Menina Má.com: quem tem medo do lobo mau?

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“Chapeuzinho Vermelho voltou alegremente para casa e ninguém nunca mais fez nada para machucá-la novamente.”
(Os Irmãos Grimm)

Hard Candy, que no Brasil teve o infeliz título de “Menina Má.com”, é um suspense psicológico que trata de vários temas complexos e controversos. Assim, dizer que este é um filme sobre pedofilia reduz muito as várias camadas que compõe a personalidade dos dois personagens principais e o embate que eles vivem na tela.

O filme é iniciado com uma típica conversa virtual entre um homem e uma mulher. Até que as frases trazem à tona o fato de que as duas pessoas que estão conduzindo esse chat picante é um homem de mais de 30 anos e uma menina de 14. Num ímpeto, eles resolvem se encontrar pessoalmente, e quando Hayley (numa interpretação impressionante de Ellen Page) aparece pela primeira vez na tela, a imagem da menina frágil e ingênua é extremamente contrastante com o homem que foi encontrá-la. E esse primeiro encontro já causa um certo incômodo, especialmente pela forma que o diretor explora os ângulos das cenas. São feitos grandes closes das expressões de Hayley e Jeff (Patrick Wilson, também excelente), mostrando situações aparentemente coloquiais, mas que carregam em si um forte teor de sedução e malícia.

Geralmente, a imagem estereotipada de um pedófilo que busca suas presas na internet é de uma pessoa fracassada profissionalmente, que tem pouca habilidade social e possui aparência obscura. Jeff não se encaixa nesse padrão. É carismático, educado, capaz de ser notado em qualquer lugar, não apenas pela sua aparência física, mas pelas suas boas maneiras.

É interessante quando a imagem que construímos sobre algo cai por terra. Aquilo que definimos como mau ou perturbador é mais aceitável quando os sentidos que edificamos sobre isso no decorrer da nossa vida contribuem para interpretarmos os fatos com certa coerência. Agora, quando os padrões que erigimos são sumariamente destruídos, perdemos a segurança, é como se deslizássemos sobre uma fina camada de gelo, pois já não é possível ficar agarrado àquela ilusão de que o outro pode ser colocado em uma categoria, nem ao menos temos a certeza de que os atributos que compõem uma dada classe sejam, de fato, preponderantes para nos fazer entender o outro (ou a nós mesmos).

Hayley se convida para ir à casa de Jeff, pois ele é divertido, fala de assuntos que ela deseja ouvir (mesmo que esses assuntos sejam bem específicos, como uma desconhecida banda de rock) e parece gostar da sua companhia, já que aprecia sua conversa. Na casa dele, serve-se de bebida alcoólica e começa a dançar de forma insinuante, tirando algumas peças de sua roupa.

Ele não faz nada para impedi-la, apenas observa sorridente. Mas, sua ação não é passiva, vem de todo um contexto bem elaborado que mais parece um cenário de “caçador e presa”. Ele buscou meninas com o seu perfil na internet, com a sua idade, tentou parecer divertido, fingiu gostar de uma banda que nem conhece, tudo para fazê-la se aproximar, sentir-se à vontade. Mas, mesmo sem o cenário da caçada virtual, sua passividade e consentimento não é uma atitude coerente, pois há um adulto na casa e esse deveria proteger a menina, não se aproveitar de sua pretensa rebeldia.

É nesse ponto que o roteiro de Brian Nelson tira a segurança de qualquer interpretação que até então tínhamos construído sobre o filme e, com isso, as certezas que pensávamos ter sobre qual é o lado bom (se é que ele existe) da história. De um lado, tem-se Jeff, um fotógrafo cuja casa é repleta de imagens de jovens mulheres, que teve uma relação frustrada na adolescência, que foi acusado ainda criança de agir de forma errada com uma prima. Do outro, a menina que atribuiu para si a responsabilidade (e o direito) de fazer justiça com as próprias mãos, que age, na maior parte do tempo, com a frieza de um psicopata. Desta forma, não enxergamos mais a adolescente ingênua de antes e aquele que até então era o predador torna-se a caça. Jeff é drogado e amarrado e fica a mercê de sua “presa”.

