O Conceito de Revista em Quadrinhos e Literatura: Porque persistem as diferenças

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Muitos nomes, poucos significados

Comics, mangás, gibis, história em quadrinhos ou, simplesmente, HQs. As denominações são muitas para este formato popular de leitura, mas que trazem implicitamente significados restritivos. Comics e mangá denominam a origem cultural, respectivamente revistas americanas e japonesas, de material publicado nacionalmente. Gibi e história em quadrinhos, termos nacionais, ganharam um apelo mais popular e tornaram-se os títulos designativos de qualquer narrativa que tivesse como características a ação dos personagens em esboços, balões de diálogos e direcionados ao público infantil. Infelizmente, essa limitação ideológica no Brasil não colaborou com o desenvolvimento desta peculiar forma de arte, a exemplo de outros cenários, como o europeu e o americano. As barreiras que separam este tipo de literatura com a já difundida culturalmente – do comum formato dos livros – tornam perceptíveis os preconceitos existentes com a 9º arte*, impedindo um foco mais amplo, em âmbito social e escolar, para uma visão literária.

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Na última década observamos, felizmente, a aceitação crescente dos quadrinhos nas salas de aula. Pedagogos e educadores chegaram à conclusão que as HQs são um ótimo meio para desenvolver a leitura na infância. Mas, um caminho longo para mudanças de pensamento foi percorrido, Vergueiro (2008) indica a popularização das Histórias em Quadrinhos entre o público infantil e juvenil como um dos fatores restritivos para sua exploração com função educacional; “de uma maneira geral os adultos tinham dificuldades para acreditar que, por possuírem objetivos essencialmente comerciais, os quadrinhos pudessem contribuir para o aprimoramento cultural e moral de seus jovens leitores.”

Essa crença, aos poucos vem sendo ultrapassada, promovendo na última década a criação de leis que possibilitaram a entrada dos quadrinhos nas escolas e bibliotecas.

Mais recentemente, em muitos países, os próprios órgãos oficiais de educação passaram a reconhecer a importância de se inserir as histórias em quadrinhos no currículo escolar, desenvolvendo orientações para isso. É o que aconteceu no Brasil, por exemplo, onde o emprego das histórias em  quadrinhos já é reconhecido pela LDB e pelo PCN (VERGUEIRO, p. 17, 2004).

Se por mimetismo às leis estrangeiras ou por iniciativas próprias para a adoção dessa literatura nas salas de aula, o ato foi positivo. No entanto, é notório que há uma necessidade de preparação dos profissionais da área sobre o universo dos quadrinhos. Notícias diversas pelo país dão exemplos da falta de preparo de professores e pedagogos para trabalharem este material em sala além do limite de objetos alfabetizadores para as séries iniciais.

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Dois casos graves reacenderam os debates e demonstraram claramente pontos francos não só referente ao conhecimento sobre HQs, mas também sobre o que esses profissionais da educação tomam por literatura. O primeiro foi o recolhimento das obras O Jogador, Um Contrato com Deus e O Nome do Jogo, do desenhista e escritor Will Eisner das bibliotecas dos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, em 2009, pelas respectivas Secretarias de Educação. Os livros foram considerados inadequados por conter citações, neste caso seria melhor usar o termo imagens, que evocam pedofilia e violência doméstica em suas páginas. O outro fato que chamou a atenção foi o recolhimento da coletânea nacional Dez na Área, Um na Banheira e Nenhum no Gol, de Waldomiro Vergueiro. Considerada de “muito mau gosto” pelo então governador de São Paulo José Serra, os 1.216 exemplares foram recolhidos das escolas municipais a qual foram destinados.

A “demonização” do gênero é gritante, tanto pela ignorância discursiva quanto pela falta de entendimento coerente e aprofundado sobre o objeto em questão. As justificativas sobre os casos listados acima levam a outras questões: o que estes profissionais consideram por literatura? Como é observado o leitor-aluno nessa perspectiva do que é ou deixa de ser politicamente correto na escolha do material utilizado nas salas de aula do país?

Uma imposição histórica

A produção da arte seqüencial no Brasil foi, e a ainda é, influenciada pelo mercado americano. Da produção à temática, essa conexão reverberou de tal modo que o mercado nacional sofreu as mesmas imposições direcionadas aos quadrinhos publicados nos EUA.

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Do surgimento na América, em 1896, ao início da década de 40, os quadrinhos evoluíram em forma e conteúdo. Seu caráter de mídia de massa adaptava-se aos poucos a nichos menores de público. O foco deixava de serem as crianças e jovens e se voltava para o universo adulto e suas infinitas representações. O escritor e desenhista americano Will Eisner foi o profissional que personificou essa transformação, e sua influência é perceptível até hoje. Suas histórias, mesmo a do super-herói Spirit – herói que ao invés de utilizar super poderes para salvar o dia, como era comum a época, tinha a seu favor agilidade e inteligência – primam por um naturalismo inédito que seguiria como principal característica em suas obras. E, talvez por esse detalhe, seus colegas começaram a ousar mais no traço e no conteúdo de suas histórias.

Após Spirit houve a ascensão de gêneros mais cuidadosamente realizados que os  super-heróis da época. Eram os policiais, o terror, o romantismo, o western, a ficção científica e até mesmo as adaptações literárias (BRAGA & PATATI, p. 86, 2006).

Logo, as tirinhas deixariam os jornais para ganharem publicação independente para atender a demanda. E Will Eisner, envolvido no processo, explicou em uma entrevista como isto aconteceu:“O pessoal do jornal queriam manter as prenssas funcionando, então juntaram várias tiras em um livro, que chamaram de comic book, e resolveram imprimir aquilo. Acontece que, em apenas um dia, aquele livrinho vendeu um milhão de exemplares. Estava descoberto um novo mercado e começaram então a ser publicadas histórias em sequência.”

A transformação que os quadrinhos sofreram a partir da década de 40 foi tão sensível e revolucionária que o próprio Will Eisner resolveu criar um termo para designar HQs com temáticas adultas, para atender um público mais maduro que estava em expansão.

Ainda na vanguarda da forma apesar da idade, Eisner cunhou o termo “graphic novel” romance gráfico, e especificou que se tratava de algo mais que um gibi bem impresso (BRAGA & PATATI, p. 89, 2006).

Mas, infelizmente, a expansão criativa dos profissionais dos quadrinhos não acompanhou a sociedade, ou pelo menos daqueles que se consideravam baluartes desta arte. Os “gibis”, independente da forma e conteúdo, eram vistos como produtos de consumo de crianças e jovens. Assim, os quadrinhos deveriam estar adaptados aos anseios não do seu público e sim dos pais e censores, que passaram a vistoriar o que seus filhos andavam lendo.

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A discussão tomou maiores proporções com o lançamento do livro Seduction of the Inoccent (A Sedução do Inocente), em 1954, de autoria do psiquiatra Fredric Werthan. Em um estudo com pacientes, o Dr. Whertan chegou à conclusão que as histórias em quadrinhos induziam jovens a violência, sexo e ao uso de drogas. Junte a isso a psicose anticomunista e o marcatismo, nas décadas de 40 e 50, para iniciar a caça às bruxas aos comics. Logo foram criados meios para controlar o conteúdo dos quadrinhos. A censura começava a tomar forma através das Comics Code – leis que regulamentavam do conteúdo às cores das revistas. Grupos religiosos e políticos passaram a perseguir tudo aquilo que representasse perigo para os valores morais e éticos americanos, com base nos argumentos do livro do Dr. Whertan. Braga (2006) relata que “As revistas policiais e de terror eram o que mais vendia, e o oportuno moralista dos formadores de opinião da época os atacou.” Iniciou-se uma perseguição àquilo que era considerado responsável pelo aumento da delinquência juvenil daquele país.

 As publicações da EC foram praticamente proibidas nos tribunais a partir de seu títulos, e muitos gibis, queimados em praça pública. O puritanismo vigente tornou ofensivo dar um título que incluísse as palavras “horror”, “terror”, “crime” e diversas no mesmo gênero (BRAGA & PATATI, p. 97, 2006).

A queda nas vendas foi instantânea. As revistas que resistiram foram adaptadas ao Comics Code, ou seja, material com histórias e traços infantilizados começaram a se tornar a face do que seria reconhecida por um bom tempo como revistinhas em quadrinhos.

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Enquanto isso, no Brasil

A odisséia a qual as publicações de HQs passaram nos EUA acabou refletindo no mercado brasileiro. Desde a empolgação inicial com este novo universo literário até as dúvidas sobre os possíveis efeitos na educação do público juvenil, todas as fases de julgamento, perseguição e censura foram imitadas.

O INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), do Ministério da Educação, publicou em 1944 uma pesquisa referente aos quadrinhos e seus leitores. O resultado mostra claramente como o pensamento dos formadores de opinião no Brasil mimetizou a forma de pensar americana sobre o assunto.

Além da tese da dominação cultural e do estimulo à violência promovida pelos  quadrinhos, o INEP trouxe uma preocupação a mais aos pais: segundo aquela pesquisa, quem lia quadrinhos ficava com preguiça mental e avesso a livros GONÇALO, p, 114, 2004).

Tais pesquisas, de resultados duvidosos, só concretizavam o preconceito ideológico que este tipo de literatura causava. No entanto, escritores da época, os quais tiveram suas obras literárias adaptadas para o novo formato, tinham um modo de pensar diferente dos pesquisadores.

Enquanto alguns críticos se apoiaram na tese de que a revista “prestava um desserviço” à cultura e educação de crianças e adolescentes porque as desestimulava a ler os originais, outros se mostravam defensores entusiasmados da coleção. Os escritores Jorge Amado e José Lins do Rego figuravam entre os mais empolgados com a ideia (GONÇALO, p. 284, 2004).

