mas sim de uma eliminação contínua de todos aqueles que resolvem não seguir “as regras da casa”. E isso, quando ocorre de maneira silenciosa, surge como ameaça a integridade do próprio ego. Assim, após a última garota escapar das investidas do id, cabe, como resolução, enfrentar a censura do superego.

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A franquia sem fim ou o eterno conflito

O intuito do texto foi identificar e analisar as instâncias das personalidades descritas por Freud presentes na franquia Sexta-feira 13. Esse mecanismo presente na construção dos roteiros, e repetido exaustivamente em continuações e outros filmes do gênero, parecem influenciar mais o inconsciente do expectador do que este possa imaginar. Em seu argumento simples podemos fazer correlações que, talvez, possam explicar porque tal “receita” permanece, praticamente, inalterada até hoje. É claro que o gênero conseguiu superar clichês e criar novos clássicos, do mesmo modo que a psicanálise ampliou seu conhecimento sobre a mente humana. Uma das características mais marcantes é a mudança radical da Final Girl para o desenvolvimento da história; esta ganhou mais complexidade, o que acaba impulsionando mudanças nas necessidades do id e nas exigências do superego. Há filmes em que a protagonista, ao final, se alia ao seu algoz e encontra sua paz nessa comunhão. Mas essa análise fica para outro texto.

REFERÊNCIAS:

DUNCAN, Paul. (Org). Cine de terror. Ed. Taschen. Espanha, 2008;

LAPLANCHE & PONTALIS. Vocabulário da Psicanálise. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001;

TALAFERRO, Alexandre. Curso básico de psicanálise. Ed. Martins Fontes. São Paulo, 2001;

ZIMERMAN, David E. Fundamentos Psicanalíticos. Ed. Artmed. Porto Alegre, 1999.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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SEXTA-FEIRA 13

Direção: Sean S. Cunninghan
 Elenco: Betsy Palmer, Adrienne King, Jeannine Taylor
País: EUA
Ano: 2009
Classificação: 18

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The Walking Dead – Dias Passados

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Walking Dead 1

“Ela não merecia isso. Ninguém merece isso.”

Dale (personagem)

Febre mundial, a franquia The Walking Dead não só ressuscitou a cultura dos mortos vivos, como a tornou uma marca da sociedade moderna – tal como os vampiros – com seguidores fervorosos de todas as idades. O sucesso sazonal destes sub-arquétipicos (o arquétipo principal representado seria a Morte, ou a eterna fuga dela) atrai a atenção para uma análise mais profunda dos significados que o material pode trazer e, talvez, encontrar a essência que agrega e leva a uma identificação coletiva com a obra.

Walking Dead 2

Campeão de vendas nas livrarias e bancas, líder de audiência na TV, tornando-se um dos programas mais populares dos últimos anos e fenômeno de popularidade onde é exibido, a série The Walking Dead merece respeito. Não credito o seu reconhecimento com caráter de admiração do produto em si, mas sim devido a sua capacidade de adentrar de uma maneira tão massiva no inconsciente popular em uma época que prima pela diluição da atenção nos programas de entretenimento. Por isso a necessidade de analisar de maneira sucinta, sem preconceitos de suas origens, a razão de tal fascínio por essa obra que já está marcada como representação do nosso tempo.

Optei por fazer uma análise dos quadrinhos no lugar do seriado, por ser a fonte primeira onde o criador, o americano Robert Kirkman, expõe de maneira subjetiva seus conceitos de moral, ética, política etc. Ao serem adaptados para a televisão muitos detalhes são perdidos, a cronologia pode ser alterada e fatos podem ser modificados drasticamente a favor de uma audiência ou censura; nas revistas encontramos o material puro para ponderação.

Apesar das semelhanças com o seriado, o nível de violência visual é alto nos quadrinhos, porém tudo em preto e branco. Em um enredo onde a qualquer momento alguém pode ser canibalizado ou ter a cabeça decepada por um machado, foi uma escolha sensata, já que as páginas da revista procuram ser o mais detalhista possível e o esmero e criatividade ao demonstrar as várias possibilidades de desconstrução de músculos, articulações e vísceras que são apresentadas constantemente, de maneiras chocantes, sempre surpreendem. Na TV temos o choque, a cena acontece, surpreende, no entanto há um continuum que necessita substituir um fato pelo outro a favor da atenção da audiência. Já na literatura há, em especial nesse gênero, o horror diante do que é apresentado e, a depender do nível de violência que algumas páginas trazem, ficamos inertes e boquiabertos segurando o livro e encarando a página por algum tempo, diante do assombro que a história nos coloca. Outro detalhe dos quadrinhos: o que na cultura popular ficou conhecido como zumbis ou mortos-vivos, tal termo não é citado em nenhum momento neste primeiro volume; a nomenclatura clássica ganhou as seguintes variantes: “os andantes”, “os errantes” ou “os mordedores”; estes são alguns dos nomes que foram escolhidos para nomear aqueles seres em decomposição e eternamente famintos. É bom salientar que a simbologia que os “mortos-vivos” de TWD trazem não é tão diferente daquela iniciada por George Romero em seu A noite dos mortos-vivos (1968), mas se distancia em significado quando comparados ao mesmo mal epidêmico de filmes como Extermínio e Guerra Mundial Z – mas essa questão fica para outro artigo.

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A primeira coletânea que será analisada aqui corresponde aos números um ao seis com o título nacional de Dias Passados (Days Gone By, 2003), publicado pela editora HQM no Brasil. Nele somos apresentados ao protagonista da série, o oficial Rick Grimes, policial do estado da Georgia; através desse homem observaremos as transformações que essa “epidemia” estará impondo. Escolher um policial, pai de família, que tem valores éticos e morais fortes é uma forma do escritor colocar à prova os conceitos e ideologias do leitor. Existia uma sociedade pautada por leis e regras, se elas serão úteis nesse “novo mundo” é algo que o texto sempre trará a tona. Uns desejarão retomar a antiga ordem, para outros é necessário uma adaptação, se não uma transformação social adequada diante da derrocada do cenário social vigente.

O INÍCIO DO FIM

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A primeira ideologia posta em prova logo nas primeiras páginas – e que será recorrente durante todos os números – é a segurança. A representação de um sistema de segurança frágil onde os meios de contingência da violência não asseguram total proteção e paz social como utopicamente prega, toma forma no tiroteio em que Rick é baleado. Alvejado gravemente na troca de tiros: o primeiro pilar social, a segurança, é demolido em uma única página de The Walking Dead.

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Em seguida, Rick acorda em um hospital. O silêncio não assusta, já que isso é uma característica do local; falta de assistência, não. Ao sair pelos corredores, encontra tudo deserto. Nada de médicos ou enfermeiros e, aparentemente, ele é o único doente. Ao chegar ao elevador encontra uma pessoa morta. Desesperado, chega ao refeitório. Ao adentrar a sala – em uma pequena ironia – encontra várias pessoas em estado de putrefação se movendo. Aqui, pela primeira vez, Rick enfrenta um desses mortos. Ele tenta dialogar, mas percebe que a comunicação não tem efeito, sua única alternativa é recuar.  Ele sai do hospital abandonado sem compreender o que acabou de acontecer.

Os avanços que tivemos na medicina permitiram ao ser humano vislumbrar uma extensão, cada vez maior, dos seus anos de vida. E essa evolução chegou a ponto de tentar deter os “sintomas” da velhice: falta de tônus muscular, perda de agilidade, problemas diversos nos organismo etc. No hospital é onde as limitações são “consertadas”, o paciente busca uma solução para se manter tanto interna quanto externamente condizente com os parâmetros de uma pessoa saudável. Observar, nos quadrinhos, homens e mulheres andando pesadamente, em decomposição pelos corredores é a pá de cal sobre a única possível solução de cura para o problema da epidemia. No despertar de Rick neste pesadelo é dito, de forma indireta, que nem sempre a ciência vai ter respostas e, muito menos, a cura. Temos a queda de mais um pilar social: a ciência. Para os leitores, que já entendem o que está ocorrendo, fica sensível que o problema dos mortos vivos não pode ser contido nem pelos cientistas e muito menos pelo sistema de segurança da sociedade.