Sem certezas, sem entender bem que pessoas são essas que se olham com um misto de ódio, desprezo e medo, inicia-se a principal premissa do filme, que tem relação com a metáfora do cartaz de divulgação, em que a menina está numa espécie de armadilha, mas é – ao mesmo tempo – a armadilha.

O horror é amplificado justamente por causa das incertezas. O diretor David Slade, na forma que conduz as cenas, coloca quem assiste dentro do filme, é como se a pessoa trouxesse para si a responsabilidade de julgar aqueles dois indivíduos, mas não há informação suficiente para saber que decisão é mais justa ou mais humana.

Jeff, humilhado e rendido, tenta atingir a menina com histórias tristes do seu passado ou nas potenciais consequências de seu ato para sua vida adulta, acreditando nas inseguranças que são comuns na adolescência. Mas não tem sucesso. Assim como ele a estudou pela internet, ela também fez o mesmo. Entendeu que ele procurava um tipo de mulher específica, ou seja, procurava propositadamente adolescentes. Uma menina havia desaparecido na cidade, ele, agindo como um pedófilo, segundo ela, era culpado também, logo devia ser punido.

Quem tem o direito de fazer justiça? A vítima pode trazer para si o direito de punir seu algoz? O desejo de vingança de Hayley, justamente por parecer ser uma característica tão humana, torna-se cada vez mais assustador.

Jeff: Quem é você?
Hayley: Eu sou cada menininha que você observou, tocou, machucou, matou.

 Nada é dito no filme sobre o passado de Hayley. Assim, não é possível entender como sua raiva foi se transformando em algo totalmente fora de controle. Ela não se satisfaz em apenas chamar a polícia e mostrar as fotos das adolescentes que Jeff esconde embaixo do tapete, pois acredita que a punição pelos meios normais não será suficiente. Ela até traz à tona um caso real, do diretor Roman Polanski e sua relação com uma adolescente de 13 anos, para mostrar que a justiça é relativa demais, já que a carreira desse diretor sobreviveu ao escândalo. Sua ideia de justiça é mais radical, assim, numa ode ao “olho por olho, dente por dente”, ela traz à tona a punição que acredita ser adequada, resolve cortar, literalmente, o mal pela raiz, aterrorizando Jeff com uma cirurgia (feita por ela mesma) de castração.

Mas, nem isso parece ser suficiente…

Assim, como é tênue a linha que separa a procura incessante de uma obsessão, também parece ser confusa as verdades sobre o outro que são construídas quando não há qualquer traço de empatia.

A característica mais perturbadora de “Hard Candy” parece ser essa incapacidade do público de se colocar no lugar dessas duas pessoas. É como se ambos fossem terríveis demais para que alguém pudesse aceitar ter qualquer identificação com eles. E como o filme é todo embasado no encontro desses dois sujeitos, sobra para quem assiste aquela sensação estranha e complexa de ser um juiz ou um observador imparcial, o que, em ambos os casos, é algo um tanto doentio.

E entre a menina inteligente e o homem bem sucedido há uma semelhança perturbadora. Parece que ambos estão doentes demais para conseguir enxergar o mundo e as pessoas sem tantos artifícios cruéis e obscuros. Diante disso, uma frase do Monge Zózima, dos Irmãos Karamázov de Dostoiévski, parece-me adequada para finalizar essa análise: “se eu mesmo fosse um justo, talvez não houvesse diante de mim um criminoso”.