Mas este apoio não adiantou muito com o início da ditadura militar. A perseguição às revistas, que se estendiam a escritores, desenhistas e editoras, ganhou as mesmas proporções americanas, ceifando o desenvolvimento ascendente de um mercado que aos poucos se desvencilhava dos moldes estrangeiros.

Com o título “Proibição de revista em quadrinhos”, o jornal O Estado de São Paulo informou que, por determinação da lei, os gibis seriam classificados, para efeito de apreensão, na mesma categoria de revistas imorais e pornográficas (GONÇALO, p. 379, 2004).

Esses fatos praticamente ceifaram drasticamente o mercado nacional de revistas em quadrinhos. Os efeitos podem ser sentidos até hoje, tanto em termos de mercado quanto criativos. Enquanto nos EUA as grandes editoras criavam receitas de sucessos para manter as vendas e não provocar entidades governamentais, no Brasil, a produção ficou estagnada. O que passou a ser publicado eram revistas americanas que já haviam passado pela “peneira” da comics code e não encontravam barreiras para chegar às bancas nacionais.

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As vendas continuavam com tiragens altas, mas o que encontrávamos em grande quantidade nas bancas era material estrangeiro. A editora EBAL ainda arriscava adaptações de clássicos da literatura, como Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado, no entanto, eram publicações raras, levando em consideração a formato e o conteúdo do que era a receita do sucesso da época. A invasão dos heróis americanos, intervenções do governo e até perseguição a artistas, na década de 60, enterraram qualquer chance de desenvolvimento e perspectivas para uma arte em quadrinhos nacional nas décadas seguintes.

De uma maneira geral, durante os anos que se seguiram à malfadada campanha de difamação contra elas, as histórias em quadrinhos quase se tornaram responsáveis por todos os males do mundo, inimigas do ensino e do aprendizado, corruptora das inocentes mentes de seus indefesos leitores. Portanto, qualquer idéia de aproveitamento da linguagem dos quadrinhos em ambiente escolar seria, à época,  considerada uma insanidade (VERGUEIRO, p. 16, 2004).

Tal pensamento acompanhou as HQs no Brasil por muitos anos e parecia ter sido superado com o respeito que essa mídia começou a adquirir no início da década de 80. Mas, infelizmente, não foi o que ocorreu.

A Redenção, ou quase

Após vinte anos, os quadrinhos começaram a ser tratados novamente como arte e cultura. A evolução para uma temática mais adulta e a incorporação de fatos reais começou a atrair olhares de críticos e especialistas na área de Comunicação. Esse foi o divisor de águas para as HQs. A partir dos anos 80 os quadrinhos começaram, novamente, a deixar o restrito universo infantil para abarcar variadas temáticas adultas.

O despertar para os quadrinhos surgiu inicialmente no ambiente cultural europeu, sendo ampliado para outras regiões do mundo. Aos poucos, o ‘redescobrimento’ das HQs fez com que muitas das barreiras ou acusações contra elas fossem derrubadas e anuladas. De certa maneira, entendeu-se que grande parte da resistência que existia em relação a elas, principalmente por parte de pais e educadores, era desprovida de fundamento, sustentada muito mais em afirmações preconceituosas em relação a um meio sobre a qual, na realidade, se tinha muito pouco conhecimento. A partir daí,  ficou mais fácil para as histórias em quadrinhos, tal como aconteceu com a literatura  policial e a ficção científica, serem encaradas em sua especificidade narrativa, analisadas sob uma ótica própria e mais positiva. Isso também, é claro, favoreceu a aproximação das histórias em quadrinhos das práticas pedagógicas (VERGUEIRO, p. 17, 2004).

Importante notar o caminho inverso que a revalorização das HQs percorreu no Brasil. Se no mercado estrangeiro o ressurgimento se deu pela reaproximação com o público adulto, aqui, a julgar pelos fatos, ocorreu a permissão desse tipo de leitura para as crianças. O “despertar” citado por Vergueiro, de objeto histórico e cultural da sociedade contemporânea, não ocorreu aqui no ambiente escolar. Críticos e especialistas podem acompanhar a vanguarda de lançamentos estrangeiros, mas a visão restrita e preconceituosa, presente nacionalmente, impede o desenvolvimento das HQs em território nacional.

 A barreira pedagógica contra as histórias em quadrinhos predominou durante muito tempo e, ainda hoje, não se pode afirmar que ela tenha realmente deixado de existir. Mesmo atualmente há notícias de pais que proíbem seus filhos de lerem quadrinhos  sempre que as crianças não se saem bem nos estudos ou apresentam problemas de     comportamento, ligando o distúrbio comportamental à leitura de gibis                                                           (VERGUEIRO, p. 16, 2004).

Tentar controlar o pensamento dos alunos não é o papel das instituições educacionais. Sim, trabalhar ele através do diálogo e do entendimento. Ações como as que ocorreram em São Paulo e Rio Grande do Sul são o mais puro e arraigado preconceito a um determinado tipo de arte que está em voga e ascensão. Fechar os olhos para essa nova “escola literária” é passar por cima da história e seus efeitos contemporâneos.

O profissional que escolhe a rede de ensino como área de trabalho busca a priori o desenvolvimento, a construção e o respeito e não o cerceamento. E mesmo ao encontrar barreiras que reflitam suas ideologias e caráter, é necessário amadurecimento para encará-los e estar pronto para transformá-los positivamente. Segundo a escritora e especialista em literatura infantil Regina Zilberman, não é um livro ou uma HQ que irá transformar uma criança em alguém perverso.

O máximo que pode acontecer é ela se tornar mais lúcida e consciente do mundo. É ilusório e até puritano achar que um livro vai estragar a vida da pessoa. A censura pela pornografia ou por apresentar situações que a criança não entenderia é completamente ingênua’, disse (BRAVO apud ZILBERMAN, REGINA, 2009).

Então um dos problemas base desta discussão seria esconder o problema. Se nos livros há conteúdo impróprio é necessário um direcionamento. O livro pode tratar temas como pedofilia e violência doméstica, mas não é recolhendo-o que apagaremos estas disfunções sociais. No entanto, esta crise não foi acionada por causa da temática abordada nas páginas das HQs e sim por estar em HQs, último lugar que esses educadores esperavam encontrar tais abordagens. Na sua ignorância literária, estes educadores que censuraram os quadrinhos não percebem que estes e outros assuntos são retratados em livros diversos, nacionais e estrangeiros, literários e populares, presentes nas bibliotecas. E torna sensível outra problemática que mesmo não sendo o foco deste trabalho é bom ficar registrado: se os livros aceitos pelo cânone são trabalhados adequadamente em sala de aula.

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Retornando às HQs, mesmo que a entrada dessa literatura seja autorizada por lei a compor o suporte do processo educativo, agregado como objeto de ensino, não haverá o aproveitamento substancial do material se a visão sobre ele não for transformada, se o preconceito não for destruído. E é esse mesmo preconceito que não permite o desenvolvimento da arte nacionalmente. Encará-la como uma representação social contemporânea permitirá uma evolução nacional que afetará leitores e artistas positivamente.

É interessante imaginar adaptações de clássicos da literatura para os quadrinhos – vide a série Domínio Público da editora DCL. Nela as histórias são chamadas de Literatura em Quadrinhos colocando o conteúdo a favor da forma. O título é autorizado pelo cânone, que não tem detratores no meio escolar, incluindo os quadrinhos no âmbito da arte em conseqüência do material usado como texto. Mas, seja uma poesia de Carlos Drummond de Andrade ou um livro de Machado de Assis, sempre teremos ali um texto literário adaptado e não literatura tradicional.

 […] a atitude estética diz respeito a um tipo de ‘estado mental’ que se estabelece diante de objetos artísticos e que pode ser estendida para outros objetos ou situações, dentro de determinadas condições gerais, gerando então a experiência estética   (GHIRALDELI, JUNIOR, 2005).

Esta experiência estética é que deve ser absorvida e trabalhada com e pelos profissionais da educação. Se determinado autor escolhe narrar suas histórias, seja ficção ou não-ficção, utilizando desenhos ao invés da narrativa comum, isso não desmerece seu conteúdo, ao contrário, os meios utilizados para expressar seus pensamentos são um complemento primordial, peça essencial da narrativa. Não há meio para separar um do outro. Mas como elevar o nível dos quadrinhos a outros patamares se eles não são considerados arte e muito menos literatura em grande parte do meio acadêmico e educacional?

Felizmente isso não acontece com a autorização de determinados grupos e sim por representação histórica e social.

 […] a estrutura da obra de arte é a de uma peça com a estrutura da retórica, e é  ofício da retórica modificar as mentes e então as ações de homens e mulheres por   meio de cooptar seus sentimentos. Há sentimentos de várias ordens. Alguns implicam  um tipo de ação; outros, tipos diferentes. Não pode ser extrínseco à obra de arte que ela deveria fazer isso se a obra de arte e a retórica são a estrutura de uma mesma  peça (GUIRALDELLI JR., PG. 139, 2005).

Assim, já existem quadrinhos literários por causa do seu papel significativo na literatura. Chamar HQs de paraliteratura ou subliteratura atualmente por alguns estudiosos pode diminuir o conceito, mas não tira a principal característica que está intrinsecamente ligada a determinadas publicações, de que são literatura.