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Ao ir para a rua, Rick percebe o abandono a que a cidade foi deixada, não há nenhum ser vivente, nem pessoas ou bichos. O que ele encontra são “monstros” com características que lembram humanos, em decomposição, inertes ou rastejando pela cidade. Tudo é muito difícil de entender, não é possível digerir o horror e a estranheza que o cerca, então ele vai atrás da única referência de humanidade que ainda lhe resta: sua família. Ao chegar a casa, percebe que tudo foi abandonado. Após o choque do medo vem o desalento da solidão e uma entrega sobre a aparente pressão que está sofrendo com os fatos vividos. Isso, até ser surpreendido com uma pancada na cabeça. Metaforicamente era preciso abandonar velhos padrões para entender o que estava ocorrendo; não será apegado a um mundo que não existe mais que ele terá alguma resposta e muito menos conseguira sobreviver se ainda tiver parâmetros de uma sociedade totalmente destruída, assim é necessário haver uma ruptura, uma separação entre o que era conhecido e o novo para sobreviver.

Morgan Jones explica a situação para Rick, e sem rodeios descobrimos que o sistema de informação ruiu com uma semana de crise. Durante a conversa dos dois, a primeira que Rick tem com uma pessoa depois que consegue escapar do hospital, pode-se notar ao fundo dois quadros onde temos duas cabeças de cavalo. A leitura que podemos fazer é que ambos estão cientes e dominantes de sua capacidade de racionalizar, o instinto é intrínseco às espécies, até na humana, mas a capacidade de mensurar os fatos e escolher a opção mais apropriada é comum somente ao homem e naquele momento temos a racionalização humana em foco.

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Ao buscar as armas e carros na delegacia, são expostas duas características que acompanharão toda a saga de The Walking Dead: as armas são a melhor resposta para uma sociedade doente que não ouve e nem dialoga e que o enfrentamento a esse grupo descontrolado só deve ocorrer em momentos de crise, o que diferencia os vivos dos “mortos” é a racionalização e a ponderação, isso permite segurança e controle da situação e uma diferenciação de quem age pela razão ao invés dos impulsos.

Nas últimas páginas do primeiro número, Rick retorna ao local onde encontrou um “andante” e atira na sua cabeça. Sinal que ele não encara aqueles seres como humanos, mas as lágrimas que escorrem dos seus olhos demonstram que há ainda uma identificação, pois no passado todos eram iguais.

EM BUSCA DO PARAÍSO PERDIDO

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A capa do segundo número é icônica para a saga, algo correspondente ao pôster da série na primeira temporada: Rick sobre um cavalo em uma estrada repleta de carros parados e pessoas mortas dentro. Um sinal que todos os referenciais que estão ligados ao conceito de civilização devem ser abandonados.

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Ao iniciar sua caminhada para Atlanta, Rick é levado na esperança de encontrar sua família e de ter respostas e assistência na capital. Na travessia, ele para em uma fazenda e encontra um grupo de cadáveres na sala. Vale ressaltar que a cena é rápida mas cheia de nuances: nela encaramos o resultado daqueles que não suportaram a pressão, ou seja, perderam a fé. O cenário delineia que era uma família religiosa – por causa da bíblia em suas mãos e a cruz na parede – e que o pai provavelmente decidiu matar a todos os familiares e depois tirar a própria vida. Ao contrário dos outros pilares que são destituídos e abandonados – ciência, segurança e família – a fé religiosa nunca é posta totalmente de lado no universo de The Walking Dead e sim renovada de acordo com as provações enfrentadas, adaptando-se a cada nova tragédia sem sentido que ocorre na saga.

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Ao encontrar um cavalo, a história coloca Rick com sua racionalidade ativa, o cavalo representa o controle apesar de tudo que ocorre a sua volta. Acredito que essa insistência em mostrar o animal é uma maneira de situar a importância do personagem para a história, Rick tem a capacidade rara de manter a racionalidade em momentos delicados. Aos poucos, Rick é colocado no caminho do herói.

Sair do interior e ir para uma metrópole é uma experiência, sua individualidade deixa de existir para adentrar a massa – aquela que adapta comportamentos, determina posições e modifica personalidades – e é difícil permanecer fiel a sua moral e valores diante de uma força que adentra sem qualquer sutileza e exige adequações que podem trazer conseqüências, desde a rejeição a um auto-isolamento. Rick adentra com seu cavalo a cidade e são logo cercados pelos “habitantes” de Atlanta; eles avançam famintos sobre os dois como predadores em matilha.

A morte do cavalo simboliza a luta e os desafios que Rick terá de enfrentar dali para frente. O último resquício de civilização e racionalidade como o policial conhece devem ser transformados para que assegure sua vida. Pensar do mesmo modo, baseado nas mesmas estruturas, o fará cair entre a massa de “andantes” sem causa e sem rumo. Sua crença no aparato que uma sociedade moderna poderia oferecer não existe mais, o sentido de segurança, ciência e fé tem que tomar nova forma, a partir do interior, com regras próprias que o permita avançar rumo à sobrevivência.

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Nas últimas páginas deste capítulo, Rick é salvo por Glenn que explica toda a situação que ocorreu em Atlanta e o leva para um acampamento. Para sua surpresa, lá ele encontra, entre um grupo de sobreviventes, sua mulher e seu filho. A redenção e a esperança são oferecidas para o herói, mas a que preço?

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LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE?

O grupo que está no acampamento é uma representação nuclear de uma pequena cidade conservadora americana: jovens, idosos, crianças, trabalhadores e donas de casa; todos tentando emular um estilo de vida que não existe mais. A tônica aqui é manter firme a ilusão de que algo os tirará daquele pesadelo, enquanto isso não ocorre o melhor é esperar e sustentar o cotidiano e a saúde mental com banalidades que remetem aos “dias passados”.

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Uma das discussões levantadas neste capítulo é sobre a igualdade de gêneros. Enquanto Dona, uma senhora conservadora, mas consciente dos caminhos percorridos historicamente pelas mulheres, reclama sobre a clássica divisão de serviços, Lori, jovem mãe de classe média, não reclama e reafirma sua condescendência perante o papel que representa no grupo. Posteriormente, observamos Shane, Rick e Dale em uma caçada com posicionamentos machistas sobre as mulheres. A normatização do papel da mulher é algo natural ou imposto por uma sociedade patriarcal? As pressões impostas pelos eventos vindouros, no universo de TWD, demonstrarão que conceitos de gênero rígidos não significam vida longa para um personagem, a fragilidade, independente do sexo, é indicativa de morte.

Uma das características de TWD não são o perigo constante encarnado nos “andantes” e sim o comportamento de qualquer um dos sobreviventes que aparecem durante a saga. É quase impossível viver sozinho em um mundo com esses traços. Em grupos há maiores chances de sobrevivência, no entanto, a imprevisibilidade do comportamento humano é assustadora. O instinto de sobrevivência, a sede de poder e a intolerância são alguns exemplos que podem levar a ações extremas entre os componentes do grupo. No quarto capítulo a tragédia é desenhada em torno da possível obsessão de Shane com a mulher de Rick. Além de ficarem atentos com a voracidade dos “mordedores”, os impulsos passionais podem ser tão ou mais perigosos que eles e, sempre, surpreendentes.