FICHA TÉCNICA:

MENINA MÁ.COM

Título Original: Hard Candy
Direção: David Slade
Roteiro: Brian Nelson
Elenco: Ellen Page, Patrick Wilson
Ano: 2005
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O Iluminado: quando Kubrick encontra Freud

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 “Pode ser verdade que o estranho seja algo que é secretamente familiar, que foi submetido à repressão e depois voltou, e que tudo aquilo que é estranho satisfaz essa condição.” (Freud, O Estranho [1])

 

“O Iluminado” é uma adaptação do livro de Stephen King – “The Shining” – trazido às telas em 1980 por Stanley Kubrick. As inúmeras análises sobre esse filme disponíveis na internet e as várias cenas transformadas em imagens icônicas da representação do medo e do horror mostram a sua importância em discussões sobre temáticas que envolvem o terror psicológico.

Segundo [2], em preparação para escrever o roteiro de “O Iluminado”, Kubrick e a romancista Diane Johnson leram o ensaio de Freud de 1919 – “O Estranho”. A intenção de Kubrick era apresentar uma estética no filme que se assemelhasse aos elementos desse ensaio. Para tanto, fez uso da temática do duplo, inclusive em algumas cenas utilizou-se de espelhos induzindo à ideia do “eu dividido”, e mostrou o quanto a repetição e os padrões podem dar ao cotidiano uma conotação estranha, em alguns aspectos até assustadora.

 

 

A história tem como centro a família de Jack Torrance, um alcoólatra em recuperação que tenta reconstruir a vida após sua demissão do cargo de professor. Para tanto, participa de uma entrevista para uma vaga de zelador em um hotel durante o recesso de inverno. Nessa época, o local fica praticamente inacessível e, com isso, sem hóspedes. Esse ambiente é ideal para Jack retornar o antigo sonho de tornar-se um escritor, já que terá tempo e sossego suficientes para escrever. Na entrevista, o gerente do local diz a Jack que o antigo zelador havia enlouquecido, assassinado sua família e depois tirado a própria vida. Mas, mesmo diante dessa informação, Jack não recuou, pois se assim o fizesse, estaria dando margem a crenças e superstições, coisas que, para ele, não faziam sentido.

 

 

Há aqueles que assistem a esse filme e dão aos eventos que nele ocorrem uma interpretação totalmente sobrenatural. Como se houvesse uma força invisível e maligna conduzindo as ações de Jack. E essa força, segundo alguns, era percebida apenas por Danny (filho de Jack), que por ser uma criança sensitiva, tinha uma percepção mais aguçada para enxergar o mal, ainda que não soubesse como lidar com ele.

 

 

No entanto, acho mais plausível entender “O Iluminado” como um drama psicológico. Assim, a questão do histórico familiar de alcoolismo de Jack, que o levou à linha limítrofe entre uma atitude errônea e “acidental” com o filho (deslocando o ombro do menino) e uma ação que pode ser tipificada como abuso infantil, tenha sido o evento que mais contribuiu para o aparecimento de Tony, o “amigo imaginário” da criança (“o menino que vive na minha boca“, segundo Danny).

De acordo com [3], crianças com transtorno dissociativo de identidade e transtorno dissociativo não especificado muitas vezes apresentam sintomas como alucinações auditivas, conversas com amigos imaginários, alterações comportamentais rápidas e inexplicáveis, estados aturdidos, experiências noturnas incomuns, dentre outros. E esses transtornos geralmente são evidenciados em crianças que sofreram algum tipo de abuso, pois tem como disparador um evento traumático.

 

 

Na medida em que a história avança e o Jack se torna cada vez mais isolado e agressivo, vimos Danny alterar ainda mais o seu comportamento, como se fosse uma resposta à conturbação que o cerca. A criação de Tony é uma forma que Danny encontrou de proteger-se dos danos que a família lhe provoca, de lidar com um pai potencialmente perigoso e agressivo e uma mãe histérica e confusa.