Arthur C. Danto, filosofo que escreveu sobre o fim da arte, não como algo finito mas mutável, exemplifica bem esse momento:

 Duchamp […] demonstrou que é inteiramente possível para alguma coisa ser arte sem ter a ver, absolutamente, com gosto, bom ou mau. Assim, ele coloca um fim naquele período do pensamento estético e da prática estética que era interessado, para usar um título de David Hume, em padrões de gosto. Isso não quer dizer que a era do gosto foi substituída pela era da apreciação do que não é de bom gosto. Isso quer dizer, antes, que a era do gosto foi sucedida pela era do  significado. A questão não é se algo é de mau ou bom gosto, mas o que significa. É verdade que Duchamp fez isso possível ao usar substâncias e  formas que induzem ou podem induzir a repulsa. Isso agora é uma opção. Mas  pegar ou não tal opção é, inteiramente, uma questão de qual significado um  artista pretende comunicar. Poderia acrescentar que é também uma opção,  antes que um imperativo, induzir um prazer do tipo daquele associado com a beleza. Que também é uma escolha, para os artistas para quem o uso da beleza tem significado. Não era uma opção para Duchamp, porque ele estava  engajado na ultrapassagem do gosto como imperativo artístico. Mas a rejeição também é um efeito forte para associar, em qualquer grau, ao trabalho de Duchamp, ainda que o offcolor, em alguns casos, tenha realmente provocado isso (GUIRALDELLI JR.; DANTO, p. 137,  2005).

Há uma ampla bibliografia nacional analisando os quadrinhos, ou melhor, ensinando profissionais da área da educação a lidar com os quadrinhos em sala de aula. Mas são raras aquelas que ousam ultrapassar a barreira do pedagógico para alçar uma visão literária das HQs. Vergueiro (2009), na introdução do livro de pesquisas Muito Além dos Quadrinhos, abre as portas para um universo pouco explorado nos corredores acadêmicos das universidades e escolas. Porém, dado os acontecimentos em 2009 relacionados a presença dos quadrinhos nas bibliotecas e escolas, há muito a se discutir sobre o assunto.

Não se trata de negar o papel desta literatura na educação dos alunos, mas de estender a percepção das HQs em sua forma e conteúdo como literatura contemporânea. Vergueiro (2009) continua no seu texto que “abordar histórias em quadrinhos com um viés científico representa o reconhecimento, ainda que tardio, do quanto elas podem revelar sobre a realidade em que são produzidas e consumidas.” Assim, histórias em quadrinhos não devem mais ser encaradas unicamente como produto de massa; se fosse mais algum tipo de moda específica de uma época, não teria resistido à perseguição sistemática a qual passou.

A mídia evoluiu, e como qualquer literatura é possível diferenciar as criações comuns das geniais, mas julgá-las menores por sua forma de representação é a representação da ignorância e preconceito, sentimentos tais que não podem fazer parte daqueles que são responsáveis pela estruturação da educação e iniciação cultural das crianças e jovens no contexto escolar.

BARBOSA, Alexandre; RAMOS, Paulo. Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula. São Paulo: Editora Contexto, 2004.

DANTON, Arthur C.. Após o Fim da Arte. São Paulo: EDUSP, 2010.

EISNER, Will. Narrativas Gráficas. São Paulo: Devir, 2008.

EISNER, Will. Um Contrato Com Deus. São Paulo: Devir, 2009.

EISNER, Will. Quadrinhos E Arte Seqüencial. São Paulo: Devir, 1999.

GHIRADELLI JR., Paulo. Caminhos da Filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

JUNIOR, Gonçalo. Guerra dos Gibis. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

PATATI, Carlos; BRAGA, Flávio. Almanaque dos Quadrinhos.Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.

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“Contatos de 4º Grau” e os milagres forjados para entreter

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“A crença pós-modernista no relativismo da verdade, aliada à velocidade dos meios de cultura de massa, nos quais os intervalos de atenção são medidos em minutos, nos deixa com um atordoante conjunto de alegações de verdade medidas em unidades de ‘infonimento’, ou seja, de informação entretenimento. Deve ser verdade – vi na televisão, no cinema, na internet” – Michael Shermer

A maior característica do cinema é fazer o expectador acreditar, dentre outras coisas, que se pode crer em homens que voam, em viagens para outros universos, conspirações demoníacas e até em vampiros apaixonados. Entramos em uma sala escura para, geralmente, sermos enganados e ludibriados. Cabem aos envolvidos – roteiristas, maquiadores, diretores e outros – demonstrar todo o seu talento em carregar o público pelas mãos até onde ele quer. Porém, há dois problemas: quando o filme se predispõe a ser baseado em fatos reais ou quando é uma ficção que afirma os fatos narrados como verídicos.

Na primeira, temos o dilema de seguir, independente do fato escolhido, a visão dos responsáveis – vide os filmes de guerra americanos onde, geralmente, seus soldados são bravos heróis de coração justo e destemido, “cruzados” escolhidos para lutar contra o mal disforme e desumanizado que quer dominar o mundo. A favor do telespectador, temos a internet, livros e documentários que podem ampliar a sua visão e preencher lacunas históricas que ficaram fora do enredo “baseado em fatos reais”.

O segundo problema está na nova onda de Hollywood, os famosos found footage, ou filmes perdidos, filmagens caseiras, apresentadas em forma de documentários, expostas como uma série de acontecimentos verdadeiros, o paradoxo está de que em sua maioria, os temas tratados envolvem, de algum modo, o sobrenatural. Um dos filmes mais famosos foi A Bruxa de Blair(The Blair Witch Project, 1999), o primeiro do mercado mainstream, e Atividade Paranormal(Paranormal Activity, 2007). Ambos utilizaram de diversos meios para levar o público a crer em tudo o que estava vendo, pois o sucesso desse estilo de filme é resultado da credibilidade forjada; o expectador tem que criar alguma ligação com a história retratada, isso por que é sua mente que vai desenvolver e cunhar grande parte da tensão da trama, já que visualmente pouco se vê e muito é sugerido. Logo após os lançamentos, muitas pessoas acreditaram na veracidade dos filmes citados acima. Passado algum tempo, e o anúncio das continuações, era percebido a brincadeira. Logo passou a ser piada o que antes era verossímil. Mas no meio disso tudo há um “bastardo” que ainda gera dúvidas pela campanha de marketing duvidosa criada: Contatos de Quarto Grau (Fourth Kind, 2009).

Já no trailer, temos Milla Jovovich, atriz que interpreta a protagonista do longa, afirmando categoricamente que tudo que iremos ver é baseado em relatos reais. Tal campanha publicitária é perfeita para uma sociedade que busca e quer acreditar no sobrenatural.

Segundo o material promocional do filme, o cineasta Olatunde Osunsanmi estava na Carolina do Norte, EUA, quando soube por uma colega que havia uma psicóloga que acabara de se mudar do Alaska com uma história muito interessante. Osunsanmi foi atrás da moça, e esta lhe relatou os resultados de um estudo sobre um grupo de pessoas com distúrbios do sono. Ele ficou tão entusiasmado que não só decidiu contar a história como usou as gravações e filmagens dos pacientes da terapeuta e acrescentou uma entrevista com a própria.

Segue abaixo a sinopse utilizada na divulgação do filme para a imprensa:

No outono de 2000, os pacientes da terapeuta Abigail Tyler, sob hipnose, exibiram comportamentos que sugeriam encontros com não humanos. Antes de dormirem, todas as pessoas se lembravam de uma coruja branca do lado de fora da sua janela. Elas acordavam paralisadas, ouvindo barulhos assustadores por detrás das suas portas antes que um desconhecido os arrancava dos seus quartos aos gritos. As lembranças subsequentes ficavam obscuras.

Investigando o fenômeno, a médica descobriu uma história de pessoas desaparecidas e atividade bizarra da região, datando da década de 1960. Quanto mais ela vasculhava, mais ela acreditava no inacreditável: as histórias dos seus pacientes não eram memórias falsas, mas prova abrangente de abduções alienígenas.

Usando filmagens de arquivo nunca antes vistas integradas ao filme, Osunsanmi expõe as aterrorizantes revelações de múltiplas testemunhas. Suas descrições sobre terem sido visitadas por alienígenas compartilham detalhes perturbadoramente idênticos, a validade do que é investigado ao longo do filme.”

Adicione a isso fatos inexplicáveis ocorridos no Alaska, como avistamento contínuo de OVNI’s na região, o desaparecimento misterioso de alguns habitantes e homens estranhos vestidos de preto rondando as cidades; pronto, cria-se uma lenda urbana. Digo isso, porque, fora a cidade chamada Nome, que realmente existe, o que temos são habitantes revoltados com a publicidade distorcida que Hollywood fez dela. Após cinco anos, não é difícil ver comentário em sites discutindo a “veracidade dos fatos” e os “momentos aterrorizantes” documentados e adicionando informações ao fenômeno. Ao invés de ocorrer uma indagação, há aderência sem depuração da informação apresentada, é mais fácil acreditar em qualquer coisa indiscutivelmente do que pesquisar a fundo os relatos. Bem, vamos aos verdadeiros fatos.

  • Em 2005, detetives do FBI foram designados para investigar uma série de desaparecimentos não resolvidos e mortes em Nome, Alaska. A maioria das vítimas eram habitantes nativos. Entre 1960 e 2004, 20 pessoas morreram ou desapareceram em circunstâncias misteriosas. Em 2006, o FBI concluiu que “o consumo excessivo de álcool e o inverno extremamente rigoroso” eram a causa dos fatos ocorridos.