Walking Dead 14

O REI ESTÁ NÚ

Para viver em comunidade é preciso regras, leis e aceitação, mesmo que silenciosa, de todos. A idéia inicial é permanecer no acampamento próximo a cidade e esperar uma possível ajuda do governo. Quem está a frente desta opinião é Shane que logo encontra um opositor em potencial. Depois de tudo o que Rick vivenciou antes de chegar a Atlanta, ele sabe que a situação é bem mais grave do que o grupo a qual se inseriu imagina; para ele as esperanças presentes são frágeis e que é necessário lutar pela sobrevivência e não esperar serem salvos. Essa percepção do protagonista reforça a queda de mais uma estrutura social: o Governo. Mais do que opiniões diferentes, são vidas que, indiretamente, estão nas mãos daquele que é considerado líder e uma decisão errada pode levar a morte de todos. Na discussão política dos dois sobre qual seria a melhor opção – permanecer ou sair do acampamento – a liderança vai muito além de uma representação de poder – como usualmente temos hoje – para literalmente ver as conseqüências de uma decisão errada modificar a dinâmica do grupo ou fazê-la sucumbir diante dos perigos que os cercam.

Rick sabe que é preciso correr riscos para manter sua vida e a do grupo, por que o que diferencia os vivos dos “mortos” é a capacidade de mover-se de forma ágil, racionalizar uma situação e optar pela melhor alternativa. Todos precisam aprender a se defender, mas para isso precisam de armas, então ele e Glenn vão em busca de algumas em Atlanta. Aqui temos o paradoxo do enredo: o que seria aquela massa de devoradores de carne que busca cegamente um desejo, mesmo que isso custe vidas? O que os diferenciam uns dos outros?

Walking Dead 15

Para o psicanalista Mario Corso (2013) “o fenômeno zumbi é a revolução francesa no território da ficção, a plebe angariando fatias de prestígio. Nossa ideologia prega a individualidade, devemos ser únicos, afinal, ser confundidos com a massa, ser ninguém, é o grande horror.” Perceba que “os andantes” parecem aquém do que os rodeia, a massa faminta que avança sobre os sobreviventes é uma ilusão, paradoxalmente não existe uma percepção do outro entre eles, existe uma ilusão de ser especial representada pela vontade infinita em consumir. Podemos fazer uma analogia com a sociedade atual que acredita na sua individualidade pela construção de um sujeito de consumo. Corso desenvolve que “o fenômeno zumbi sugere um cansaço também com essa ideologia individualista, nos aponta a luta inglória e sem sentido para despontar na multidão, como também a força dos excluídos.” Rick e Glenn passam sangue de um dos “mordedores” executados pelo corpo para se misturar a eles. Se misturar as massas na modernidade liquida é adequar-se a valores éticos, morais e ideológicos que não correspondem a sua personalidade, mas assegura a sobrevivência; qualquer sinal que demonstre que eles não seguem a “filosofia de vida” da massa que os cercam, trará a tona raiva, fúria e “fome” irracionais. Uma grande ironia para a sociedade atual.

TODOS OS MONSTROS SÃO HUMANOS” (da série American Horror Story)

Aos poucos, Rick começa a influenciar o grupo que o adotou. Todos começam a aprender a usar armas, inclusive seu filho de sete anos – um processo que remete as culturas antigas que através de rituais procuravam direcionar o crescimento espiritual e a representação do indivíduo no grupo ao qual está inserido; o pequeno Carl e as outras crianças sobreviventes serão os filhos dessa nova sociedade dura e implacável que não permite mais brincadeiras e sonhos de um futuro promissor. Sobreviver um dia de cada vez será a luta contínua dessa nova geração.

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A noite chega e todos estão reunidos se alimentando enquanto contam como eram suas vidas antes de chegarem ao acampamento. Lembrar dos familiares perdidos, da rotina que tinham e dos sonhos que não existem mais é uma constante em TWD; os personagens procuram incansavelmente entender todo aquele horror pelo qual passaram. Olhar o passado é uma forma de buscar detalhes ou respostas para toda aquela situação.

Durante a reunião, vários “mordedores” surgem pegando de surpresa o grupo. Atacados por todos os lados, alguns personagens sucumbem. A situação demonstra que os avisos de Rick estavam corretos, o único meio de continuarem vivos é saírem daquele lugar e se afastar da cidade. É um risco, mas em decorrência dos acontecimentos, soa como melhor alternativa. Menos para Shane.

 

EFEITOS COLATERAIS

Walking Dead 17

No último capitulo temos o fim da esperança. O objetivo principal passa a ser a sobrevivência. Não irei detalhar os acontecimentos que fecham esse primeiro volume – já há muitos spoilers em todo o texto, que a “cereja do bolo” seja saboreada por aqueles que comprarem a coletânea – o que fica evidente é a escolha do autor finalizar esse primeiro arco com uma tragédia entre os sobreviventes e não em um embate com os “andantes”. Assim ele se distancia do simples e barato horror que poderia emular nas páginas para se aprofundar no drama e nas transformações internas que aqueles personagens sofrerão durante a saga.

A presença dos “mordedores” é constante e eles representam a morte encarnada pronta para dar o bote, basta baixar a guarda e não estar atento. Porém, rastejando sorrateiramente pelos corações está o ódio, a inveja, a luxúria e a soberba para turvarem seu caminho. As três páginas finais demonstram, segundo o autor, que não é necessário ser mordido para se tornar um ser irracional movido por uma pulsão, viver já nos deixa a mercê de muitas outras.

Ao ler ou assistir a série sempre torcemos pelos mocinhos e nos identificamos com seus feitos de altruísmo e coragem, mas, subjetivamente, o autor parece apontar que se não estamos mais próximos da alienação dos “andantes”, é difícil escapar das fraquezas que levam a fragmentação e, consequentemente, a destruição decorrente das paixões humanas.

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THE WALKING DEAD – DIAS PASSADOS (VOL. 1)

Criador e Escritor: Robert Kirkman
Artista: Tony Moore
Editora: HQM

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A natureza nos tempos do Self

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“A sociedade do século XXI não é mais uma sociedade disciplinar, mas é uma sociedade da performance”
Byung-Chul Han

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O presente texto procura discutir o fenômeno da personalização da Natureza na pós-modernidade, com total sublimação de significado histórico, que passa a ser preenchido com as neuroses de performance da nossa época, em contraste com a visão clássica, onde havia a alusão a fecundidade presente em Gaia, a sensualidade em Afrodite e Inana, perpassando pelo santificado, com a Virgem Maria, até chegarmos à liquidez no pós-capitalismo.

A Natureza personifica nuances pseudo-humanos na pós-modernidade. Perde a aura de força e mistério para refletir imageticamente o discurso de quem a usa; deixa de ser cenário para ser personagem com papéis específicos que são modificados de acordo com o gosto do fotógrafo. Uma cachoeira, o mar, uma floresta agora são uma extensão da psique, formas de expressão pasteurizadas onde, teoricamente, a completude interna demonstra equilíbrio com algo maior e superior.

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O paradoxo está na exposição e na mercantilização do ambiente “natural” em dois cenários, ambos com o mesmo propósito: retificar o propósito humano, através de ações performáticas, ao cenário que o cerca. Para exemplificação, primeiro temos “Largados e pelados”, um reality produzido pelo Canal Discovery que consiste em colocar pessoas em lugares inóspitos sem comida, roupas e água. A experiência é observar os métodos de sobrevivência que cada componente utilizará e como se dará as relações, por exemplo, de cooperação e empatia, que podem surgir ou não entre eles. Aqui, a Natureza perde seu popular aspecto materno, tão utilizado pelo discurso de massas, e se apresenta crua; existe, durante os vários episódios do programa, um choque entre o microcosmo humano e o macrocosmo natural (ressalto que ao utilizar tal palavra, remeto a total capacidade de incompreensão do homem pós-moderno do que seja natural quando inserido nesse cenário).