Em uma leitura rápida nos noticiários “do mundo real”, pode-se observar que não há a necessidade de buscar o sobrenatural para termos diante de nossos olhos situações assustadoras e um tanto quanto inexplicáveis. A realidade cruel do assassinato ou abuso de crianças por pessoas que deveriam zelar pela sua integridade física e mental mostram-nos a cada momento que uma família desestruturada pode se tornar um ambiente mais horripilante que qualquer história de terror pautada em elementos puramente fantasiosos.

 

O tema do ‘duplo’ foi abordado de forma muito completa por Otto Rank (1914). Ele penetrou nas ligações que o ‘duplo’ tem com reflexos em espelhos, com sombras, com os espíritos guardiões, com a crença na alma e com o medo da morte; mas lança também um raio de luz sobre a surpreendente evolução da ideia. Originalmente, o ‘duplo’ era uma segurança contra a destruição do ego, uma ‘enérgica negação do poder da morte’, como afirma Rank; e, provavelmente, a alma ‘imortal’ foi o primeiro ‘duplo’ do corpo.” (Freud, O Estranho [1])

 

Apesar da existência de vários espelhos no hotel, é nítida a aversão de Jack por eles. É como se ele não pudesse enfrentar seu verdadeiro “duplo” (ele mesmo) e, assim, fosse construindo outras formas de “duplo”. E faz isso porque, em algum nível, percebia que estava se tornando um caótico amontoado de fragmentos. Ele precisava se prevenir de uma potencial destruição do ego e, principalmente, fugir do seu profundo medo de morrer sem ter tido a oportunidade de se transformar em um homem extraordinário.

 

 

Assim é mais fácil entender a existência de um barman em um hotel que deveria ter apenas sua família. É como se o homem no bar oferecendo-lhe bebida atenuasse o fato de que ele estivesse bebendo porque desejava e precisava. O homem que lhe oferecia bebida e a mulher nua na banheira (que oscilava entre ter um corpo jovem e belo e um corpo em decomposição) existiam apenas em sua mente.

As vozes que ecoavam do seu inconsciente, uma possível representação dos seus desejos reprimidos, faziam com que seu reflexo (o duplo) não fosse sua semelhança.  Assim como Danny criou seu “amigo imaginário” para sobreviver a um contexto que lhe era incompreensível, as figuras que ganhavam vida a partir da mente de Jack eram necessárias “lá fora”, pois já não havia mais espaço nele.

 

 

Segundo [2], quando Kubrick trouxe para “O Iluminado” as ideias apresentadas em “O estranho” (de Freud) deu ao filme um campo de interpretação bem mais abrangente. Ou seja, as imagens espectrais apresentadas no filme não parecem ser meramente sobrenaturais ou totalmente misteriosas em sua origem. Se os detalhes forem observados mais atentamente, pode-se concluir que a origem de tantas “estranhezas” é completamente familiar.

 

O elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna” (Freud, O estranho [1])

Seria mais fácil explicar o mal através de elementos místicos do que acreditar nas atrocidades que um indivíduo pode ser capaz de fazer. Fantasmas ou magias são mais reconfortantes para explicar eventos assustadores do que ter o entendimento de que “o horror” e “o bizarro” são partes da natureza humana. No entanto, tal negação não ajuda a combater nem a evitar os horrores nossos de cada dia. Se alguém tivesse compreendido a extensão dos estranhos desejos reprimidos de Jack, talvez pudesse ter ajudado a sua família e, de certa forma, evitado eventos tão traumáticos (e fatais).

Mas, a questão é como identificar o mal que pulsa de forma tão pungente e descontrolada se ele pode ter uma origem tão familiar? É mais fácil aceitar que há um monstro no estranho que mora longe das nossas casas do que compreender que ele pode residir em alguém da nossa família ou em nós mesmos.