 

  • No filme, Milla Jovovich interpreta a Dr. Abigail Tyler, psiquiatra que descobre as “abduções alienígenas” durante as sessões de hipnoterapia dos seus pacientes. Em um Site, chamado “Alaska Psychiatry Journal”, você pode encontrar uma “biografia” da Dr. Tyler com artigos relacionados: há tópicos sobre terapia de distúrbios do sono, distúrbios emocionais, hipnoterapia e regressão. Entretanto, não há no site informações para entrar em contato com a profissional. O site “Alaska Psychiatry Journal” foi registrado em GoDaddy em agosto de 2009. Não há registros de licença ou fichas para atendimento de nenhuma doutora Abigail Tyler no Alaska. A disponibilidade de uma única publicação on-line desta “especialista” validaria os fatos, como o mesmo não é possível, podemos concluir que tudo não passa de um estratagema viral para a promoção do filme. Já os pacientes que aparecem no “documentário” nunca foram vistos entre os habitantes de Nome, segundo moradores locais.

 

  • Habitantes de Nome reclamam da falta de veracidade dos fatos relatados e a ausência de consideração com os familiares dos desaparecidos. Muitos deles não estão, até hoje, insatisfeitos com a conclusão do caso e esperavam que ele fosse reaberto. Mas, agora, com os “novos fatos” expostos por essa produção hollywoodiana só dificultaram mais que a verdade, um dia, possa vir à tona.

 

Aqui, podemos discutir dois pontos. O mais preponderante é a maneira que o cinema pode influenciar o público a ponto de reconstruir a história. Lembro-me de um fato, onde um amigo, professor que passava o filme bélico 300 para os seus alunos terem uma noção da vida dos gregos no passado. Esse tipo de ação preguiçosa é que cria modelos e crenças difíceis de contornar posteriormente – vide a veracidade histórica sobre as imagens de Cristo feitas pelos pintores renascentistas até extremos bizarros em filmes recentes, como Êxodo, onde nem na figuração encontramos negros. É simplista redarguir que isso tudo não passa de entretenimento, mas em uma sociedade de massa que prima pela falta de profundidade o que não é visto não existe, não tem voz e nem substância. Atualmente é mais certo ter afirmações veementes em defesa a seres de outras galáxias e seus objetivos transcendentais ou fantasmas com mensagens pacíficas do além, do queuma abordagem com negros, mulheres e homossexuais.  Isso nos leva ao outro extremo, a facilidade de manter e criar crenças da sociedade atual pelo simples capricho e vontade de crer. Mal contemporâneo onde tudo que era crível no passado foi explicado, modificado e reciclado a bel prazer do consumidor.

Pesquisa feita em 2009 nos EUA demonstrou que o americano crê mais em anjos, demônios e imortalidade da alma do que na Teoria da Evolução de Darwin. Em outra pesquisa feita pela revista Reader’s Digest com britânicos adultos, 43% dos entrevistados afirmaram serem capazes de ler o pensamento de outras pessoas ou ter os pensamentos lidos (Shermer, Michael, 2012). Nos comentários de filmes sobrenaturais, a exemplo de Contatos de 4° Grau, não é difícil encontrar relatos de pessoas que tiveram ou conhecem alguém que teve experiências semelhantes. Para o psicólogo Michael Shermer, primeiro surgem as crenças, depois as explicações. Isso porque o cérebro naturalmente procura e encontra padrões, aos quais depois insere significado.

Chamo ao primeiro processo de padronicidade: a tendência de encontrar padrões significativos em dados que podem ou não ser significativos. Ao segundo processo chamo de acionalização: a tendência de dar aos padrões significado, intenção e ação. Não podemos evitar isso. Nosso cérebro evoluiu para conectar os pontos de nosso mundo em padrões significativos, capazes de explicar por que as coisas acontecem. Esses padrões significativos se tornam crenças(SHERMER, Cérebro e crença, 2012).

Ou seja, somos algozes e vítimas da própria armadilha, pois o cérebro, esse órgão ainda pouco conhecido do nosso corpo, parece agir segundo suas próprias regras, se aquele que o carrega é um indivíduo desatento. Para Shermer, o filósofo escocês David Hume tinha a resposta para assegurar o equilíbrio entre ser cético e ser crente:

A consequência óbvia é (e trata-se de uma máxima geral que merece a nossa atenção) “que nenhum testemunho é suficiente para estabelecer algo como milagre, a não ser que seja de tal espécie que a sua falsidade se mostre mais milagrosa do que o fato que ele se esforça por estabelecer”.

E exemplifica:

Quando alguém me conta que viu um homem morto voltar à vida, imediatamente pondero comigo se é mais provável que essa pessoa esteja querendo me enganar (ou esteja sendo enganada) ou, então, se o mais provável é que o fato que ela relata tenha realmente acontecido. Quer dizer, eu avalio um milagre em relação ao outro; e, segundo a superioridade que venha a descobrir, pronuncio a minha decisão, sempre rejeitando o milagre maior. Se a falsidade do seu testemunho for mais milagrosa do que o evento que a pessoa relata, então, e só então, é que ele poderá pretender fazer jus à minha crença ou opinião ([1758] 1952, pág. 491.).

A contemporaneidade está repleta de experiências e milagres, algo que no passado era da alçada apenas dos santos; hoje, no entanto, o que não falta são os auto-santificados, multiplicados a exaustão nas mídias sociais. Hollywood é um instrumento massificador desse processo, chegando a momentos paranóicos e extrapolando a máxima “ver para crer”. Assim, há muitos crentes e poucas coisas para ver, os fatos existem per se stante; ao contrário do que prega Hume, a verossimilhança está do lado do “milagre maior” na contemporaneidade.

 

FICHA TÉCNICA DO FILME

CONTATOS DE 4º GRAU

Título Original: The Fourth Kind
Direção & Roteiro: Olatunde Osunsanmi
Elenco: Milla Jovovich, Will Patton, Corey Johnson
Produção: Paul Brooks & Joe Carnahan
Fotografia: Lorenzo Senatore
Ano: 2009

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Não seja bonzinho, seja real – como equilibrar a paixão por si com a compaixão pelos outros

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“A força é a substituta universal da verdade.
A necessidade de controlar os outros se origina da falta de poder,
assim como a vaidade provém da falta de autoestima.
A punição é uma forma de violência, uma substituta ineficaz do poder.”

Kelly Bryson

Quantas vezes ao dia se colocam as máscaras de simpatia, bondade e solidariedade para com os outros, quando lá no fundo, na verdade, a pessoa queria estar fazendo o contrário? Por que é mais fácil falar um “sim” a contragosto do que um “não” espontâneo? Sem contar as várias situações onde se é “pressionado” a ceder continuamente – no emprego, com o chefe, no lazer, com os amigos e em casa, com a família.  E aqui se podem enumerar vários exemplos, dos aparentemente inofensivos, como quando a amiga, que está um pouco acima do peso, pergunta se está gordinha e o interlocutor, não querendo perder a amizade, diz que ela está ótima, até às mais drásticas, quando o relacionamento termina e uma das partes não sabe onde errou porque sempre fez ‘tudo certo’. Com certeza as situações citadas são familiares em algum grau para qualquer pessoa; no entanto, as diversas formas de se encarar estas situações é que faz toda a diferença. E, geralmente, os estragos que uma palavra mal dita causa, podem ser contornadas com mudanças de atitudes sutis que traz um grande diferencial para todos. Esta é a proposta do livro “Não Seja Bonzinho, Seja Real – Como equilibrar a paixão por si com a compaixão pelos outros”, do terapeuta americano Kelly Bryson.

Mais do que um “livro de receitas” comportamentais e longe de ser um daqueles monólogos de autoajuda, Kelly Bryson traça detalhadamente um perfil que não é somente fácil de verificar em várias pessoas próximas como também é visível na nossa personalidade. Em uma de suas listas de identificação, o leitor poderá descobrir se está seguindo os passos para o Autossacrifício (ou, como ele diz ironicamente, como tornar-se um capacho) enumerando, entre outras características, as seguintes:

1.    Ouve mais do que gostaria;

2.    Faz o possível para evitar que os outros pirem;

3.    Trabalha para ganhar a vida em vez de tentar descobrir como divertir-se trabalhando.

É claro que o intuito disso tudo não é demonstrar os malefícios da bondade, e sim os efeitos que ela traz quando não mensurada conscientemente aos limites de cada indivíduo. Se as pessoas são sempre solícitas, talvez, o que move as suas ações não seja a vontade de ajudar, independente de recompensas e agradecimentos, e sim o medo inconsciente de magoar o outro e suas expectativas. Para o terapeuta, em um curto prazo essa desonestidade com os próprios anseios pode levar o indivíduo a descontar sua frustração em outras pessoas (que muitas vezes nem estão relacionadas com o problema) e a longo prazo pode consciente ou inconscientemente escolher outra opção mais destrutiva: o próprio corpo – através de vícios ou doenças.

Tudo começa na infância

Quando uma criança faz uma boa ação, como realizar as tarefas da escola ou lavar o carro no final de semana, naturalmente os pais podem recompensá-lo por sua boa vontade, porém, quando o inverso acontece ninguém vai reprimir o pai ou a mãe de castigar essa criança travessa. Jean Piaget já afirmava que “a punição torna impossível a autonomia da consciência”, e segundo Alfie Kohn, autor do livro Beyond Discipline: From Compliance to Community (Além da Disciplina: da Complacência à comunidade) os efeitos repercutem na idade adulta “destruindo qualquer relacionamento respeitoso e amoroso entre o adulto e a criança e retardam o processo do desenvolvimento ético”.  E a sedução por recompensa também não é uma atitude louvável, principalmente se a criança começa a barganhar seus deveres morais e éticos por prêmios. Em uma interessante analogia, Kelly Bryson diz que castigos e recompensas são como beber água salgada, “dá um alívio a curto prazo, mas a longo prazo piora tudo.”