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No extremo oposto, somos “presenteados” constantemente com imagens de todos os tipos e ângulos nas redes sociais de um “maravilhoso” por do sol, “a ternura” de um grupo de pássaros voando e “a beleza” das ondas do mar. Os adjetivos são limitados tal qual a frágil crença de felicidade a tudo que remete ao “natural”. Há uma confusão se aquele cenário é um objetivo em si ou uma extensão de uma expressão interna, isto por que aquele que compartilha a experiência nunca deixa de ser o personagem principal da imagem, ao contrário do que as hashtags e as legendas parecem querer demonstrar. O absurdo se dá quando a ferramenta que utilizo para materializar o momento além de uma lente é o próprio indivíduo, a disfarçar, em uma contemplação forjada, a mão que segura a câmera ou o pau de self. Nestas imagens há sabedoria, fecundidade, proteção, equilíbrio e, acima de tudo, beleza, – sem essa última, não há self – segundo a liquidez dos seus significados contemporâneos.

A problemática, além da “coisificação” da Natureza em sua essência, são as conexões que remetem ao feminino e aquilo que a significamos como tal, mas agora objeto, usado com fins de angariar audiência ou likes.

 

A NATUREZA COMO OBJETO DE EXPLORAÇÃO

No livro “A prostituta sagrada – A face eterna do feminino”, a analista junguiana Nancy Qualls-Corbett traz luz a um primevo arquétipo feminino, muitas vezes desconhecido pela sociedade moderna, até por aquelas que deveriam representá-la. Ao utilizar como referência sua obra, quis relacionar as características exaltadas pela autora com meios de significar a completude da psique da mulher e estendê-la à Natureza, relacionando-a aos arquétipos das civilizações antigas. Segundo a autora (1988, p. 21), “‘Natureza’ implica naquilo que é inato, real, não artificial; este é o significado que desejo dar quando falar da natureza psíquica do feminino.” É necessária a recuperação deste símbolo e, principalmente, um retorno ao seu significado primordial sem, como a própria autora ressalta, amarras moralistas para um esclarecimento e expansão da identidade feminina e suas possibilidades esquecidas. “Na verdade, o termo ‘prostituta sagrada’ representa um paradoxo para a nossa mente lógica, pois, como mencionei, não estamos propensos a associar o sexual com o que é consagrado aos deuses.” (QUALS-CORBETT, 1988, p. 16)

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Ao citar a “mente lógica”, Corbet introduz o aspecto racional da nossa época, com raízes profundas em um sistema patriarcal, onde o logos se tornou o meio e o fim, a essência do progresso e do desenvolvimento. Não há meio termo e o resultado é visível em uma sociedade que fica a cada segundo mais a mercê de si própria, em uma insatisfação que a puxa como um ávido buraco negro, onde a motivação não passa de movimentos de reação ao coletivo.

Em contraposição ao arquétipo referente a anima, temos arraigado de maneira exacerbada sua face sacralizada e materna, formas moralistas do aspecto feminino diante do masculino. Por extensão, o conceito inconscientemente reproduz para todos os âmbitos sua incompletude. Assim, algumas linhas de pensamento conectam a Natureza à beleza, o equilíbrio e a fecundidade como a essência a ser mantida, enquanto Corbet procura resgatar o poder, a sedução e o mistério como alguma das características a serem experienciadas. Explica Qualls-Corbett (1988, p. 16)

“Sem essa imagem, homens e mulheres modernos continuam a viver desempenhando papeis típicos contemporâneos, sem jamais compreender a profundidade da emoção e a integridade de vida inerentes ao cunho de sentimento que envolve a imagem da prostituta sagrada.”

Porém, o que se observa é a psique fragmentada e refém, pois continua objeto de exploração do sistema patriarcal vigente. Ganha eco a obrigação da maternidade, estabilidade e equilíbrio do lar e a formosura e beleza no âmbito social. É inapropriado tudo que remete ao feio, violento e instável. Em um paradigma, podemos observar estas obrigações e deveres do feminino pelo sistema patriarcal – e quando falo sistema patriarcal ressalto a inclusão das mulheres na perpetuação desse modelo – com a conexão das mudanças de humores decorrentes de processos naturais do seu corpo, com os desastres naturais que acontecem constantemente no planeta. Ambos os acontecimentos trazem a idéia de descontrole, destruição e desequilíbrio com a solicitação de intervenções drásticas para manter a harmonia. Esse mesmo poder de uma sociedade patriarcalista é externalizado no programa Largados e Pelados, quando os seios de suas participantes são censurados. Sentencia Qualls-Corbett (1988, p. 18)

“Quando o feminino divino, a deusa, deixa de ser reverenciado, estruturas sociais e psíquicas tornam-se supermecanizadas, superpolitizadas e supermilitarizadas. O pensamento, o julgamento e a racionalidade tornam-se os fatores dominantes. Necessidades de relacionamento, afeto, carinho e respeito pela natureza permanecem negligenciadas. Não há equilíbrio nem harmonia, seja dentro de si mesmo, seja no mundo externo. Com o desprezo pela imagem arquetípica tão relacionada no amor apaixonado, ocorre na mente divisão de valores, unilateralidade. Como resultado, ficamos tristemente mutilados em nossa busca da integridade e da saúde.”

Com essa explanação não chega a ser uma ironia constatar que essa mesma sociedade que produz programas, documentários e fotografias “belíssimas” da Natureza seja a mesma que provoca sua deterioração.

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NATUREZA E LOGOS

Essa busca utópica de representações de felicidade e paz com a Natureza acaba por se tornar uma extensão neurótica de uma sociedade patriarcalista viciada em controle e poder. O programa Largados e Pelados e as selfs são a materialidade da performance do expectador, e não uma conexão com o ambiente. Conectar-se seria reconhecer as fragilidades, adaptar-se e viver, sem apegos neste cenário. O filosofo coreano Byung- Chul Han esclarece esse pensamento:

“Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular. O animal não pode mergulhar contemplativamente no que tem diante de si, pois tem de elaborar ao mesmo tempo o que tem atrás de si.” (HAN, 2015)

Em uma comparação, não estaríamos longe da nossa “natureza” nas selvas de pedras do nosso cotidiano. Para Han, estamos mais próximos dos seres selvagens, no entanto, sem o mecanismo de conexão e desconexão presentes nos animais que o permitem sobreviver de maneira integrada ao seu ambiente. Nosso diferencial seria o Eros, a simples contemplação, porém ao tentarmos sacralizar o cenário e o momento, cedemos ao Logos no instante que interferimos no processo de contemplação com a busca de ângulos para fotos e, irremediavelmente, na sua publicação nas redes sociais. O que deveria ser oferecido a Psique como uma manifestação de prazer e contentamento, cede diante das pressões do Ego. Talvez a forma mais íntegra de conexão nos moldes impostos pelas redes sociais, seria uma imagem, no seu melhor ângulo, de uma pessoa meditando sorridente diante de um Tsunami ou terremoto. Assim, estaria curvado diante do “poder do universo”, reconhecendo a incompletude ao ceder a essa força, e não torná-la escrava de uma forma.

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As referências clássicas arquetípicas das deusas que temos estão ligadas ao poder, completude e entrega enquanto as imagens modernas reforçam uma conduta da reverência e controle com condescendência.

 

CONSCIÊNCIA NO VERDADEIRO SELF

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O presente texto procurou refletir sobre o significado da Natureza quanto ao seu aspecto feminino tão popular desde épocas imemoriais e sua repercussão na pós-modernidade. Ainda é perceptível essa crença, no entanto, com outros significados. Ao cedermos a padrões performáticos e sua disseminação, por exemplo, nas redes sociais, estamos à mercê do logos, do animus, o patriarcado exercendo inconscientemente seu poder de apropriação e mercantilização. É necessária uma reflexão sobre a ação, e diferenciar entre os possíveis e reais efeitos desta dinâmica sobre a mente. A analista Qualls-Corbett (1988, p. 23) diz,

“Qualquer que seja sua origem individual, tal resistência possui fundamento que encaro com seriedade: nossa cultura excessivamente voltada PA o Logos. Esse tipo de atitude, para o qual somo todos mais ou menos propensos, leva-nos a dar valor muito maior ao fazer do que ao ser, ao alcançar do que ao vivenciar, ao pensar do que ao sentir.”