 

“É possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma ‘compulsão à repetição’, procedente dos impulsos instintuais e provavelmente inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco.” (Freud, O Estranho [1])

 

A ideia da repetição é o fio condutor do filme. Jack inicialmente achou patético sentir qualquer tipo de incômodo por ir morar em um lugar que havia sido cenário de um estranho crime. Mas aos poucos foi apresentando uma visível sintonia com o antigo zelador, já que tinha desejos (ainda que reprimidos) semelhantes ao dele. Inconscientemente, a princípio, sentia que precisava se livrar daquela família que o transformava em um homem ordinário, já que até as palavras que ganhavam vida na máquina de escrever pareciam zombar dele. Com esse pensamento ganhando cada vez mais força entendeu que para se libertar seria necessário tirá-los de seu caminho.

 

 

A última imagem que aparece no filme é a foto de uma confraternização datada de 1921. E enquanto Jack permanece congelado em algum ponto do labirinto do jardim repleto de neve, um Jack sorridente vive na imagem em preto & branco em uma das paredes do hotel. Finalmente, Jack conseguiu atingir a imortalidade, já que parece ter encontrado o “duplo” perfeito que ganhou forma por meio da repetição.

Há o retorno constante da mesma coisa – a repetição dos mesmos aspectos, ou características, ou vicissitudes, dos mesmos crimes, ou até dos mesmos nomes, através das diversas gerações que se sucedem.” (Freud, O Estranho [1])

A grande ironia da nossa existência talvez resida nessa repetição de acontecimentos que esmaga nossa ingênua ilusão de singularidade. Em contrapartida, há no círculo vicioso do eterno retorno uma esperança de imortalidade. O estranho familiar que nos assombra talvez esteja tão perto quanto o barulho que ouvimos (ou pensamos ouvir) quando estamos sozinhos com nossos pensamentos. Nada é mais terrível do que esse medo tão familiar que carregamos conosco, o medo daquilo que está reprimido, mas terrivelmente próximo.

 

Referências:

[1] Freud, S. O estranho. Disponível em: http://texsituras.files.wordpress.com/2010/09/o-estranho.doc

[2] http://kubrickfilms.tripod.com/id80.html

[3] http://ajp.psychiatryonline.org/article.aspx?articleid=172850

FICHA TÉCNICA:

O ILUMINADO

Título Original: The Shining
Direção: Stanley Kubrick
Roteiro: Diane Johnson, Stanley Kubrick
Elenco Principal: Jack Nicholson, Danny Lloyd, Shelley Duvall
Ano:1980

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A Última Tentação de Cristo: a imagem e semelhança de Deus

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A natureza dupla de Cristo – a ânsia tão humana, tão sobre-humana, do homem alcançar Deus sempre foi um profundo mistério para mim. A principal angústia e fonte das minhas alegrias e tristezas desde a juventude tem sido a interminável e implacável batalha entre o espírito e a carne… e a minha alma é a arena onde estes dois exércitos se encontram e combatem.

Nikos Kazantzakis, do livro “A última tentação de Cristo”

 

Em 1988, a estreia do filme “A última tentação de Cristo”, baseado no livro do escritor grego Nikos Kazantzakis, causou uma reação intensa e polêmica em vários lugares do mundo (houve até a depredação de muitos cinemas que ousaram projetar o filme). A versão da história de Jesus trazida à tela por Martin Scorsese foi alvo de críticas acaloradas. O filme foi acusado por vários grupos religiosos de transmitir uma mensagem profana e ofensiva ao retratar não apenas a face de Jesus-Deus, mas, especialmente, de Jesus-homem, logo sujeito a dúvidas e medos.

No início do filme, Scorsese, numa tentativa de acalmar os ânimos das vertentes religiosas mais inflamadas, trouxe a seguinte explicação: “Este filme não se baseia nos Evangelhos, mas sim nesta exploração ficcional do eterno conflito espiritual.” No entanto, quando há um personagem com o nome ‘Jesus’, nascido em Jerusalém, filho de Maria e José e que é apontado como filho de Deus, isso implica, de certa forma, em trazer à tona a imagem arquetípica de Jesus, logo qualquer interpretação da história passará pelos sentidos que esse arquétipo evoca.