O livro “Não Seja Bonzinho” aborda outro paradigma na estruturação da personalidade na infância: o uso do poder dos pais para exigir determinados comportamentos dos seus filhos. O oposto do amor não é o ódio, mas o medo, e o respeito pela autoridade advém do medo das consequências por não cumprir as regras, quando o que deveria ser cultivado era o respeito verdadeiro advindo de uma natural ‘reverência amorosa’, ou seja, a bondade inerente da personalidade do individuo, sem afetações externas.

A Comunicação Não Violenta

A cada capítulo, Bryson inquire o leitor sobre os seus comportamentos guiando-o para o papel de observador. Ao distanciar-se das ações como sujeito, tornando-se objeto de análise, fica mais fácil reconhecer vários modelos de ações e reações em sua grande maioria automáticas, para não dizer irracionais. Um dos primeiros passos para sair do estado de “vitimização” é reconhecer que o sofrimento não é causado pelo outro, mas pelas carências pessoais não supridas. Segundo o terapeuta, a técnica de Comunicação Não Violenta (CNV) seria uma das formas do indivíduo respeitar o espaço do outro sem que este invada o seu espaço.

Segundo o autor, “é melhor primeiro ter compaixão e amor apaixonados por mim e depois tenho compaixão e amor apaixonados quando os outros piram”. Em sua análise, ceder às vontades e desejos do outro é uma forma de violência que anula e oprime, levando muitas vezes ao ódio.

“Nessa cultura educada, o consentimento fingido permeia todas as áreas da vida. Há pessoas que dizem que irão a um compromisso, mas não aparecem, fazem promessas e depois as quebram e fingem ouvir, mas mentalmente estão em outro lugar.”

Para que a CNV ocorra de maneira natural é necessário duas características essenciais: presença e assertividade. Assim, da próxima vez que aquela amiga lhe perguntar sobre o peso dela, você não precisa mentir, dizendo que ela está ótima ou ser maldoso e chamá-la de gorda. Olhe para ela e diga o quanto gosta dela e que você está preocupado com sua saúde. Mostre empatia com sinceridade e não simpatia por dever. “Não Seja Bonzinho, Seja Real” demonstra que entre a guerra dos extremos do cotidiano, às vezes, é melhor pegar o caminho do meio.

 

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

NÃO SEJA BONZINHO, SEJA REAL –
COMO EQUILIBRAR A PAIXÃO POR SI COM A COMPAIXÃO PELOS OUTROS

Título original: Don’t be Nice, be Real – Balancing Passion for Self with Compassion for Others

Autor: Kelly Bryson
Tradução: Soraya Freitas
Editora: Madras
Ano: 2009

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“Tubarão” e a recordação do medo como circunstância inerente ao homem

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Se o leitor perguntar quais foram os filmes que me levaram para este apaixonante vício cinematográfico, com certeza Tubarão vai estar no topo da lista. Ainda tenho lembranças daquelas infinitas e vazias tardes em frente à TV e o dia em que não me movi durante duas horas – algo bastante raro para uma criança entre seus sete e oito anos. Naquele nível máximo de simbiose com o sofá, estava boquiaberto com a cena de uma bela loira sendo arrastada violentamente por alguma coisa no mar. Entre seus gritos suplicantes por ajuda, uma trilha sonora angustiante ia, pouco a pouco, tomando conta do ambiente: aquele era o prenúncio da morte. E tudo nos 10 minutos iniciais. – Nossa! Pensei, fascinado e paralisado – Esse é dos bons! Neste dia experimentei, inconscientemente, toda a força do cinema hollywoodiano. Mal sabia que estava diante de um clássico que iniciaria uma era e revelaria um dos mais talentosos e criativos diretores de todos os tempos: Steven Spielberg. Sem dúvida nenhuma comecei com o pé direito.


Mas, segundo palavras do seu criador, “Tubarão é um divertido filme de se ver, mas não é tão divertido de se fazer”. Baseado no best-seller de Peter Benchley, o roteiro adaptado, escrito a quatro mãos, foi entregue a Spielberg, visto como um jovem promissor, que tinha no currículo somente alguns curtas e um filme feito direto para a televisão. Logo, se qualquer coisa desse errado não seria tão difícil achar o culpado. Mas a maior dor de cabeça do diretor, além do prazo e orçamento estourados, foi o protagonista do longa: Bruce, o tubarão mecânico construído para o filme, que teimava em não funcionar durante as filmagens. Há várias imagens na internet dos momentos de descanso da equipe enquanto o temperamental Bruce ficava cercado por mecânicos. Outro que tirou Spielberg do sério foi John Willians, responsável pela trilha sonora. Com os prazos no limite, Willians teve dificuldades em fazer o jovem diretor acreditar no seu trabalho final. Quando o músico tocou pela primeira vez o que havia vislumbrado para anunciar os ataques, Spielberg acreditou que aquilo era uma piada. Foi preciso ele ouvir uma série de vezes para entender que ali estava a alma e, posteriormente, a marca registrada de seu trabalho.


Prontos para a estréia, mas não certos do sucesso, Tubarão chegou aos cinemas em 1975 com toda equipe receosa que a audiência caísse na gargalhada ao ver o grande peixe mecânico. Ledo engano. Tubarão foi o primeiro filme americano a ultrapassar a marca dos 100 milhões de dólares arrecadados nas bilheterias e forjou o termo blockbuster ao denominar o fenômeno das enormes filas, que dobravam esquinas, formadas por pessoas nas portas dos cinemas para assistirem ao filme. Todas ansiosas para sentir aquele frio na barriga durante longos 120 minutos.


Analisando friamente, Tubarão foi um grande tiro no escuro. Perceba: o enredo se passa em uma pequena cidade litorânea que se vê ameaçada por um grande tubarão branco que só vemos, praticamente, no final do filme. Quais as chances das pessoas embarcarem nisso, principalmente aquelas que, à época, mal conheciam o mar e muito menos tinham noção do que era um tubarão? Filmes de ficção têm seus seres gosmentos, os slashers, têm sua violência escatológica, mas não menos aterrorizante, baseado no lado obscuro dos homens. Mas dizer às pessoas que existe um assassino real embaixo das águas parece realmente um exagero. Ou não?

Recentemente resolvi embarcar nesta montanha russa novamente, queria observar se toda a minha fascinação pelo filme era devido a minha larga imaginação infantil ou se realmente o brilhantismo do longa ia me agarrar pelas pernas mais uma vez. Bem, constatei que o filme está longe de ser datado. Tudo nele é como um complexo quebra-cabeça onde é difícil imaginar como seria o produto final se faltasse uma das peças. Claro que Bruce não é tão verossímil assim depois de uma reprise, mas depois de mais de sessenta minutos de tensão, quando ele resolve aparecer você já está acreditando que aquele robô desengonçado é um temido assassino dos sete mares. Antes do apoteótico final, ao qual ele “sobe” em cima do barco, demonstrando quem é que manda naquele pedaço, ficamos realmente aterrorizados, porque simplesmente na maior parte do tempo só vemos a calmaria das águas sendo cortada por sua amedrontadora barbatana.

E a história nos permite, mesmo com um cenário tão improvável à época para os telespectadores, uma ligação. Martin Brody (Roy Scheider), o protagonista, decide aceitar o emprego de xerife da cidade litorânea de Amity com o intuito de fugir da violência das grandes metrópoles. Sua maior preocupação no novo emprego é em controlar brigas de vizinhos e garotos malcriados. Até o dia que encontram o corpo de uma jovem destroçada na praia. A sua luta se dá em duas frentes, se fazer acreditar diante daqueles que prometeu proteger de que algo maior os ameaça e não permitir que tamanha violência chegue à sua família. E, ao contrário de filmes de assassinos, onde existe um grupo específico que é perseguido, em Tubarão há algo que ataca indistintamente, de crianças a cães (algo raro de acontecer até em filmes do gênero).

Tubarão não deixa de ser o velho e conhecido bicho-papão ou, para nacionalizar mais, o homem-do-saco. Ele está sempre à espreita, como nossas mães e tias sempre fazem questão de lembrar, embaixo das nossas camas, dentro do guarda-roupa ou escondido em um canto escuro da casa. É o medo mais primitivo do ser humano. Não vemos, mas sabemos que ele nos vê e está lá, só basta um deslize para ele conseguir o que quer: pegar eu e você. A mensagem do filme é clara: a paz e a segurança são uma utopia social, criada pelos homens. O que existe é um pequeno véu de momentânea tranqüilidade. E o terror aqui é mais profundo e incontrolável do que aqueles que vemos pela TV nos noticiários, porque ele é natural. É um aviso da natureza lembrando que fazemos parte dela, e que além das leis racionais que seguimos, existe uma maior que nos rege. A música tema aterroriza por anunciar a violência, mas essa mesma violência chega sem avisos, sem trilha sonora, na vida real não vemos e nem ouvimos quando ela vem. Ela simplesmente desaba sobre nós. E quando, no filme, o homem decide tomar as rédeas da situação, indo à caça do monstro, a história revela que por mais que sejamos racionais nunca estamos preparados para enfrentar algo além da compreensão humana. A cena em que o experiente caçador Quint (Robert Shaw) é devorado vivo diante dos seus colegas de barco é uma exemplificação da reação humana diante dos desastres naturais, aqueles que o homem por séculos tenta entender, controlar, dominar… e não consegue. O erro é tentar racionalizar tais ações, o que pode levar a loucura; julgamos tudo isso violento, mas apenas tomando como parâmetro nossa própria concepção do mundo.