E continua,

“A imagem da prostituta sagrada, que estabelece relação entre essência da sexualidade e a da espiritualidade, podia ser discernida de várias maneiras, visto que ela estava presente no material inconsciente de cada indivíduo. Era interessante ver que, uma vez que a imagem se tornara consciente, percebia-se notável mudança nas atitudes da pessoa.” (QUALLS-CORBETT, 1988, p. 20)

 

A Natureza como meio de atingir a completude da Psique é possível; a transformação perpassa a alma e não é direcionada ao exterior. A experiência, aparentemente externa, rememora o que há de mais sagrado no ser humano: a possibilidade de conexão com o todo. A mudança é evanescente para as lentes de uma câmera, mas sensível para o verdadeiro self.

 

REFERÊNCIAS:

QUALLS-Corbett, Nancy. A prostituta sagrada – a face eterna do feminino. São Paulo: Paulus, 1988;

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. São Paulo: Vozes, 2015.

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“Carol” e o caminho da completude feminina

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Com seis indicações ao OSCAR:

Atriz (Cate Blanchet), Atriz Coadjuvante (Rooney Mara), Roteiro Adaptado (Phyllis Nagy), Fotografia (Ed Lachman), Trilha Sonora Origial (Carter Burwell), Figurino (Sandy Powell). 

Banner Série Oscar 2016

O homem só conhece a sua verdadeira natureza no momento em que se enamora

                   Aldo Carotenuto

O prenúncio de Eros e Pathos

É natal, a beleza da neve fina que cai logo se transmuta na lama que suja as ruas de Nova York. Mas nada disso importa para Therese Belivet (Rooney Mara). O frio a expulsa do seu apartamento sem calefação para o trabalho, onde toma seu café. Lá, vai para o seu posto atrás de um balcão, no setor de bonecas. Therese não é muito diferente delas, ali, esperando inerte, passiva, repetindo as mesmas frases decoradas para agradar os clientes enquanto distribui um sorriso plástico para atraí-los. Mas aquele dia em especial teria duas novidades: o primeiro, ter que usar um gorro de natal e, segundo, a presença de Carol (Cate Blanchett). Ela era “alta e clara, com um longo corpo elegante dentro do casaco de pele folgado (…), seus olhos eram cinzentos, claros e, no entanto, dominadores, como luz ou fogo” (Trecho do livro Carol).

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Ao avistar Carol pela primeira vez, Therese não quer se desprender daquele corpo evanescente que parece flutuar longínquo em meio a balburdia da multidão na loja. Um instante ali, em um respirar, a garota perde seu objeto de curiosidade, expande sua procura para outras partes da loja e quando a decepção começa a se instalar, Carol materializa-se na sua frente, carne, osso e sedução. Olhos nos olhos, postura contida da jovem diante da força feminina que penetra o seu espaço. O enlace lembra um excerto de Shakespeare.

“Assim que se olharam, amaram-se; assim que se amaram, suspiraram; assim que suspiraram, perguntaram-se um ao outro o motivo; assim que descobriram o motivo, procuraram o remédio”. (William Shakespeare)

Com seu primeiro livro, Strangers on a Train, a jovem autora Patrícia Highsmith conseguiu a atenção do público e da crítica. Alfred Hitchcock imortalizou a obra nos cinemas com o clássico O Pacto Sinistro. Seu segundo livro, O Preço do Sal, foi rejeitado por conflitos editoriais; não queriam arriscar a carreira da escritora com um tema delicado sobre o romance de duas mulheres. Que continuasse com os suspenses. Mas Patrícia preferiu entregar seu livro para outra editora, não iria jogá-lo no esquecimento de um fundo de gaveta. Sob o pseudônimo Claire Morgan, O Preço do Sal chegou às mãos dos leitores em 1953.

Somente depois de quase trinta anos a verdade veio à tona em uma confissão da própria autora em um pós-escrito de uma nova edição. Agora temos uma versão cinematográfica primorosa feita pelo diretor Todd Haynes (Longe do Paraíso, 2002), com interpretações permeadas de sutilezas do elenco, principalmente das protagonistas Cate Blanchett e Rooney Mara, que concorrem, respectivamente, ao Oscar 2016 de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante.

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Afrodite: o arquétipo da Deusa do Amor 

Uma verdadeira história de amor tem doses de idealismo e romantismo, permeados de sofrimento, prenúncios de tragédia e, por vezes, redenção no seu encalço. E se o imaginário coletivo já é carregado por arquétipos gregos, a cultura de massa explora esse sentimento que arrebata o coração empurrando romances e filmes, provocando suspiros, lágrimas e, apesar de tudo, esperança. É peculiar notar que tramas com tamanha dor representam a essência do sentimento mais desejado pelo ser humano.

O drama é incontestavelmente parte da experiência amorosa, no entanto, com tantos sinais de aviso sobre os caminhos tortuosos deste sentimento utópico, o indivíduo quer, procura e sonha tê-lo.  Mas qual seria a razão para o desejo de um sentimento que pode, aparentemente, significar a destruição daquilo que já conhecemos, das nossas certezas e, principalmente, da identidade? Certamente não obteremos a resposta utilizando a razão.

No primeiro encontro, Carol chega curiosa à bancada da menina que a encarava de maneira incisiva. Sua experiência enxerga em Therese uma possibilidade, há uma faísca no olhar da vendedora que a atrai. O jogo de sedução é iniciado a partir do momento que ela deixa as luvas sobre o balcão, – com as mãos nuas, ela demonstra implicitamente que está aberta para um contato verdadeiro; outra leitura presente é que nos remete a cultura do desafio do passado: ao retirar as luvas e jogá-las no chão, chama-se o oponente para um embate, a pessoa ao se abaixar e pegar estaria aceitando o duelo. Therese percebe as intenções e aceita, de forma juvenil, as investidas da sedutora mulher à sua frente. Carol quer saber até onde vai a ousadia da menina; Therese quer provar que é digna de atenção.

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O ponto de partida do romance entre as duas mulheres é de reconhecimento dos anseios da psique e sua completude. Em uma identificação com os arquétipos das deusas gregas, segundo Bolen (1990, p. 82), temos Therese como uma das três deusas virgens. “Ártemis representa um sentido de integridade, uma-em-si-mesma, uma atitude de ‘sei cuidar de mim mesma’ que permite à mulher agir por conta própria, com autoconfiança e espírito independente”. Em vários momentos do longa há investidas masculinas sobre Therese, e ela renega todas tal qual como a deusa da lua. Na década de 50, isto representa um avanço na personalidade feminina e os primeiros passos do feminismo. De acordo com Bolen (1990, p. 55).

“(…) a propaganda posterior à Segunda Guerra Mundial enfatizava o casamento e a maternidade. Era um tempo de realização para mulheres que tinham a necessidade de Hera de serem uma companheira, e para mulheres com instinto maternal de Deméter. Era uma época difícil para mulheres tipo Atenas ou Ártemis, que eram intelectualmente curiosas e competitivas, mulheres que queriam expressar superioridade ou realização em qualquer tarefa que não a de construir família.”

Carol encarna a deusa Deméter, mãe acima de tudo, seu amor e devoção estão todos voltados para a filha e ninguém mais. A deusa Hera também traz a maternidade como uma de suas características, mas diferente da nossa protagonista, a deusa nutre um amor passional pelo marido, Zeus, sentimento inexistente entre ela e Harge (Kyle Chandler). “A mulher com um forte arquétipo de Deméter deseja ardentemente ser mãe. Uma vez que se torna mãe, acha isso um papel realizador. Quando Deméter é o arquétipo mais forte na psique de uma mulher, ser mãe é o papel mais importante e funcional de sua vida” (BOLEN, 1990, P. 240).

