Blade Runner 2049: identidade, individualidade, autoconhecimento

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Durante muitos anos, mantive viva uma lembrança específica de um momento com meu pai: um olhar de reprovação e um breve discurso de repreensão. Era uma memória marcante que voltava (ainda volta) em momentos específicos e segue me influenciando enormemente. No entanto, há algum tempo, me dei conta de que havia algo errado: como ela envolvia um incidente escolar e meu pai morreu quando eu tinha cinco anos de idade, não há como aquilo ser real – ao menos, não da forma como reside em minha mente. Apesar disso, ela ainda me move e forma elementos da minha visão de mundo. Assim, a pergunta é: faz diferença o fato de ela ser real ou não? De certo modo, todas as nossas memórias não são edições subjetivas e mutáveis de acontecimentos reais – e, consequentemente, nossas personalidades não são fruto de fatores de natureza fluida?

Assim como o original fazia em 1982, Blade Runner 2049 é um filme mais interessado em discussões deste tipo – identidade, individualidade, autoconhecimento – do que em contar uma historia particular, embora a trama desta continuação seja bem mais complexa do que a de seu antecessor. Ambientada 30 anos depois dos acontecimentos vistos no trabalho de Ridley Scott, a produção roteirizada por Hampton Fancher e Michael Green acompanha o blade runner K (Gosling), cuja função principal é encontrar e exterminar replicantes de gerações anteriores que fugiram e se passam por pessoas de carne e osso. Depois de mais uma missão, porém, ele encontra uma caixa contendo uma ossada, o que leva sua chefe, a tenente Joshi (Wright), a enviá-lo em uma caçada que pode trazer impactos consideráveis para a humanidade.

Fonte: goo.gl/DfKkvL

Funcionando como uma expansão orgânica do universo apresentado em 1982, Blade Runner 2049 leva o espectador para fora da Los Angeles escura, chuvosa, poluída e superpopulosa que conhecíamos, apresentando-nos a novos locais que, mesmo completamente distintos em seus designs, mantêm a atmosfera densa e melancólica com a qual já havíamos nos habituado. Assim, desde as planícies extensas (e sem cor) sobrevoadas pelo protagonista até a metrópole cujos módulos residenciais remetem a cubos de lixo compactados amontados uns sobre os outros, o filme ressalta como, passadas três décadas, aquele mundo segue hostil e impessoal.

Da mesma forma, K e seu sobretudo com golas erguidas continuam a remeter ao tipo de anti-herói amargurado, com raízes no noir, que Harrison Ford já havia encarnado com tanta propriedade, ao passo que outros arquétipos do gênero, como a femme fatale e a “prostituta com coração de ouro”, seguem representados por personagens como Luv e Joi (e a capa transparente usada por esta última, em certo momento, é uma referência clara à Zhora do primeiro filme).

Fonte: goo.gl/4W5AbT

Fotografado com brilhantismo por Roger Deakins – o que não é surpresa alguma, diga-se de passagem -, o longa não se preocupa em seguir tão fielmente os elementos estéticos do noir, afastando-se constantemente deste sem sacrificar, com isso, sua atmosfera. Assim, mesmo quando a paleta se torna mais quente (como no intenso laranja da Las Vegas que abriga parte do terço final da narrativa), há uma significante dessaturação das cores que impede qualquer traço de alegria de se firmar naqueles ambientes.

Enquanto isso, a trilha de Benjamin Wallfisch e Hans Zimmer é inteligente ao sugerir ecos das composições originais de Vangelis através de uma nota estendida aqui ou um trecho de melodia ali, reservando os temas mais reconhecíveis para pontos-chave da projeção (e aquele que ouvimos na cena final com o personagem de Gosling é especialmente inspirada ao estabelecer uma rima com um dos momentos mais celebrados do anterior).

A escolha do cineasta canadense Denis Villeneuve para comandar o projeto, aliás, se mostra inspirada justamente por permitir que este coloque em prática uma de suas especialidades: a criação de um clima constante de apreensão que toma conta do espectador mesmo quando este não sabe exatamente o que deve temer – algo que enriqueceu obras como Os Suspeitos e A Chegada. O diretor, contudo, compreende estar lidando com uma história cujas origens já são celebradas e trazem expectativas próprias, sendo admirável notar como não se rende ao próprio ego e se preocupa em manter uma importante continuidade entre os filmes, desde o ritmo cadenciado da narrativa até referências específicas, como o plano-detalhe do olho que abre a projeção até passagens envolvendo o scanner que permite investigar detalhes de imagens, passando por figuras de origami e até mesmo por algumas empresas que eram vistas em anúncios naquela Los Angeles e que, ainda que já não existam mais na vida real, seguem vivas nesta versão de 2049.