O conceito de “archetypus” só se aplica indiretamente às representations collectives, na medida em que designar apenas aqueles conteúdos psíquicos que ainda não foram submetidos a qualquer elaboração consciente. Neste sentido, representam, portanto, um dado anímico imediato. […]. O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta.(JUNG, 2000c, p. 17).

Compreender os efeitos profundos das representações religiosas na psique, segundo alguns elementos presentes teoria de Jung, acarreta em uma reflexão sobre as questões universais e suas instâncias, que vêm à tona nas manifestações dessas imagens arquetípicas.  Sobre Jesus, Jung diz:

Cristo é para nós a analogia mais próxima do si-mesmo e de seu significado. Não se trata, aqui, bem entendido, de um valor atribuído artificial ou arbitrariamente, mas de um valor coletivo, efetivo e subsistente por si mesmo, que desenvolve a sua atividade, quer o sujeito tome ou não conhecimento dele. (JUNG. 2000b, p.41).

Isso explica a dificuldade em encarar de forma natural a representação de um Jesus na tela, mas não justifica a ira descontrolada que esse filme gerou na época de sua estreia. Principalmente, se considerarmos que a maior parte das críticas veio de pessoas que julgaram o filme sem sequer tê-lo assistido. Parece que a máxima de que somos “a imagem e semelhança de Deus” é pouco assimilada ou assimilada de uma forma que eu, particularmente, não consigo entender, pois qualquer tentativa de dar à figura de Cristo um aspecto mais humano é julgada de forma veemente mesmo antes de qualquer reflexão.

 

Achas que é uma benção saber o que Deus quer? Vou te dizer o que Ele quer. Quer destruir-me! Ele não vê o que está dentro de mim? Todos os meus pecados.

 

O Jesus que vimos no início do filme sabe que tem uma ligação especial com Deus, mas não a entende com clareza. Vislumbra sempre uma sombra em seus sonhos, mas só depois vai compreender que a sombra é a Cruz na qual ele morrerá. Sente-se fraco, cheio de pecados e dúvidas, incapaz de entender porque foi escolhido por Deus. E se pudéssemos acompanhar essa história sem tantas amarras, poderíamos nos compadecer com esse homem que está fragilizado, mas que é capaz de carregar todas as quimeras da humanidade em seus ombros tão humanos?

Antes de passar os 40 dias no deserto, numa tentativa de compreender a si mesmo e sua missão, há no Cristo apresentado no filme muita dor e raiva. Esses sentimentos lhe consomem justamente por não conseguir lidar com as mensagens que lhes são enviadas por seu Pai celestial.

 

Sou um mentiroso. Um hipócrita. Tenho medo de tudo. Não digo a verdade. Não tenho coragem. […] Quero revoltar-me contra vós, contra tudo, contra Deus, mas tenho medo. Queres saber quem são meus pais? Queres saber quem é meu Deus? O medo. Olha para dentro de mim e é tudo o que encontrarás.

 

No deserto, Jesus tenta entender todas as vozes que povoam a sua mente. Mas, a solidão e a responsabilidade de ser um Messias confundem seus sentidos. Tem visões de Satanás na forma de uma serpente e, às vezes, sente que o próprio Lúcifer está dentro de sua mente.

Lúcifer está dentro de mim. Ele diz-me: “Tu não és o filho do Rei David. Tu não és um homem, és o Filho do homem. E mais, o Filho de Deus. E mais do que isso, Deus.”

Diante de tanta angústia e de toda a complexidade que reside no fato de ser o Messias, conclui esgotado: “Tudo é de Deus. Tudo tem dois significados“.