No primeiro rascunho do roteiro, a natureza vencia ao final. Os três caçadores sucumbiam diante da fome do grande tubarão branco. Produtores não gostaram e pediram mudanças, estas quais foram filmadas e aplaudidas durante as sessões de cinema. Depois de tanto sangue derramado, todos queriam vingança, queriam se livrar daquele medo incontrolável que permeava suas mentes. Os telespectadores têm a necessidade de sair do cinema com a sensação de segurança, que ao final tudo vai acabar bem, sempre. E isso foi dado ao público, que saiu satisfeito em ter seu medo dissolvido com a coragem e inteligência do homem representado pelo protagonista. Porém, observar os dois sobreviventes nadando, ao final, na imensidão do mar, acaba por deixar uma mensagem mais sutil. Ainda somos pequenos diante da grandeza da natureza. O mar acaba se tornando símbolo dos nossos maiores medos: imenso, desconhecido, cheio de possibilidades. E sobreviver mergulhado nele é uma batalha cruel, travada constantemente por qualquer coisa viva.

Spielberg voltaria ao tema décadas depois com Jurassic Park, onde, claramente, a sensação de controle é colocada como uma mera ilusão. Mas Tubarão, junto com Os Pássaros, de Hitchcock, é uma das muitas representações do medo que Hollywood soube tão bem massificar; o caso aqui é da natureza versus o homem, o terror mais primitivo, talvez o primeiro, e cada vez mais distante do nosso “seguro” cotidiano, mas que vez ou outra o cinema ou a própria natureza nos trata de recordar.

 

FICHA TÉCNICA

TUBARÃO

Título Original: Jaws
Direção: Steven Spielberg
Roteiro: Peter Benchley &Carl Gottlieb
Elenco: Roy Scheider, Robert Shaw, Richard Dreyfuss
Produção: David Brown & Richard D. Zanuck
Fotografia: Bill Butler
Ano: 1975

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Jovem & Bela: a descoberta da sexualidade e a vida que extrapola os rótulos

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Após perder a virgindade nas férias de verão, a jovem Isabelle (Marine Vacth) inicia uma vida dupla, prostituindo-se sem que ninguém à sua volta desconfie. Desde a primeira cena do filme, é hipnotizante a beleza da protagonista do longa francês, e, com o decorrer da história de Jovem & Bela, o espectador é enlaçado por sua intrigante e curiosa personalidade, que mais parece uma esfinge enigmática que, presume-se, a qualquer momento quer devorar quem desafia suas ações.

Muitas das críticas que se observa sobre o filme focaram na curiosidade sexual da jovem e sua aparente incoerência dos atos com o ambiente em que ela vive. Desde o início é ressaltado a boa condição financeira e a união familiar como barreiras para qualquer tipo de ação marginal ou, no outro extremo, o vazio de significado que o sexo adquiriu na sociedade contemporânea, principalmente entre os jovens – aqui vislumbrado por alguns como uma fuga da melancolia da vida. Sem desmerecer tais perspectivas, acredito que François Ozon, diretor e roteirista do longa, julga menos o sexo e mais a cultura masculina dominante.

Isabelle traz no rosto os traços delicados de um anjo e seu comportamento contido e polido só esconde um espírito perspicaz e curioso. Em nenhum momento há uma expressão do que se julgaria imoral ou muito menos algo que forneça informações sobre seus desejos, bem diferente da protagonista em Ninfomaníaca, polêmico filme de Lars Von Trier. A cena no qual ela, na praia, se certifica do seu isolamento para fazer topless parece exemplificar o caráter de Isabelle – seus pensamentos e seu corpo não são e não devem ser públicos. Entre essa dicotomia e o relacionamento familiar esboçado, o incômodo que ficou ao final do filme foi: qualquer um(a) pode ser “puta”!  A mais antiga profissão, como dizem, pode ser exercida por sua irmã, mãe, tia. Se a única pergunta que martelar na cabeça do telespectador é “por quê?”, se entra num discurso infinito moralista com poucas e limitadas respostas; para ampliar a discussão, principalmente em uma obra de ficção, tem que se fazer um questionamento tão intrigante quanto o filme propõe: – Por que não?

Em perspectiva, o choque se dá por dois motivos: o personagem é feminino e se prostitui. Agora, tire o foco de Isabelle e coloque as mesmas experiências em Viktor, seu irmão caçula, igualmente jovem e belo e até poderíamos ter duas faces da mesma moeda, mas em uma sociedade machista a história não é bem assim. Ozon delineia isso ao filmar a masturbação feminina e masculina, as primeiras aventuras sexuais dos dois irmãos, ambos expostos pela perspectiva masculina, encarados com espanto no primeiro e com normalidade no segundo. Exemplo de uma sociedade patriarcal que dá o poder de dominar e exercer o domínio sobre o seu sexo e do outro, definindo papeis com regras pré-estabelecidas desde o momento que o pai e mãe descobrem o gênero da criança que vai nascer. Está arraigado os papeis esperados por cada um, sem indagações ou restrições e Isabelle parece perceber isso e busca ir além da compreensão racional.

Não se sabe se foi a experiência de ver a separação dos pais ou perceber antecipadamente as pressões que existem sobre o gênero feminino um possível estopim de seus atos, talvez a simples percepção das restrições absurdas sobre seu sexo, proibindo-lhe de utilizá-lo sem rótulos, a tenha desafiado ir contra eles. E o primeiro adjetivo a cair é o de virgem; sua primeira experiência sexual é seca, física, sem qualquer emoção envolvida, a experiência pela experiência, resumindo, masculinizada.  Isabelle salta todo o drama e pressão que a cultura designa ao gênero feminino, de um prazer obrigatoriamente relacionado a ligações sentimentais, como sua melhor amiga retrata. Ao homem permite-se o sexo pelo simples prazer do ato, à mulher o prazer sexual deve vir imbuído de paixão e entrega, caso contrário, se ela quiser o gozo no mesmo patamar físico que o homem consegue só restará um rótulo para ela, o de prostituta.

No entanto, a escolha da prostituição não surge como um grito de revolta e sim de poder. Infelizmente nossa cultura não ensina e muito menos acolhe mulheres que busquem seu prazer, e, na minha leitura do filme, Isabelle sabe disso. Prostituir-se para ela é exercer o poder de tudo que a natureza lhe deu ao ser fêmea; cobrar por isso seria uma busca de balancear um jogo de regras e valores. A ilusão é daquele que se acha dominador, mas em um contexto onde não há viés para abusos sociais, Isabelle é quem dita às regras, seu corpo tem um preço e um tempo delimitado para uso. Se existe um vazio pós-coito, todos são expressos pelos frustrados homens que passam por usas mãos: o casado infiel, o fetichista e o senhor, que no fim da vida, se apaixona pelo alvorecer da sua juventude. Cobrar é uma forma de a protagonista sentir e mostrar quem tem poder, apesar de a prostituição ser uma linha tênue para isso, porém o fato só coloca em perspectiva quem é que dita as regras.

O resultado, sutil, é aquela que só a ação além da inércia pode proporcionar àqueles que ousam além dos papeis sociais impostos. A primeira está no sepultamento da imagem materna: Isabelle é uma desconhecida para a mãe, no entanto, a jovem parece enxergar os pensamentos da progenitora, algo que causa espanto na mesma. Já para o namorado de Isabelle, ela é uma incógnita. No seu desespero de macho, não há meios de surpreender uma pessoa, na cama ou fora dela, que sabe tudo sobre como manipular os corpos e os sentidos. O embate final, entre Isabelle e uma das mulheres traídas, não aponta culpados, mas um vencedor.

No fim, François Ozon criou um filme sobre a descoberta da sexualidade e dos prazeres e dissabores da vida do que convencionamos chamar de jovem-adulto. Ao contrário dos diversos filmes juvenis com experiências transbordando drama e paixão, onde suas vidas são folhas soltas no rio do destino, em Jovem & Bela temos uma adolescente que decide ter a razão no comando. Cobaia de suas próprias experiências ela aprende, com o racionalismo de xadrezista, como funciona sua mente e, principalmente, a do outro. E isso tem um preço que não é moralista e sim, receoso. Ao ter seus atos descobertos, todos à sua volta ficam com medo, medo este que pode envolver o telespectador ao final, que procura respostas e não encontra… e não vai encontrar enquanto estiverem perguntando-se: por quê?

 

FICHA TÉCNICA

JOVEM & BELA

Título Original: Jeune & Jolie
Direção & Roteiro: François Ozon
Elenco: Marine Vacth, Géraldine Pailhas, Frédéric Pierrot, Fantin Ravat, Johan Leysen, Charlotte Rampling, Nathalie Richard
Produção: Eric & Nicolas Altmayer
Fotografia: Pascal Marti
Ano: 2013

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A Era da Loucura: a felicidade como meta quase impossível

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“É preciso reencontrar a coragem e a humildade de Sísifo, que não exige recompensa, mas sabe transformar qualquer atividade em sua própria recompensa.”

Michael Foley

Seria difícil, neste áureo século XXI, encontrar uma única pessoa que não esteja à busca daquele sentimento mais profundo, que traz satisfação e conforto, chamado felicidade. No entanto, com países colocando-a em sua constituição como um direito do cidadão – e que logo o Brasil deve fazer parte -, você não precisará procurar mais por essa, até então, abstrata condição; a FELICIDADE (isso mesmo, agora com letras maiúsculas), com forma e espaço a serem preenchidos, é exigível tal qual uma indenização por perdas e danos. E que seja paga com juros!

É essa transformação de paradigmas e prerrogativas, que o filósofo irlandês Michael Foley discute no livro “A Era da Loucura – Como o mundo moderno tornou a felicidade uma meta (quase) impossível”. Não se engane com o título. Para aqueles que adoram livros de autoajuda, o autor é um crítico ferrenho a este tipo de literatura, onde há variáveis passos a serem seguidos para alcançar os mais absurdos objetivos. “A única receita é que não há receita”, afirma ele.

