O cerceamento da loucura e a luta antimanicomial no Brasil

Um breve compêndio da reforma psiquiátrica brasileira: completando 23 anos em 2024, permanece mais necessária do que nunca!

No passado, as pessoas com sofrimento mental eram encarceradas em manicômios, instituições marcadas por práticas desumanas, como isolamento social, contenção física, terapias agressivas e uso excessivo de medicamentos. A privação de liberdade, a negação da individualidade e a ausência de perspectivas de reinserção social eram realidades cruéis que permeavam o dia a dia nesses locais.

Inspirados por movimentos sociais e pela crescente crítica à lógica manicomial, diversos profissionais de saúde mental, ativistas, familiares e pessoas com sofrimento mental se uniram para dar início à Luta Antimanicomial, motivados por ideais humanistas e pela busca por um futuro mais digno para aqueles que sofrem com transtornos mentais.

Ao longo das últimas décadas, a Luta Antimanicomial conquistou importantes avanços no Brasil, com a desinstitucionalização de milhares de pessoas, a criação de serviços extra-hospitalares e a aprovação de leis que garantem os direitos das pessoas com sofrimento mental. No entanto, ainda há muitos desafios a serem superados, como a falta de infraestrutura adequada, a carência de profissionais qualificados, a persistência do estigma e a desigualdade no acesso a serviços de saúde mental de qualidade.

Foucault (1972) defende que a loucura passou a ser internalizada dado o momento que foi atribuída à pobreza, à incapacitação para o trabalho, transformando-se em problema social. As pessoas agem distintamente em diferentes realidades e contextos sociais, buscando a conformidade e o enquadramento, em uma perspectiva de instituição total (FOUCAULT, 1987). A loucura desestabiliza a ordem dominante e os padrões de normalizações produzidas.

O pensamento de Franco Basaglia e a Luta Antimanicomial no Brasil foram inspirados por um movimento que buscava romper com razões excludentes para trancafiar o louco e lhes impor punições como forma de tratamento. A loucura, enquanto a não adequação à normalização social, é ainda controlada, silenciada, invisibilizada e regulada pelo discurso médico movido pela razão instrumental e pelo pragmatismo (BIRMAN, 2003).

Basaglia (1979) elucidou que a pessoa louca, destituída de razão, não era considerada como os outros cidadãos, ou seja, não tinha direitos pois, supostamente não poderia exercer sua vontade e nem se apropriar de sua liberdade, pela falta de discernimento. Birman (1992) aponta que a cidadania e direitos das pessoas loucas é a centralidade da proposta da luta antimanicomial, demandando não somente uma rede de atenção à saúde mental, mas a recuperação histórica de sua cidadania e de novas relações com a sociedade, em que a pessoa louca também seja reconhecida como agente de transformação da realidade.

No Brasil, a adesão à construção de colônias agrícolas para alienados encontrou um “ambiente político e ideológico propício ao seu florescimento” (RESENDE, 1987). A cidade de Barbacena, por exemplo, tornou-se conhecida como a “Cidade dos Loucos” devido aos trens lotados de pessoas vindas de todo o Brasil que eram deixadas lá, muitas vezes sem nenhum transtorno mental que justificasse sua internação (ARBEX, 2013).

Hospício Colônia: acusações pontuais de irregularidades levaram ao fim de todo o sistema manicomial do Brasil. Fonte: Luiz Alfredo/ Divulgação/ Wikipedia

Os métodos empregados no Hospital Colônia em Barbacena foram extremamente desumanos, configurando um genocídio, onde mais de 60.000 internos foram exterminados (ARBEX, 2013). O extermínio intencional visa eliminar uma comunidade, um grupo étnico ou religioso, uma cultura ou civilização, como exemplificado pelo genocídio dos índios das Américas (DICIONÁRIO AURÉLIO, 2022).

A Reforma Psiquiátrica no Brasil iniciou-se no final dos anos 70, resultando na promulgação da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080) de 1990, que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, com princípios fundamentais de universalidade, integralidade e equidade (PAIM, 2009). Além disso, a Lei No 10.216, DE 6 DE ABRIL DE 2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, salvaguarda os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, proporcionando a criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e dos Centros de Assistência Psicossocial (CAPS).