E, talvez, essa seja uma das mensagens mais profundas do filme.  Aproveitando a temática de Noé, já que foi feita uma releitura dessa passagem bíblica no cinema, surge um questionamento: Como escolher que criatura é merecedora de um lugar na Arca se tudo é de Deus?

 

Judas: Outro dia disseste que se um homem te batesse, davas-lhe a outra face. Não gostei disso. Só um anjo ou um cão faria isso. Lamento, mas não sou nenhum dos dois. Sou um homem livre. Não dou a outra face a ninguém.
Jesus: Ambos queremos o mesmo.
Judas: Queremos? Queres a liberdade de Israel?
Jesus: Não. Quero a liberdade da alma. […] Os alicerces são a alma.
Judas: Os alicerces são o corpo. É por aí que deve começar.
Jesus: Se não mudares o espírito primeiro, o que está lá dentro, só vais substituir os romanos por outra pessoa e não muda nada. Ainda que venças, estarás cheio de veneno. Tens de quebrar a cadeia do mal.
Judas: Como muda então?
Jesus: com amor.

 

Judas, nesse filme, é uma espécie de ativista político com sede de vingança e com uma vontade extrema de mudança e liberdade.  Foi designado para matar Jesus, mas não conseguiu porque, de alguma forma, foi tocado pelas suas palavras. Parece que acreditar naquele homem que pregava o amor, mesmo repleto de dúvidas, era sua sina, então, juntou-se a ele na jornada.

Ao falar de amor e enxergar a presença de Deus em todas as coisas, Jesus inicia o caminho que o levará a crucificação. Encontra seus discípulos, começa a explicar a palavra de Deus através de parábolas e inicia seus milagres. O mais extraordinário é, sem dúvida, a ressurreição de Lázaro.

 

 

Lázaro é apresentado como uma figura, no mínimo, perturbadora. Ele esteve morto. Logo, de certa forma, o grande mistério lhe havia sido revelado. Suponhamos que fosse possível voltar dos mortos, qual sentido teria a vida a partir de então?

Assim, quando alguém pergunta a ele sobre “O que é melhor, a morte ou a vida?” e ele responde simplesmente “Fiquei um pouco surpreso. Não era assim tão diferente”, entendemos um pouco o porquê do seu olhar perdido e do seu jeito apático. É como se ele tivesse se tornado “o homem do subsolo” de Dostoiévski, aquele que compreendeu prematuramente que “o resultado direto e legal da consciência é a inércia, isto é, o ato de ficar conscientemente sentado de braços cruzados” (p. 29). Assim, talvez, esse sentimento que o assolava o fazia concluir que: “a ‘vida viva’, por falta de hábito, comprimira-me tanto que era até difícil respirar” (p. 142). Pobre Lázaro! Imagino o quanto de mortos-vivos existem por aí, do nosso lado, diante de nós, em nós.

 

Pilatos: Uma coisa é querer mudar a forma como as pessoas vivem, mas tu queres mudar a maneira como elas pensam e sentem.
Jesus: Apenas digo que a mudança vai acontecer com amor, não com a morte.

 

A vida de Jesus, mesmo negada em sua totalidade por alguns, ou tendo vários aspectos de sua trajetória refutados por estudiosos, possui uma mensagem atemporal profunda no que concerne aos dilemas e angústias que permeiam a natureza humana.  Como temia Pilatos, o que aquele homem jovem e simples estava conseguindo fazer através de seu testemunho poderia modificar de forma contundente a ideia que todos, naquela época, tinha de Deus e da sua relação com a humanidade. Seria muito mais fácil, para Pilatos, se Jesus agisse como Judas, ou seja, fosse imediatista e buscasse modificar apenas a superfície. A permanência de Cristo na memória coletiva mostra-nos que, em vários aspectos, a vida de Jesus provocou uma mudança significativa, que ultrapassou não apenas um espaço geográfico, mas, especialmente, a variável tempo. E isso, mesmo para os mais céticos, é um fato muito significativo.