Fonte: goo.gl/SWQMd8

Além disso, Villeneuve consegue espaço para criar sequências marcantes por seus próprios méritos, merecendo destaque o confronto em meio a hologramas, em um cassino abandonado, e, claro, todo o arco envolvendo Joi. Por outro lado, é triste notar como exigências comerciais aparentemente acabam obrigando o cineasta a incluir passagens que soam forçadas na proposta do filme – e a luta que ocorre enquanto ondas derrubam os oponentes é particularmente incômoda neste sentido.

Trazendo seu carisma habitual a um papel que poderia facilmente despertar antipatia no público, Ryan Gosling vive K como um indivíduo que busca ignorar os insultos que o cercam menos por estoicismo do que por condicionamento, ilustrando bem o arco que o personagem atravessa à medida que descobre mais sobre si mesmo e sobre as criaturas que deveria perseguir. Expressando-se com o modo calmo que vem se tornando uma marca registrada do ator (e que por isso é às vezes acusado injustamente de inexpressividade), K é um herói relutante cuja frustração crescente provoca impacto justamente por contrastar com o autocontrole que exibe na maior parte do tempo.

Enquanto isso, Harrison Ford oferece uma das performances mais complexas de sua carreira ao imaginar o Rick Deckard envelhecido como um sujeito cansado cujo exílio auto imposto é ao mesmo tempo uma punição e um gesto de extremo altruísmo – e me atrevo a dizer que a cena em que, ao falar sobre Rachael, ele diz “Seus olhos eram verdes” é um dos melhores momentos que Ford protagonizou no cinema.

Fonte: goo.gl/DH6MZT

Aliás, assim como a personagem de Sean Young era um catalisador fundamental de mudanças no original, aqui o roteiro introduz duas figuras que se revelam acréscimos fabulosos ao universo de Blade Runner, tanto como elemento narrativo quanto temático: a replicante “Luv” (Hoeks) e a “acompanhante virtual” Joi (de Armas). Com nomes já sugestivos por si mesmos, as duas “mulheres” têm suas próprias trajetórias relacionadas à natureza de suas identidades e da percepção que têm de si mesmas, revelando-se mais humanas do que todos os humanos da trama.

“Luv”, por exemplo, é retratada por Sylvia Hoeks como uma replicante que, consciente de sua natureza, é obrigada por sua programação a manter-se fiel ao implacável visionário interpretado por Jared Leto (com menos maneirismos do que de costume, felizmente) ainda que, em certos pontos, tenha claramente uma forte reação negativa ao que este faz contra sua “espécie” – e testemunhar sua luta entre o que julga certo e o que precisa fazer é um dos elementos dramáticos mais eficientes do filme.

Do mesmo modo, a ótima Ana de Armas transforma Joi numa representação ainda mais extrema do dilema vivido pelos replicantes, já que, diferente destes, não possui sequer um corpo que possa sugerir uma falsa humanidade – e, no entanto, o roteiro e a excepcional caracterização da atriz levam o espectador a encarar a personagem como um ser completo, complexo e tocante. Em certo ponto, por exemplo, quando ela consegue sair do confinamento do apartamento de K e “sentir” gotas de chuva em sua pele (ou na representação holográfica desta), é difícil não lembrar do prazer experimentado por Roy Batty em um instante similar de Blade Runner (e que comentei em meu texto sobre o Jovem Clássico). Resgatando também componentes temáticos do lindo Ela, o filme exerce bem seu papel como ficção científica ao empregar suas invenções para refletir sobre questões universais e mesmo filosóficas e existenciais: o amor que Joi sente por K, por exemplo, seria menos real apenas por ter sido resultado de um código de programação? E a resposta de K a esta expressão de amor deveria ser afetada por ter consciência disto?

Fonte: goo.gl/U1cEHE

O que me traz de volta àquela lembrança de infância e ao fato de que, mesmo agora sabendo que não pode ser verdadeira, continua a provocar em mim a mesma reação de antes, já que não posso apagar sua existência da mente. E nem desejaria fazê-lo, já que, de uma maneira ou de outra, teria que levar esta lógica ao seu extremo e eliminar todas as demais – afinal, nenhuma memória mais intensa é realmente objetiva; há sempre um filtro emocional alterando-as e/ou reinterpretando-as.