Por isso, no dia 18 de maio é celebrado o dia nacional da luta antimanicomial, que defende a humanização e dignidade na saúde mental, seus  princípios fundamentais convergem com os pilares dos direitos humanos, por isso essa duas temática vem sendo adotadas nos Encontros Nacionais de Luta Antimanicomial projetando discussões como “Cidadania e Exclusão”; “Por uma sociedade sem exclusões”. 

A exemplo dessa atuação a obra de Marcus Vinicius de Oliveira o “A Instituição Sinistra – Mortes Violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil” o seguinte relato:

“os ares democratizantes assistiram o nascimento e crescimento do movimento nacional da luta antimanicomial, que fez sua a causa da transformação da realidade da assistência psiquiátrica nacional. Não por acaso, as situações aqui recolhidas resultaram dos esforços de intervenção e denúncia dos Núcleos deste movimento, em atuações políticas concretas em defesa dos direitos humanos. E em quase todos eles, as apurações e responsabilizações obtidas, apesar de insatisfatórias, resultaram da militância e da vigilância desse movimento junto às autoridades responsáveis.” (OLIVEIRA, 2001, p. 9).

A reflexão sobre a importância da continuação da luta antimanicomial, mesmo após o extermínio dos manicômios, é essencial para o desenvolvimento de um sistema de saúde mental mais justo, humanizado e comprometido com a inclusão social das pessoas com sofrimento mental. O fechamento dos manicômios no Brasil representou um marco histórico na humanização da saúde mental, significando o fim de um sistema que violava os direitos básicos desses indivíduos. Entretanto, a luta antimanicomial não termina com a desinstitucionalização. Sua relevância se estende à defesa de um sistema que promova a reinserção social das pessoas com sofrimento mental, garanta acesso a serviços de qualidade e combata estigma e discriminação.

Historicamente, o movimento antimanicomial buscou substituir práticas violentas e desumanas por tratamentos mais humanizados e cuidadosos. Ao longo dos anos, foram alcançados avanços significativos, como a abolição do tratamento com choque e a mudança da nomenclatura de “manicômio” para “centro de reabilitação”. No entanto, desafios persistentes, como a estigmatização da causa e a luta contínua contra o retrocesso das conquistas alcançadas, ainda existem.

É fundamental que a luta antimanicomial seja vista como um processo contínuo e evolutivo. A implementação de políticas públicas adequadas é crucial, pois garante o acesso universal ao tratamento com dignidade. Mantendo a luta antimanicomial ativa, contribuímos para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Isso resulta em menos estigma e maior acolhimento, assegurando que pessoas em sofrimento psicológico recebam o tratamento adequado, independentemente de sua condição mental.

Referências

AMARANTE, P.Nunes, M. D. O. (2018). A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & saúde coletiva, 23, 20672074.

AMARANTE, P. (Ed.). (1998). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. -Editora FIOCRUZ.

AMARANTE, P. (1996). O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Editora Fiocruz. 

ARBEX, D. (2019). Holocausto brasileiro. Cidade: Intrínseca.

BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979.

BIRMAN, Joel. A cidadania tresloucada: notas introdutórias sobre a cidadania dos doentes mentais. In: BEZERRA JÚNIOR, Benilton; AMARANTE, Paulo (Orgs.). Psiquiatria sem hospício: contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.

BIRMAN, Joel. Loucura, ética e política: escritos militantes. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 2 abr. 2024.

BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10216.htm>. Acesso em: 2 abr. 2024.

CORREIA, M. G. O. A Luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica brasileira. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharel em Direito) – UFRN [Mossoró- RN], [2022].

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978.

OLIVEIRA, Marcus Vinicius de. A Instituição Sinistra: Mortes Violentas em Hospitais Psiquiátricos no Brasil. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2001. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2004/05/Instituicao_Sinistra_Mortes_violentas_em_Hospitais_Psiquiatricos.pdf>. Acesso em: [4 abr. 2024].

OLIVEIRA , V. de M. C. . The historicity of madness and the anti-asylum struggle and deinstitutionalization in Brazil. Research, Society and Development, 2023. Disponível em <: https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/view/39729 >. Acesso em: 4 abr. 2024.

É licenciado em Letras (UFT), graduando em Educação Física (CEULP/ULBRA), pós-graduado em Revisão de Textos (Universidade Gama Filho), instrutor de Yoga e Tai Chi Chuan, e colaborador do jornal O GIRASSOL.