Os que têm ojeriza à filosofia podem ter uma agradável surpresa. Com uma narrativa leve e cômica, Foley acaba trazendo graça para o que seria trágico e, por muitas vezes, coloca as próprias ações cotidianas em cheque. Buscar o entendimento através das próprias experiências é o melhor meio, segundo o autor, de chegar a um equilíbrio racional do querer e do poder.

Em cada capítulo, uma desconstrução. Foley fornece não só a lógica, mas diversas informações esclarecedoras sobre temas como trabalho, amor e envelhecimento, que tornam o senso comum um emaranhado ridículo de ideias manipuladas e manipuladoras. Em uma entrevista à revista Galileu, Foley desmistifica, por exemplo, a questão da transcendência nas religiões:

“Transcendência é uma perda de si mesmo, uma imersão de si em uma unidade maior – e a sociedade moderna prefere tomar o atalho à transcendência por meio de álcool e drogas. Quanto à espiritualidade, não-crentes não devem permitir que isto seja reivindicado pela religião. Também pode ser uma espiritualidade ateia: essencialmente, um sentimento de admirar o milagre da existência consciente na galeria das maravilhas que é o universo.” 

Para o autor, a fuga de responsabilidades está tornando a sociedade infantil e individualista. Existe uma evasão progressiva das obrigações e uma busca por riqueza inesgotável, situação inversa pelo qual nossos pais e avós passaram. “O novo infantilismo tem contribuído para uma sensação cada vez maior de autovalorização e prerrogativa de direitos, e uma sensação cada vez menor de autoconhecimento e obrigação.”

E autoconhecimento é uma das palavras chaves do livro. Um dos principais objetivos do autor é tornar o leitor consciente do que ocorre à volta. “Se a ignorância é o problema, a solução deve ser o conhecimento. Portanto, percepção é redenção. Compreensão é salvação”. E para não dizer que Foley não cedeu nenhuma receita para encontrar ou perceber essa tal felicidade, ele dá um conselho peculiar: Meditação. “O objetivo da meditação não é a quietude e a indiferença, mas a consciência, a prontidão, a clareza de propósito.”

Receita simples de ouvir, mas difícil de colocar em prática. Mas o próprio Foley rebate com maestria a nossa postergação de melhorarmos nosso ser e o pequeno universo que nos cerca; assim, “tudo o que é excelente é raro e difícil de alcançar”. É… ninguém disse que seria fácil.


FICHA TÉCNICA DO LIVRO

A ERA DA LOUCURA – COMO O MUNDO MODERNO TORNOU
A FELICIDADE UMA META (QUASE) IMPOSSÍVEL

Título original: The age of absurdity – Why modern life makes it hard to be happy
Autor: Michael Foley
Tradução: Eliana Rocha
Editora: Alaúde
Ano: 2011

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Manoel e o Concurso

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O tempo era uma lesma e Manoel se arrastava com ela. Suspirou, bocejou, conteve sua vontade de olhar par o lado para não levar uma advertência: poderia ser desclassificado automaticamente. Como se ao mero sinal suspeito de movimento, um botão fosse apertado e sua cadeira pudesse cair em um infinito buraco negro. Olhou a prova, tinha que voltar sua atenção para ela.

“Assinale a alternativa que corresponda ao nome do atual Secretário da Fazenda”

Pensou…se perguntassem o nome do camisa 5 de qualquer time da primeira divisão responderia sem erro. Aliás, era bom o seu time se esforçar para sair da segunda divisão. Talvez devesse mudar de clube, não aguentava mais sofrer, “Vou escolher um time que só me traga alegria”, decidiu Manoel. Gostaria de ter satisfação, pelo menos no futebol. “Para de pensar em jogo mané, presta atenção na prova.”

“O atual Governo criou um financiamento para os Estado brasileiros chamado”

                         ( ) PAC     ( )Bolsa Família  ( ) Casa Própria

“Essa eu sei”, Manoel riu preenchendo o círculo. Lembrava-se muito em quando viu a notícia no jornal da manhã, do almoço, do jantar e da meia-noite. Brincou com a sigla:

Pague As Contas, seu programa pessoal. Mas isso ia mudar, porque iria passar no concurso. Receberia mil e quinhentos reais, fora os descontos, e não trabalharia muito. Pensou em como gastar todo esse dinheiro: primeiro financiaria um carro e, depois, uma casa. E, talvez, tivesse que pedir Joana em casamento. Sete anos juntos e suas desculpas para não se ajuntarem sempre envolveram dinheiro, agora não teria para onde correr. Pensou em Joana…namoravam a tanto tempo que ele não saberia viver sem ela. Sua presença era como uma planta que tinha suas raízes nele, difícil de soltar, na verdade não queria. Não reafirmava seus sentimentos com a mesma frequência do início do romance, mas quando aqueles olhinhos amendoados imploravam, ele dizia “Eu te amo”, palavras que eram como chuva sobre a planta que ele não deixava morrer.

O fiscal da sala se levantou e foi até o quadro negro e escreveu: 16:00. “Se eu quiser já posso entregar isso e ir embora”, e ficou passando as folhas da prova entre os dedos. Sentiria falta dos amigos do seu antigo emprego. Lembrou das piadas, das brincadeiras, da cerveja gelada no fim de tarde. Até do chefe sentiria saudades, Sr. Capixaba era muito gente fina com ele.

De soslaio olhou para as carteiras que o cercavam. Os outros candidatos pareciam concentrados, “Com certeza já estavam estudando há uns dois anos para este concurso”, a tristeza caiu dissimuladamente. Manoel tinha começado a estudar há menos de dois meses, exatamente no dia que tomou conhecimento do edital. Pagou até cursinho, faltou a algumas aulas, horas de estudos que pesavam em sua consciência agora. Suspirou e bocejou. “Deve ser umas quatro e quinze agora, o jogo do domingão já deve ter começado…” pensou, recobrando o entusiasmo. “Zezinho Canhoto deve meter uns três gols no adversário hoje, mudo de time se isso não acontecer”.

O que Manoel tinha nas mãos agora era só papeis, repassou as questões rapidamente, para não perder mais tempo, “Nesse aqui acho que não vai dar para passar não”, levantou, entregou a prova e o gabarito, pegou o celular e saiu. “Da próxima vez eu estudo mais e passo, prometo. Joana espera mais um pouco”. Fez a promessa em um turbilhão de pensamentos, que logo a levaram para um espaço longínquo. Manoel já estava ligando para os amigos, queria saber quanto estava o placar do jogo.

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Encontros & Desencontros: a melancolia e a fragmentação de ser adulto na contemporaneidade

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O segundo filme de Sofia Coppola continua a explorar os meandros dos espaços infinitos que não permitem a aproximação e a completude das pessoas com elas próprias e com aqueles que as cercam. Depois da sensação de deslocamento e insegurança vista pelos olhos das adolescentes Lisbon, em Virgens Suicidas, agora temos como acréscimo a melancolia constante e o sentimento de fragmentação do adulto contemporâneo em Encontros e Desencontros.

 O filme estende as questões sobre a existência humana e parece brincar com elas, porque, independente de sermos jovens ou adultos, permanecemos com os mesmos medos e inseguranças, a diferença é que em uma fase temos todos os sonhos e esperanças que o mundo comporta e na outra só resta o pragmatismo contemporâneo para justificar a existência humana. Pode haver razões para a irracionalidade dos exageros e arroubos das emoções juvenis, no entanto, o amadurecimento do ser humano surge imposto em sua existência, lhe cobrando, muitas vezes, ações incongruentes com suas experiências… não lhe permitindo, simplesmente, experimentar essa vida em todas as suas possibilidades.

A história segue Bob Harris (Bill Murray), decadente ator que está gravando um comercial em Tókio e seu encontro com Charlotte (Scarlet Johansson), jovem recém-casada, negligenciada pelo companheiro, um fotógrafo workaholic. São estrangeiros em um país onde tudo que os cercam não reflete nem o seu exterior e, tão pouco, seu interior. Quando não obtemos eco do ambiente onde estamos, começamos a procurar segurança nas nossas lembranças e pensamentos. No entanto, se este é frágil, surge a insegurança, o medo e a questão: quem sou eu? O que estou fazendo da minha vida?

Bob, Bill Murray surpreendentemente sincero e frágil, não está somente deslocado externamente; o incômodo “interno” é visível em seu intenso olhar, uma mistura de insegurança e procura infantil. Nos primeiros minutos do filme, seus olhos cansados parecem buscar algo que perdeu em algum lugar ou tempo e seu semblante triste é de alguém que não tem esperanças em encontrar “isto” novamente, seus “anos dourados” estão distantes – e o seu emprego o lembra disso constantemente – e agora só existe a melancolia negra e profunda da espera do inevitável.

Já a solidão de Charlotte está na firmação do que construiu até aquele momento em sua vida, resultando no seu precoce casamento. Seus sonhos, desejos e até sua própria personalidade parecem não ter muito valor para o seu companheiro. Então o que vale realmente a pena? Ela está naquela bifurcação da vida onde suas escolhas moldarão o rosto que ela irá encarar todos os dias no espelho – pode ser de alegria, de satisfação, de fracasso ou de tristeza. Em ambos os casos, de Bob e Charlotte, existe uma necessidade latente de “se encontrarem”, mas essa percepção só será possível se ambos forem “encontrados” ou percebidos na sua verdadeira existência, sem máscaras. E em um cenário totalmente estranho, é mais fácil, em toda a sua fragilidade, alguém olhar para você, sem as máscaras de pai, marido ou esposa dedicada; sem essa “vestimenta”, o que resta para explorar é só a essência.