Esses modelos não são fixos, mas podem ser limitantes, refletindo características da época que podem suprimir ou permitir o seu desenvolvimento. Esclarece Bolden (p. 54): “A vida das mulheres são modeladas por papéis permitidos e imagens idealizadas da época”. Historicamente temos exemplos dessa influência com a caça às bruxas na Idade Média e o advento do feminismo na modernidade. Mas a psique do indivíduo nem sempre precisa da autorização da sociedade para buscar sua individuação. “Uma deusa pode tornar-se ativada e nascer para a vida quando um arquétipo é trazido à tona por uma pessoa ou por um acontecimento” (BOLEN, 1990, P. 58).

A mulher necessita expressar de maneira equilibrada os seus três aspectos: das deusas virgens – Ártemis, Atenas e Héstia -, das deusas vulneráveis – Hera, Deméter e Perséfone -, e da deusa alquímica – Afrodite. “As deusas, representando três categorias diferentes, necessitam de expressão em algum lugar na vida da mulher, para que ela possa amar profundamente, trabalhar significativamente, e também ser sensual e criativa” (BOLEN, 1990, p. 39).

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Ao se encontrarem, Afrodite permeia a psique de ambas as mulheres. O desejo de transformação é inerente a elas naquele momento; há uma escolha, mas suprimir essa ânsia pela completude da alma pode trazer conseqüências mais graves do que se render a inconsciente vontade de transformação. Para Bolen (p. 48), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-lo. Ela, aliás, será arrastada primeiro numa direção e depois noutra”. Temos no filme, então, duas mulheres em contato direto com suas deusas, Ártemis e Demeter, onde a necessidade de transformação será ativada pelo arquétipo da deusa do amor. “O arquétipo de Afrodite motiva as mulheres a procurarem intensidade nos relacionamentos, em vez da permanência neles: motiva-as a valorizarem o processo criativo e a serem receptivas a mudanças” (BOLEN, 1990, p. 41).

Então, quais seriam essas mudanças que almejam e que somente com o florescimento da deusa do amor e da sedução será possível? Segundo o analista Aldo Carotenuto (1994, p. 17), enxergamos no outro a nossa redenção e nossa maldição. Há um reconhecimento do inconsciente de uma parte da psique necessária para a transformação alquímica. “Ativam-se, pois na relação amorosa, elementos ocultos ou até desconhecidos, que são levados à luz da subversiva força da emoção.” Assim, o perigo de amar é não reconhecer e não permitir a mudança dos aspectos da psique até então atuantes e ligar-se de maneira doentia ao outro. O autor esclarece:

O amor que une os amantes liga indissoluvelmente as partes “doentes” dos dois indivíduos. Por isso podemos dizer que a relação de casal apresenta aspectos delinquenciais que, se reforçados por um particular contexto ou por uma disposição patológica de ambas as pessoas, podem fazer emergir de modo dramático as zonas de sombra (CAROTENUTO, 1994, p. 17).

Carol necessita sentir Ártemis através de Therese e esta precisa aflorar seu lado de adoção e vínculo propiciados por Deméter. Afrodite é o elo para a manifestação dessa mudança. A retidão das duas até consumar o relacionamento está relacionada ao poder por vezes incontrolável dos arquétipos que permeia a mulher sedutora, mas casada e com filhos. “As mulheres que são direcionadas por uma dessas três deusas devem aprender a resistir, porque fazer cegamente o que lhes dizem Afrodite, Deméter ou Hera pode afetar adversamente a vida de uma mulher” (BOLEN, 1990, p. 40).

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A ideia não é resistir, mas tomar consciência da experiência que deve se tornar um rito de passagem, uma porta para outro cenário de desenvolvimento da psique. A negação desses ritos pode trazer à tona de forma neurótica pressões internas para com o indivíduo e a todos que o cercam. Assim, é necessário uma atitude. Para Bolen (p. 49), “quando diversas deusas disputam o domínio sobre a psique de uma mulher, esta precisa decidir que aspecto de si própria expressar, e quando expressá-los”.

Por isso que o título do filme carrega o nome da personagem Carol, ao contrário de Therese que ainda seria uma lagarta lutando contra a crisálida que segura o seu verdadeiro EU; a personagem de Cate Blanchet é uma borboleta presa em uma teia de aranha, lutando inexoravelmente para se libertar de poderosa prisão, porque ela já vivencia várias personas impostas por uma sociedade patriarcal. Para Carotenuto, o amor é um meio para essa transformação e Bolen (1990, p.58) reforça isso:

Quando a mulher se apaixona, a mudança põe em perigo as prioridades anteriores. Interiormente, ao nível arquetípico, os padrões antigos podem não permanecer. Quando Afrodite torna-se ativada, a influência de Atenas deve enfraquecer, fazendo do progresso na profissão algo menos importante do que o seu novo amor. Ou os valores de Hera em favor do matrimonio podem ser superados, se houver infidelidade.

A negação, a repulsa e perseguição dos homens que permeiam o universo das duas é uma clara faceta do masculino diante das exigências, antes mudas, do feminino de demonstrar sua força individual. “Nas sociedades patriarcais os papéis aceitáveis são os da jovem (Perséfone), da esposa (Hera) e da mãe (Deméter). Afrodite é considerada “a prostituta” ou “a sedutora”, o que é uma distorção e desvalorização da sensualidade e sexualidade desse arquétipo.” (Bolen, 1990, p. 54).

É uma encruzilhada onde os dois caminhos são cobertos de dor, mas somente um leva a individuação e ao empoderamento do EU. E é este caminho que Carol e Therese decidem seguir quando viajam juntas.

O arquétipo de Afrodite não é o mais perigoso, qualquer uma das deusas quando não vivenciadas de maneira adequada tem seus efeitos colaterais. Mas ser regido pela deusa do amor e da sedução é se permitir guiar pela emoção e perder totalmente as rédeas da razão pode trazer consequências de peso muito maior que a psique possa suportar. Para Carotenuto (1994, p. 110), “se não temos certo nível psicológico, o instinto sexual se torna cruel na sua repetição, na tentativa desesperada de captar o outro.” Assim, corre-se o risco da busca constante da repetição do rito não pela experiência, mas pela sensação.

Explica Carotenuto (p. 110): “É típica do homem a possibilidade constante e ininterrupta de amar e desejar, não vinculada a fases ou ciclos, provavelmente a vicissitudes evolucionistas.” Mas uma via que torna essa busca desesperada em algo mais profundo seria através da ternura, que, para o autor, distingue o ato do rito sexual. O reconhecimento da anima seria a única forma de permissão da psique para a possibilidade de cativar de maneira íntegra o amado. “Só o feminino (tanto na mulher como no homem) consegue fazer isso. A ternura se contrapõe a uma grande ameaça: a que nos vem do sentimento de morte” (CAROTENUTO, 1994, p. 110).

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O amor 

A pressão que Carol recebe do marido, partindo da ameaça para o cerceamento são o reflexo da sociedade para aqueles que ousam ir além do que é padrão. Segundo o analista junguiano (p. 24), o amor ajuda a romper essas barreiras, “as leis não podem proibir os seres humanos de se enamorarem, mas é a própria sociedade que deixa morrer quem ousou transgredir levando uma centelha divina para o sulco sempre igual e cinzento da existência”. Ou seja, a mesma sociedade que enche as salas de cinemas para ver filmes como Carol e Romeu e Julieta é aquela que atira a pedra quando vê isto transposto para a realidade. A tragédia vem imbuída com sentimentos de inveja.

No filme, temos duas mulheres bem conscientes do mundo que as envolve. Therese olha curiosa, através de sua redoma – sempre, no início, observando através de janelas ou da sua câmera – a vida de Carol e deseja ardentemente tudo aquilo que ela poderá lhe proporcionar. E não hesita em nenhum momento a esse desejo, porque ele é sincero e não uma simples pulsão. “Quem ama se descobre mais forte e mais rico, sente-se inesperadamente capaz de enfrentar também as situações perigosas” (CAROTENUTO, 1994, p. 42).