Mas se há algo que aprendi com o tempo é que isto não as torna menos válidas. Ao contrário: examiná-las de perto e buscar enxergar sua fluidez é um instrumento poderoso e instigante de autoconhecimento. Neste sentido, somos todos replicantes.

 FICHA TÉCNICA


                                       BLADE RUNNER 2049

Diretor:  Denis Villeneuve
Elenco: Ryan GoslingHarrison Ford, Jared Leto
Gênero: Ficção científicaSuspense
Ano: 2017

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Os 13 Porquês (13 Reasons Why): o passo atrás

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(Este texto traz spoilers da série)

A adolescência não detém o monopólio sobre a angústia, mas é certamente dona da maior parte do estoque. É um período que combina opostos de tal maneira que às vezes chega a soar como uma pegadinha maldosa e sádica da Evolução: ao mesmo tempo em que a sexualidade aflora, o corpo se altera radicalmente, trazendo insegurança e vergonha; ao lado da necessidade de aceitação vem, provocado pela imaturidade, o receio constante do embaraço; simultaneamente à descoberta dos próprios interesses vem a obrigação de definir o caminho profissional a seguir pelo resto da vida; e, claro, junto ao primeiro amor vem o primeiro coração partido e a constatação de que ainda não temos todas as ferramentas para lidar com estes. (Algo que, infelizmente, seguirá faltando a uma parcela considerável de adultos.)

13 Reasons Why, série produzida pela Netflix a partir de um livro do norte-americano Jay Asher, sem dúvida alguma compreende isto: acompanhando os estudantes de um colégio secundário, o projeto é estruturado em torno de sete fitas cassete deixadas pela jovem Hannah Baker (Langford), que, divididas em 14 lados (o último encontra-se em branco), trazem a voz da garota explicando os motivos que a levaram a se matar, atribuindo responsabilidades a vários de seus colegas – todos recebendo as gravações completas em um momento ou outro e, portanto, tornando-se conscientes não só do que fizeram, mas também das ações dos demais. Aliás, é ao lado do mais recente destinatário das fitas, Clay Jensen (Minnette), que somos conduzidos pela narração de Hannah à medida que o rapaz, apaixonado pela amiga, revive suas experiências e descobre as feridas emocionais e psicológicas de Hannah.

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Com isso, 13 Reasons aborda questões como bullying, assédio sexual e solidão (além de diversos outros; discutirei isto mais adiante) – temas inquestionavelmente relevantes e sérios que devem ser debatidos franca e frequentemente em uma sociedade na qual o suicídio entre adolescentes atinge números assustadores. Infelizmente, na maior parte do tempo a série esconde-se atrás da importância destes tópicos para justificar uma dramaturgia pobre, maniqueísta e irresponsável, apresentando-se como um Malhação com melhor acabamento.

Mas o pior é perceber como a série assume um caráter perigoso ao alimentar uma fantasia adolescente tragicamente comum: a do suicídio como forma de vingança, como recurso para “punir” aqueles que nos injustiçaram (como já descrevia Karl Menninger em 1933). Através de suas fitas, Hannah torna-se, em essência, a protagonista da vida de todos nelas mencionados, transformando-se no foco absoluto de suas conversas e pensamentos – e, considerando o público-alvo do livro e da série, comprovadamente mais susceptível ao efeito Werther (suicídios cometidos sob inspiração de exemplos famosos), a irresponsabilidade dos realizadores torna-se ainda mais reprovável.

Pois o que muitos dos espectadores mais jovens terão dificuldade de perceber é que por trás da “justiça” de Hannah há uma pesada manipulação narrativa: os propósitos da garota são alcançados porque o roteiro precisa que sejam. Além disso, como as “razões” enumeradas vão se acumulando ao longo dos episódios, este empilhamento de cicatrizes acaba por ocultar as feridas reais, misturando arranhados e cortes profundos sem qualquer cuidado e igualando ações que nada têm de similares (e, assim, a publicação não-autorizada de um poema escrito pela moça – sem identificá-la – é empurrada para uma lista que inclui estupro e stalking, por mais que pontualmente algum personagem tente apontar a discrepância).