Os dois, apesar de casados, são solitários e seus relacionamentos são mais sociais que sentimentais – em que pese o tempo e o comodismo no que se refere ao casamento de Bob e as expectativas e o medo de fracasso no de Charlotte. Mas basta um momento onde as armaduras estão recolhidas, um estado de presença, sem palavras, na sutileza e a sensibilidade de um verdadeiro olhar, para eles se “perceberem”, no sentido figurado ou literal da expressão. Isso tudo sem apresentações e formalidades, só a naturalidade e a honestidade que surgem inerentemente de uma boa companhia, tão rara nos nossos dias.

Este elo forte entre Bob e Charlote é uma resposta à necessidade de uma conexão verdadeira e única que as pessoas procuram. E em um país estrangeiro esse sentimento pode ser ainda mais forte. Há, com isso, a percepção de que as pessoas que deveriam se importar, escutar e apoiar você – no caso de Charlotte há o marido e a irmã; e, no caso de Bob, a esposa – não atendem às expectativas, e quando tentam não se dão ao trabalho de entender ou simplesmente ouvir… só resta o julgamento e a incompreensão. Então, o sentimento interno é de realmente estar falando outra língua. É doloroso quando, ao telefone, a mulher de Bob indaga a ele – “eu preciso me preocupar com você?”, e ele responde – “só se você quiser”; resumindo, o relacionamento deles toma forma na praticidade de uma escolha, como o tipo de carpete do escritório – mais fácil essa decisão ao invés de procurar entender o comportamento de quem está do seu lado. No entanto,  é uma escolha o modo como construímos as relações e as mantemos.

No outro extremo, Charlote busca de todas as formas entender o que está acontecendo com seu casamento e um dos conselhos que ouve é de um “guru” de auto-ajuda que justifica os acontecimentos a nossa volta com um determinismo conformista, onde, segundo ele, a vida teria sido planejada anteriormente em outro plano. Este pensamento é momentaneamente acalentador por não apontar culpados e nem exigir uma ação de mudança. Mais à frente, em sua prática de Ikebana, ela encontra a resposta que procurava e sua maior lição: no final, é você que decide como “construir” tudo; a beleza está em pensar na melhor maneira de encaixar as peças, com paciência e coerência, para que o resultado seja o mais perto que você conscientemente buscou, mas sempre unindo sua sensibilidade com sua racionalidade.

Quando os dois personagens colocam em cheque suas experiências, é perceptível que ambos começam a caminhar para um estado de sujeitos de ação. Bob, na sua maturidade e amargura, diz – “Quanto mais você sabe quem você é e o que você quer, menos deixa que as coisas o perturbem”, e ela na sua insegurança e sabedoria responde – “Mas eu não sei quem eu sou”. Quando Bob definiu sua personalidade, ele colocou muros à sua volta, não permitindo a possibilidade que houvesse mudanças em sua personalidade. É como se tornar cobaia de algum experimento de Pavlov, sempre respondendo aos mesmos estímulos até a morte. Charlotte, desde o início, é inconformista, ainda existe aquela fagulha de esperança que a coloca em movimento e, conseqüentemente, tem forças para tirar ela e Bob do estado letárgico.

Ao final percebe-se a diferença no semblante de Bob, seu ar de satisfação não por ter tido aquela experiência, mas por permitir-se vivê-la. A última cena de intimidade de ambos, abraçados no meio da multidão, com o primeiro beijo e palavras ditas no pé do ouvido – onde só eles sabem o que foi dito, em uma escolha sábia da diretora – é um grande modelo do amor moderno. É esse o recado que Sofia Coppola deixa, com um pouco mais de esperança que em Virgens Suicidas… a vida é como uma ikebana. Outra pessoa que olhar vai enxergar algo estranho, meio sem nexo, uns vão achar bonito e muitos outros vão julgá-lo feio e desengonçado, mas só quem montou sabe como foi difícil harmonizar os detalhes e deixar todo o conjunto belo no final. Talvez, com sorte, alguém olhe para o que você construiu, pare e tenha o mesmo sentimento de completude e compreensão, e a mensagem que Encontro e Desencontros deixa é que sempre tem, é só dar uma olhada mais cuidadosa à volta.


FICHA TÉCNICA DO FILME

ENCONTROS & DESENCONTROS

Título Original: Lost In Translation
Gênero: Drama
Direção e Roteiro: Sofia Coppola
Elenco: Bill Murray, Scarlett Johansson, Giovanni Ribisi, Anna Faris
Produção: Sofia Coppola & Ross Katz
Fotografia: Lance Acord
Lançamento no Brasil:  23 de Janeiro de 2004
Duração: 101 minutos

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As Virgens suicidas: juventude sufocada por escolhas que não são suas

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Na primeira cena do filme As Virgens Suicidas a câmera passeia por uma rua comum a qualquer cidade dos EUA.  Belas casas, com jardins bem cuidados e árvores frondosas na frente – uma representação banal do modelo familiar americano. Há uma tranquilidade presente no cenário, uma paz constante onde todos são intérpretes desta felicidade idílica. A câmera para diante de uma das casas, não é qualquer uma, nela reside os Lisbons.

E, como o título sugere e o narrador informa logo no início da trama, foram ali que as irmãs Lux (Kirsten Dusnt), Mary (A.J. Cook), Cecilia (Hanna Hall), Therese (Leslie Hayman) e Bonnie Lisbon (Chelsea Swain) tiraram a própria vida em menos de um ano. Numa paisagem de tanta perfeição, vislumbraremos suas rachaduras.

Apaixonado pelas vizinhas da frente, Tim (Jonathan Tucker) tenta, junto com um grupo de amigos, decifrar o grande mistério por trás da trágica morte das garotas. Onde foi que tudo começou? Por que elas fizeram isso? Existem culpados? Mas, como toda tragédia, existem mais perguntas do que respostas. Sofia Coppola além de inserir uma aura de mistério em torno dos Lisbons, também parece querer pincelar tudo com toques de uma tragédia grega.

As irmãs quando surgem, passeiam languidas e etéreas, ninfas aquém do mundo e dos simples mortais que a cercam. É fácil entender e logo compartilhar da fixação dos jovens pelas meninas; as adolescentes são filmadas com um mistério nos gestos, nos sorrisos acompanhados de um olhar que parecem não fixar em nada e sim trespassar.

Há uma sensualidade natural e ingênua permeando suas personalidades intrigantes. São seres incomuns para a época, crianças adentrando à força o bosque escuro e desconhecido dos adultos. Infelizmente, os pais não enxergam isso, percebem que mudanças estão ocorrendo (mas no exterior).

O perigo está fora, então é melhor manter todos seguros dentro dos muros do lar. Inconscientes que a mudança real é interior, de dentro para fora. Em uma metáfora, seria como a virgem da caverna e o dragão fossem a mesma pessoa. A virgem se sacrifica para o monstro. Devorada por ele, não deixa de existir, mas simplesmente faz parte dele. Os cavaleiros, que seriam os pais, pensam estar guerreando contra o mal, defendendo os fracos, quando, sem saber, não estão defendendo as filhas do mal e sim guerreando contra elas.

As Virgens Suicidas é um retrato amargo de uma juventude sufocada por escolhas que não são suas. Como a história se passa na década de 1970, o adolescente é um personagem novo na composição familiar; o que ele pensa, o que quer ainda é uma novidade, e por essa invisibilidade não são ouvidos. Antes, só tinham que seguir os sonhos e planos dos pais, modelos prontos para serem copiados. A depressão ainda não é uma palavra corrente, e muito menos reconhecida pela sociedade. Assim, Sofia Coppola praticamente cria uma ode a esta doença que permeia não só aos jovens, mais adultos, velhos e até crianças no século XXI. E tudo em As Virgens Suicidas é melancólico, é poético, é sensual porque a juventude remete a tudo isso; Ícaros prontos para queimar suas asas em desobediência aos pais, com o único objetivo: a liberdade e os sonhos, o desejo de fugir a regra, buscar a plenitude de ser único.

Este foi o primeiro filme da americana Sofia Coppola, antes disso carregou por um longo tempo o peso das críticas negativas por sua participação como atriz no filme O Poderoso Chefão III (The Godfather: Part III), em 1990. E ser filha de um dos mais importantes diretores de Hollywood criou uma grande rejeição a sua primeira incursão importante à frente das telas, justificando sua presença em uma produção tão importante mais por nepotismo do que talento. Mas, por esses acasos do destino, se não fosse este contratempo talvez nunca conhecêssemos a verdadeira Sofia, que, quando atrás das câmeras, demonstra segurança e sensibilidade únicas, a ponto de se distanciar do estilo de seu pai.

No seu primeiro filme, Sofia já traz na sua estrutura vários aspectos que seriam freqüentes em sua filmografia: a introspecção, a inércia da vida, a solidão e o contraponto, a diferença que o outro pode fazer nas vidas dos seus personagens solitários.

Como a poesia de Carlos Drummond de Andrade, para Sofia não importa o caminho e sim a pedra que impede o trajeto, ela tem a escolha de seguir por algum meio ou parar e desistir. Em As Virgens Suicidas, infelizmente as Lisbons escolhem a última alternativa.

 

FICHA TÉCNICA

 

AS VIRGENS SUICIDAS

Título Original: The Virgin Suicides
Gênero: Drama
Direção e Roteiro: Sofia Coppola
Elenco: A.J. Cook, Anthony DeSimone, Chelsea Swain, Danny De Vito, Giovanni Ribisi, Hanna Hall, Hayden Christensen, James Woods, Jonathan Tucker, Josh Harnett, Kathleen Turner, Kirsten Dunst, Leslie Hayman, Michael Paré, Scott Glenn
Produção: Chris Hanley, Dan Halsted, Francis Ford Coppola, Julie Costanzo
Fotografia: Edward Lachman
Ano:1999

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