Carol fica a mercê desse conflito interior, precisa manifestar sua independência e sua sedução, infelizmente seu marido não é o meio para isso. E é esse desejo de não permanecer à mercê de um padrão um exemplo de mudança individual que afeta o coletivo e, consequentemente, uma época.  Quantas mulheres casadas e mães não abdicaram de seus sonhos e desejos por medo de perder literalmente tudo. Carol pressente que os tempos são outros, que sua voz tem presença e sua ação, poder. Então ela vive e fala sobre seu amor, sem inibições, mesmo que signifique perdas; pior seria a morte de sua alma. O que sucede é um abraço a esse lado desconhecido de maneira íntegra, ciente de todas as conseqüências necessárias para exercer sua liberdade. “É verdade, o amor nos torna livres, livres para manifestar sem inibições não apenas o próprio lado emocional, mas também a própria inclinação ao negativo, aquela que com sugestivo termo junguiano é chamada Sombra” (CAROTENUTO, 1994, p. 18).

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A ruptura posterior entre as duas é necessária para o desenvolvimento saudável de suas psiques. A vivência de Afrodite para elas é um meio para chegar à completude e não um fim. Se ali, na viagem, terminássemos em um final feliz, teríamos um casal amarrado pela necessidade neurótica uma da outra, parasitas de suas próprias almas.

Therese teve sua experiência com o arquétipo de Deméter de Carol, mas não encarnou para si esse modelo. Após a dramática separação, surge o arquétipo de Atena, onde a calma e a racionalidade passam a ser características naturais de sua persona.  Bolden (1990, p. 120) esclarece que “quando a mulher reconhece o modo intenso com que sua mente trabalha como uma qualidade feminina relacionada com Atena, ela pode desenvolver uma autoimagem positiva, ao invés de se amedrontar de estar masculinizada, isto é, imprópria.” Assim a menina cura sua anima através da amorosa Deméter e aceita seu animus de maneira positiva.

Já Carol necessita da independência de Ártemis, porém a sociedade quer prendê-la no arquétipo de Deméter ou que a abandone a favor de Afrodite.  Mas Carol percebe que há outra possibilidade, que há necessidade de sacrifícios para manter a integridade do seu EU verdadeiro: trazer o arquétipo de Ártemis à tona, assumir sua liberdade e independência com todos os prós e contras que as escolhas trazem. Isso não a impede de ser mãe e muito menos de amar.

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Em uma história feita de escolhas, o longa de Todd Haynes ainda traz uma surpresa no seu belíssimo desfecho. A cena que inicia o filme e volta a se repetir nos minutos finais exige de Therese um sacrifício a altura daquele feito por Carol na luta pela guarda da filha. Carol, no restaurante chama Therese para morar com ela e antes da resposta surge um amigo que a fisga de volta aos anseios da sociedade; existe um dilema, seguir a razão ou o coração. Ambas já tiveram sua mudança alquímica completa, a partir dali os contornos que a vida daria seriam outros. O rapaz pousa a mão no ombro esquerdo da garota – o racional -, e Carol se despede tocando seu ombro direito – o emocional. Cabe a ela decidir quem vai determinar sua história: a sociedade ou sua sombra. Uma escolha a qual todos passam, em maior ou menor escala, onde geralmente a mão mais pesada é a vencedora. Por isso que histórias de amor são únicas culturalmente e raras na realidade, são poucos que escolhem seguir o seu coração.

REFERÊNCIAS:

BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulhernova psicologia das mulheres. São Paulo, 1990;

CAROTENUTO, Aldo. Eros & pathosamor e sofrimento. São Paulo, 1994.

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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CAROL

Direção: Todd Haynes
Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Jake Lacy;
País: EUA
Ano: 2015
Classificação: 14

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Dois Dias, Uma Noite: o inferno são os outros

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Concorre ao Oscar 2015 de Melhor Atriz

 

Sandra, após um tempo afastada do emprego por motivos de saúde, descobre que perdeu sua vaga em uma votação onde seus colegas deveriam escolher entre seu retorno ou um bônus salarial. Ao conversar com o seu patrão para tentar reverter a situação, recebe uma nova chance: no início da semana ele fará uma nova votação, se nove dos dezesseis trabalhadores votarem a favor de mantê-la no emprego, ela será aceita de volta. Agora cabe a Sandra ir atrás de cada um deles e convencê-los a desistir de seus bônus salariais a favor de sua readmissão.

Ao longo dos noventa minutos de “Dois dias, uma noite”, assiste-se a odisseia de Sandra para tentar salvar um dos poucos elos que a mantêm ligada a sociedade após um diagnóstico de depressão. Para alguns, deve ser extenuante ver uma protagonista que na maioria das cenas está a choramingar e prestes a desistir da empreitada que, a julgar pelos esforços, pode definir sua vida. Quando muito pressionada, Sandra recorre aos remédios e ao recolhimento, dormir é sua fuga não só do mundo externo mas, principalmente, do que há no seu interior, do que julga não conseguir superar. Prefere se enfiar debaixo das cobertas a, em suas palavras, “mendigar” por seu emprego, pois inicialmente, lutar não é uma opção nobre, mas degradante.

 

Ao seu lado está Manu, firme e confiante, que a motiva a continuar sua busca. Seu marido, ao incitá-la a ação não está preocupado com as contas que deve pagar, ele sabe que além das demandas cotidianas, outras coisas estão em jogo. Seu papel de pai e marido está ligado ao resultado desse processo de Sandra em se perceber indivíduo antes de reassumir os papeis de mulher e mãe.

 

“O inferno são os outros”

E, dentro do drama de Sandra, temos outros orbitando á sua volta. A cada encontro uma surpresa, uma chama de esperança, uma palavra de apoio seguida de ações tempestivas de rejeição e violência. Do mesmo jeito que ela luta por seus direitos, cada um dos seus colegas tem motivações para aceitar o dinheiro em detrimento do bem-estar da colega. Quem estaria agindo com egoísmo e avareza, aqueles que optaram pelo bônus ou Sandra que “mendiga” que todos se sacrifiquem por ela?

 

A odisséia individual de Sandra é a espinha dorsal de “Dois dias, uma noite”; não é difícil torcer por ela e ficar contra aqueles que escolhem o dinheiro ao invés da sua permanência no emprego. Mas toda a consistência do filme é baseada não só em como nossas escolhas tem efeitos além do conforto das nossas residências, e sim em como colocamos em prática conceitos morais e suas influências na nossa ética.

Cada um dos trabalhadores faz parte de uma sociedade que optou por certas regras para manter a “política da boa vizinhança”. Não chega a ser um papel a ser interpretado, mas sim uma máscara a ser usada. Podemos ser contra a pena de morte, ao desmatamento e ao trabalho escravo. Posso deixar comentários em redes sociais, opinar veementemente na roda de amigos, mas, em termos de consistência, muito pouco sabemos dos resultados das nossas escolhas, principalmente quando não temos consciência da sua extensão.

A votação no filme é um momento em que o indivíduo é forçado a identificar seu papel. A máscara não serve mais, agora é necessário um posicionamento. Uma ação é solicitada, cabe ao indivíduo uma escolha que irá gerar uma reação, aí terá materializado nossa moral, que muitas vezes não condiz com a ética vigente. Sartre dialoga sobre a responsabilidade dos nossos atos. Para o filósofo francês, estamos “condenados a ser livres” porque nossas escolhas moldam o mundo que nos rodeia. Assim, o resultado que esperamos de um mundo “bom” ou “mau” estaria estrito a estas escolhas. Mas o que seria uma escolha correta?