Como se não bastasse, como o espectador sabe que o que Hannah descreveu é basicamente verídico, a série não deixa espaço para a interpretação e a subjetividade – e a afirmação da veracidade nem seria necessária, já que o que deveria importar é que para Hannah os incidentes e as dores eram reais. Ora, uma obra que se propõe a discutir um tema tão complexo deveria ser mais honesta ao fazê-lo, abordando o debate sem simplificações dramáticas e, principalmente, sem o cinismo de aqui e ali questionar pontos menores (Zach, afinal, não jogou o bilhete fora) enquanto reafirma a verdade objetiva de todos os maiores.

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

E, vale repetir, 13 Reasons não precisava deste maniqueísmo: a depressão e o suicídio são problemas complexos exatamente por envolverem a subjetividade do paciente/vítima – assim como são reais os traumas que o autoextermínio provoca em quem ficou para trás e que não têm necessariamente a ver com “responsabilidade” (embora responsabilizar-se seja parte da natureza humana), mas com empatia pela dor alheia e com o sofrimento da perda de alguém amado ou a pura constatação do desperdício representado por uma morte precoce.

Aliás, a obsessão da série por “culpa” é igualmente problemática. Tomemos, como exemplo, o sr. Porter (Luke), responsável pelo aconselhamento psicológico oferecido aos alunos do colégio: incluído na lista de Hannah por não conseguir restaurar nesta o ímpeto de viver (e por não tê-la seguido quando deixou a sala), ele obviamente faz o possível para extrair da moça as informações necessárias para ajudá-la, acreditando em seu relato e oferecendo-se para apoiá-la caso resolvesse denunciar o estupro cometido por Bryce (Prentice) – e o potencial destrutivo da fita acarreta, no mínimo, em chances consideráveis de que o sujeito seja prejudicado injustamente. E o que dizer de Sheri (Alexus), citada nas fitas por ter derrubado uma placa de “Pare” e se recusado a informar à polícia imediatamente? Sim, é uma atitude irresponsável, mas como isto poderia ser visto como uma das razões para o suicídio de Hannah? Culpa pela morte de Jess (Larracuente)? Como, se Sheri não a impediu de relatar o ocorrido (algo que Hannah fez logo em seguida)?

E não há sequer como sugerir que os realizadores não culpam figuras como o Sr. Porter e Sheri, já que, além de Hannah, o protagonista da série, Clay, claramente o faz. (E que tal discutirmos como a produção encarrega um homem de defender os interesses da jovem suicida, incorrendo no velho roubo de protagonismo mesmo se passando por uma narrativa “inclusiva”?)

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Por falar em Clay, é preciso reconhecer como  Dylan Minnette, um ator talentoso e carismático, quase nos faz ignorar como está vivendo o que é fundamentalmente um fantoche narrativo, agindo de maneira errática apenas para atender às necessidades dos roteiristas – e por mais que a série tente justificar a demora do rapaz para ouvir as fitas, há um ponto a partir do qual se torna ridículo vê-lo atirar os fones de ouvido para o lado e repetir que não consegue mais prosseguir na tarefa, não tendo sequer o impulso de buscar a fita na qual é mencionado. Ainda mais ridículo, porém, é perceber como ele começa a se vingar dos demais citados sem sequer chegar ao fim do relato – por mais que seja alertado de que sua percepção será alterada depois que descobrir o que Hannah disse a seu respeito.

O que nos traz à desonestidade dos responsáveis pela série, que criam um falso pretexto para prender a atenção do espectador: a presença do protagonista nas fitas. O que Clay teria feito para merecer figurar na lista? Por que Tony (Navarro) afirma tão categoricamente que o jovem levou Hannah a se matar quando sabe que esta diz que Clay não merecia estar na lista? (Para obrigá-lo a ouvir o resto? Por favor.) E como o rapaz pode declarar “tudo é culpa minha!” ao descobrir que está nas gravações por sua gentileza ou, no máximo, por não ter insistido em permanecer no quarto depois que Hannah o expulsou várias vezes aos gritos? Não, a verdade é que 13 Reasons não tem coragem de pintar seu personagem principal com cores sombrias (e, sim, Clay é o protagonista da série, não Hannah), mas não hesita em sugerir falsamente para o público que ele talvez tenha um lado desconhecido apenas para manter nosso interesse na narrativa até estarmos praticamente no último episódio.

E prefiro nem discutir como Tony, depois de insistir para que Clay escute as fitas, chegando a levá-lo para uma escalada – um dos momentos mais ridículos da narrativa -, passa a adiar o instante no qual o amigo ouvirá o que foi dito ao seu respeito, afirmando que ele precisa estar num “espaço mental” adequado, o que envolve jantar e, então, levá-lo para um despenhadeiro (querem lugar melhor para alguém que possivelmente descobrirá algo traumático?).

Fonte: http://zip.net/bgtHx9

Já de um ponto de vista puramente de linguagem audiovisual, 13 Reasons oscila entre o óbvio e o equivocado: por um lado, as mudanças na temperatura da cor, saltando dos flashbacks quentes às cenas frias do presente, são um lugar-comum, mas até compreensíveis; por outro, os efeitos sonoros de “shuuuuush”, inspirados em Lost e que marcam as mudanças no tempo da narrativa, já se tornaram clichê… bom, em Lost. E se a ideia de manter um ferimento/curativo na testa de Clay para separar as épocas é eficaz, isto é sabotado pela distração provocada por uma maquiagem no mínimo pedestre.

Além disso, a série ignora a evolução de linguagem trazida pelo binge-watching (e pela qual a plataforma que a exibe, a Netflix, é co-responsável) ao ocasionalmente mencionar, no primeiro ato de certos episódios, incidentes ocorridos no desfecho dos anteriores, o que soa como pura encheção de linguiça (afinal, como converter 255 páginas do livro em 13 horas de material?). Para completar, o recurso de trazer Clay “enxergando” incidentes passados ou “escutando” acusações a seu respeito acabam funcionando menos como maneira de introduzir flashbacks e mais como sintomas de uma doença psiquiátrica, já que os roteiristas parecem confundir ato falho auditivo com alucinação provocada por algo que só posso identificar como esquizofrenia (não, não estou brincando; em certo momento, cheguei mesmo a achar que a série revelaria que Clay tinha a doença, já que não podia acreditar que todas aquelas transições fossem apenas firula dramatúrgica).

Mas talvez eu não devesse ter duvidado da preguiça dos roteiristas (contem quantas vezes os personagens dizem “Seriously?!” ao longo da temporada), já que não conseguem sequer manter uma consistência mínima da trama em apenas treze episódios: em certo instante, por exemplo, Hannah diz que ninguém jamais percebeu que as garotas da foto eram Courtney (Ang) e ela, mas, momentos depois, ao menos duas pessoas as abordam afirmando tê-las reconhecido; já em outro episódio, a moça diz que você não pode mudar as outras pessoas, “mas pode mudar a si mesmo”, contradizendo-se minutos depois ao afirmar que “ninguém muda de fato”.

Fonte: http://zip.net/bmtHrl

Além disso, é ridículo que a série sugira que cabe a Clay, movido por Hannah, trazer paz para os pais de Jeff ao revelar que ele não estava bêbado durante o acidente, já que identificar o nível alcoólico do rapaz seria uma das primeiras preocupações de qualquer médico-legista. E como aceitar a estupidez de praticamente todos os adultos retratados em 13 Reasons, que se mostram incapazes de perceber até mesmo o subtexto – nada sutil – de uma conversa mantida à sua frente (como na cena em que Tony e Clay trocam provocações diante do pai deste último)? Para finalizar, nenhum pai minimamente responsável ouviria o filho abordar questões como abuso sexual e agressão sem insistir até ouvir a história completa – especialmente uma mãe tão controladora quanto a de Clay (Hargreaves), que, no entanto, apenas observa o filho se afastar sob a justificativa de “Mãe, preciso ir agora; depois te conto” segundos depois de sugerir estar a par de um crime.

A verdade, porém, é que a série se mostra mais preocupada em manter o espectador interessado do que em discutir com honestidade as questões que apresenta. Não é acaso, portanto, que constantemente assuma artificialmente a estrutura de thriller para gerar um suspense desonesto – como, por exemplo, ao revelar que alguém levou um tiro no final do penúltimo episódio depois de estabelecer que ao menos três personagens estavam armados, sacrificando as revelações feitas sobre o estupro de Hannah ao tentar levar o público a ficar curioso acerca da identidade não só de quem atirou, mas também de quem foi alvejado. Aliás, 13 Reasons não é, em sua essência, o drama que finge ser, mas sim um whodunit que promete, desde o princípio, revelações surpreendentes ao longo do caminho – e isto não seria tão reprovável caso estas revelações não comprometessem qualquer tentativa de debate sobre depressão e suicídio.