 

“Digo-lhes que não deixem passar um dia sem falar da bondade…”

Para Sócrates, o virtuosismo está ligado à paz de espírito. Em linhas gerais, uma pessoa boa é sábia, diferente de alguém que age com maldade, classificada como uma pessoa ignorante. Assim, a virtude não é relativa, já que é inerente ao ser humano, porém é necessário um esforço de autoconhecimento para exercê-la e expressá-la na forma de bondade. Um exame árduo e contínuo é necessário para chegar a esse estágio, que seria definitivo; se ainda há dúvidas sobre o que é bom ou mal é porque o indivíduo ainda permanece ignorante sobre quem é. Os irmãos Dardenne compreendem o voto dos colegas de Sandra como uma escolha de sábios e ignorantes. Um argumento comum entre aqueles que decidem votar a favor do bônus é a necessidade do dinheiro, o que tornaria a jornada de Sandra egoísta, mas os problemas financeiros deles são pré-existentes, o bônus não.

 

O que fica subentendido é a capacidade que alguns têm de sacrificar o que for necessário em prol das suas demandas pessoais enquanto outros tendem a defender suas questões morais, independente dos meios. Àqueles que aceitam o bônus parece não passar pelas suas consciências que eles podem estar em uma situação parecida. Em uma abordagem pragmática, podemos citar o professor e escritor afro-americano William Du Bois, que afirma que “não importa os pensamentos e crenças, mas também as implicações práticas delas”.

 

As avaliações não se limitam a duas vertentes, ao positivo e ao negativo. A consciência das implicações é perceptível em vários dos votantes a favor do bônus ou que se arrependeram. Em contraste, no meio termo temos aqueles que reconhecem “a virtude” mas não são “virtuosos”. Essa virtude que Aristóteles prega, é a mesma que pais tentam impingir nos filhos, mas que por vezes não é experienciado. Bons exemplos são a mulher que pede para a filha atender e dizer que não está e o homem que, ao encontrar Sandra, pede para o seu pequeno filho sair antes de colocar seu ponto de vista. São os pais que definem parte dos nossos conceitos morais e éticos, e ao serem incapazes de demonstrar isso na prática, fica perceptível sua falta de bondade.

 

“Eu não sou nada, eu não existo”

A personagem central, Sandra, em um momento de desolação, se vira para o marido e diz, cabisbaixa: – “Eu não sou nada, eu não existo”. Essa declaração pode, aparentemente, expor uma vitimização da protagonista, que se nega a lutar pelos seus direitos. No entanto, o que observamos é o sintoma de uma das doenças mais mal compreendidas do nosso século: a depressão.

As informações sobre quem é a mulher Sandra são esparsas. Sabemos que é casada, mãe de dois filhos e que acabou de financiar uma casa. Sobre seu estado de saúde descobrimos aos poucos que foi diagnosticada com depressão e, provavelmente, com agorafobia, devido a alguns ataques que ela tem durante sua busca. Em outro momento, um dos seus colegas agradece por ela ter levado a culpa em seu lugar, situação que exemplifica o caráter da protagonista. Mas, o que a levou a esse estado? Não nos é informado. O estado depressivo não é como as outras doenças, com um diagnóstico e medicamentos definitivos. Assemelha-se mais como uma nuvem de tempestade, quando você olha para o céu, antes azul, de repente aparece aquela massa negra a cobrir tudo o que tem vida; só que essa nuvem é interna. O roteiro é claro ao associar o uso de remédios controlados ao desejo de fuga de Sandra; todas as vezes que ela fala em desistir ela está ingerindo Xanax.

 

A busca da protagonista por sua aceitação, metaforicamente, é uma luta interna por sua existência. Se expor a cada um dos dezesseis colegas é um exercício de firmação, não haveria possibilidade de uma luta externa se ela não travasse, concomitantemente, essa batalha interna. O emprego é o estopim do seu movimento, mas é essa jornada externa que colocará em perspectiva sua vida e suas escolhas. Quem é Sandra? Sentada do lado do marido ela observa um passarinho cantar e deseja ser como ele: cheio de contentamento, porque a natureza, independente do que ocorra ao redor, simplesmente é.

E ao final, Sandra prova sua virtude indo além do seu objetivo. Sua última escolha a liberta e define sua existência. Na última cena, ao fazer planos, sonhar novos rumos, com uma coragem adquirida de uma pessoa que sabe qual é sua verdadeira natureza, Sandra sabe de onde tirar suas forças. E a câmera, antes em uma conjunção quase epidérmica, a abandona, deixa-a caminhar sozinha rua abaixo. Ao fundo podemos escutar passarinhos cantando despreocupados.

 

Trailer:

FICHA TÉCNICA DO FILME

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DOIS DIAS, UMA NOITE

Título Original (França): Deux Jeurs, une nuit

Direção & Roteiro: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Elenco:Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée
Produção: Jean-Pierre Dardenne & Luc Dardenne
Fotografia: Alain Marcoen
Duração: 135 minutos
Ano: 2014

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O Menino do Rio

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Todos os dias ela observava o menino na beira do rio. Alegre, alegre, passarinho voando solto na relva; macaco pulando de galho em galho, na euforia de viver só o momento presente, porque o seguinte não existe. Distante assim no tempo, sua alegria ecoava pelo espaço, preenchendo os vãos até estremecer seu chão. Como amava aquele pedaço de gente!

Pequenino de quase tudo, mas, de longe, percebia-se quão gigante ia ser. Sua inocência era larga, igual aquele mundaréu de água, sem fim. Explodia de cores, energia multiplicada sete vezes o número de folhas da jabuticabeira do quintal. E o amor, ah, esse, ele mesmo dizia, cabia na palma da sua mão, porque assim poderia dar a mãe ou ao pai, inteirinho; os dois tinham que dar um jeito, não podia dividir, era tudo ou nada, e era pesado e bom de carregar no peito todo aquele amor.

Havia tardes que castigavam e o menino fugia da pisa dos raios do sol caindo nas águas do rio. E cantava, cantava uma melodia diferente, só sua.

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

Cantiga sem fim.

– Onde aprendeu, menino?

– Deus me ensinou.

Simples assim, como o azul do céu. E voltava a cantar, com os peixes a fervilhar à sua volta, bebendo daquilo tudo.

Sonolento ia para a rede. Logo começava a perguntar absurdos de alguma coisa:

– As estrelas caem do céu?

– Cai não meu filho, acho que não;

– E se cair, a gente pode pregar ela no teto do mundo de novo?

– Podemos sim, meu bacuri, podemos sim;

– Queria então uma chuva de estrelas… a gente ia passar a noite no céu… – e o balançar da rede tornava realidade o que dizia.

Um dia, tudo diferente, ficou só o rio, agora água salgada das lágrimas. Triste, triste. O vazio ecoava sem fim na tristeza de quem ficou. Dor cansada de doer da saudade que acabou de começar. Menino foi embora, rápido como fastio de nuvem escura de chuva. Nem barulho fez, não deu tempo nem de falar “A benção, pai. A benção, mãe”. Foi–se junto o sol, o brilho, a vida. Só escuridão ficou. Noite longa guarda tudo, até o sentimento de ausência infinita que chega faltar o ar. Desejo do mundo que agora está lá atrás!

Observa o rio correr sem cansar. Ri sem sentir ao enxergar centenas de estrelas nele. “Quer grudar elas no teto do céu, agora, meu bacuri?”. Só o vento frio da solidão é a resposta. Logo, sem saber que sabia, canta a música do filho:

 

Roda mundo, roda, roda sem parar

Pra que se preocupar pra que se preocupar

Se onde acaba o rio

É o mesmo lugar onde inicia o mar

 

E os peixes fervilham, parecem lembrar. Suspira fundo, no oco do coração, mas sente Deus, quente, tranqüilo. Continuou a cantarolar e podia jurar que o filho acompanhava baixinho, distante, distante. Agora sabia, tinha que ser amiga do tempo, porque um dia também estaria lá longe, no fim do rio esperando o filho lhe levar para as ondas do mar.

 

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