E é justamente isso que os roteiristas fazem ao identificar um Vilão (sim, com “V” maiúsculo) responsável pelo Ato que realmente destrói Hannah – um vilão tão estúpido e caricatural que cai até mesmo no velho clichê de confessar tudo para o mocinho enquanto é gravado secretamente. Para piorar, o que Bryce faz é tão repugnante que todos os outros elementos presentes na lista de Hannah empalidecem completamente: afinal, como aceitar que Ryan (Dorfman), Sheri, Courtney e Alex (Heizer) sejam sequer comparados, direta ou indiretamente, a um estuprador serial? E como Hannah encontra coragem para incluir Jessica, igualmente vítima de estupro, apenas por um desentendimento acerca de Alex? (Além disso, permitam-me um breve segundo para apontar como a garota encontra tempo para gravar seis fitas e meia, mas não para deixar cinco linhas para os pais – os únicos personagens retratados com algum grau de complexidade ao longo dos episódios.)

Fonte: http://zip.net/bhtHHp

Para encerrar, é impossível deixar de observar o surpreendente moralismo de 13 Reasons, que basicamente pune Jessica (Boe, uma das melhores revelações do projeto) por ser sexualmente ativa, levando-a ao alcoolismo e a ser vítima de um estupro, ao mesmo tempo em que traz Hannah comentando acerca do próprio estupro: “Graças a você, (Bryce), fiz jus à minha reputação” – uma referência incrivelmente machista ao fato de ser chamada de “fácil” na escola. Sim, é admirável que a série mostre Hannah se sentindo ofendida ao ser listada como “melhor traseiro” do colégio em vez de sugerir que ela deveria se magoar apenas se fosse objetificada negativamente, mas para cada acerto como este há outros tropeços como o fato de a série trazer vários personagens gays, mas um único beijo entre duas pessoas do mesmo sexo: duas garotas, claro, já que beijo entre mulheres é encarado como algo sensual, não “repulsivo” como aquele entre dois homens. Ou seja: retratar estupro e suicídio graficamente é algo aceitável, mas trazer dois rapazes se beijando, não.

O curioso é que, em sua superfície, 13 Reasons toma iniciativas corretas: escala um elenco diversificado e inclusivo, traz personagens com diferentes orientações sexuais e inclui alertas de “gatilho” no início dos episódios mais pesados. Contudo, basta mergulharmos um pouco em sua execução e as iniciativas se encolhem diante das abordagens desastrosas com que são desenvolvidas. Como se não bastasse, há o puro excesso da trama, digna de algo como Barrados no Baile: ao longo dos treze episódios, testemunhamos bullying, dois estupros, misoginia, alcoolismo, abuso doméstico, uso de drogas e negligência parental – além, obviamente, do suicídio de Hannah e das consequências das fitas, que envolvem ao menos mais três tentativas de suicídio (Justin, Clay e Alex). Ah, sim: também testemunhamos a história de origem de um destes adolescentes que certo dia invadem a escola e metralham colegas e professores (estou falando, claro, de Tyler e seu baú de armas).

Aqui o problema é bem simples: uma série que quer falar sobre tudo acaba não conseguindo falar direito sobre nada.

Fonte: http://zip.net/bltG2P

Até entendo que alguns prefiram interpretar que 13 Reasons não é uma série sobre um suicídio, mas sim sobre a necessidade de tratarmos melhor uns aos outros; infelizmente, do título à trama, passando pelo desenvolvimento dos personagens, esta é uma interpretação difícil de sustentar. Afinal, uma coisa é apontar como frequentemente deixamos de prestar atenção ao sofrimento alheio; outra é responsabilizar todos que deixam de fazê-lo pelo suicídio de alguém (e digo isso como alguém que tem relativa experiência tanto com a depressão quanto com o impulso suicida).

Meu receio, porém, é que aqueles que extrairão da série a “mensagem” de que devem se solidarizar com os que os cercam já o fariam por si mesmos, sem a necessidade de uma lembrança em forma de capítulos; por outro lado, há um risco infinitamente maior de que aqueles que se encontram emocional e psicologicamente vulneráveis acabem vendo, na tela, um modelo perigosamente fácil de emular.

Seriously.

Observação: se me permitem indicar algumas obras que tratam de forma consideravelmente mais sensível e responsável as questões abordadas em 13 Reasons, sugiro Para Sempre na Memória, Depois de Lúcia, o documentário Bullying, Atração Mortal, As Virgens Suicidas e As Vantagens de Ser Invisível.

Leia também: 21 apontamentos sobre suicídio.

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