 

Mãe? Madalena? Onde vocês estão?
Pai, desculpa-me por ter sido um mau filho.
Pai, fica comigo, Não me abandones.
Pai, perdoa-lhes.
Pai, por que me abandonaste?

A parte final do filme é a mais controversa. Nela, Jesus é tirado da cruz por uma criança que diz ser um anjo enviado por Deus para livrá-lo da morte. Assim, não havia mais necessidade do seu sacrifício pela humanidade, pois o mundo não precisava mais de um salvador, nem de um Deus que se fez homem.

Jesus já tinha visto o Satanás em diferentes formas quando esteve no deserto, mas acreditou no anjo-criança porque queria (ou precisava) acreditar. E foi conduzido a ter uma nova experiência de vida. Nessa nova vida, tentou viver com Maria Madalena, ter filhos e envelhecer.

 

 

Mas, ao final, toda essa vida que Satanás ofereceu a Jesus transformou-se em um perturbador “e se…”. Ao vislumbrar como seria sua trajetória e a história do seu povo longe dos desígnios de Deus, Jesus finalmente ofereceu ao Pai o seu espírito e, em paz, entendeu que tudo estava consumado.

Em “A Última Tentação de Cristo”, vimos um Jesus humano, complexo, repleto de angústias, mas com um profundo sentimento de compaixão pela humanidade. Ele é, ao mesmo tempo, o Deus que traz vida a um corpo morto, e o homem inteligente e sensível que mostra a um bando de homens sedentos por justiça que é melhor olhar para seus próprios pecados antes de atirar a primeira pedra.

O que nos remete a uma grande reflexão nesse filme é a constatação de que, por vezes, esquecemos que somos humanos, logo ousamos pensar que podemos nos enquadrar em apenas uma categoria: o bem ou o mal. Ou, ainda, que somos superiores por sermos a imagem e semelhança de Deus e, assim, talvez esqueçamos de que Ele está em tudo, logo é parte de tudo. Como diz Jesus a Judas: “Sim. Tudo faz parte de Deus. Quando vejo uma formiga, quando olho para o seu olho brilhante, sabes o que vejo? Vejo a face de Deus”. E é reconfortante a resposta que Ele dá a Judas ao ser questionado sobre a morte e o medo de morrer: “Por que sentiria medo de morrer? A morte não é uma porta que se fecha, pelo contrário, é uma porta que se abre”.

 

REFERÊNCIAS:

DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo. Schnaiderman, Boris (trad.). São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 152.

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. In: Obras completas de C. G. Jung em português. Petrópolis: Vozes, 2000c. vol. IX/1.

JUNG, C. G. Aion – estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. In: Obras completas de C. G. Jung em português. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2000b. col. IX/2.

FICHA TÉCNICA:

A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO


Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Paul Schrader
Elenco Principal: Willem Dafoe, Harvey Keitel, Barbara Hershey, David Bowie
Ano: 1988

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Anna e Elsa: tempestades de gelo, descobertas e diferenças

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“Minha força está na solidão.
Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes
ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.”

Clarice Lispector

As princesas da Disney são definidas a partir de uma série de códigos ideológicos e estéticos. Esses códigos são necessários para a criação de uma identidade que tenha potencial para configurar um perfil que mereça ser amado, copiado e seguido. Com isso, pode-se estabelecer toda uma cultura em torno dos pares de opostos: bem e mal, beleza e horror, amor e ódio, perdão e vingança.

A heroína Disney é reconhecida quando ela fica em uma varanda com os cabelos ao vento, quando canta na floresta, ou quando ela deseja ter aquilo que está além do seu alcance. Embora os detalhes tenham sido atualizados, revisados e reformulados em conformidade com a ideologia contemporânea, a essência da fórmula das princesas da Disney manteve-se intacta. Como Walt Disney disse uma vez: nós sempre vamos torcer pela “Cinderela e seu Príncipe”.[1]

Mas, será que essa fórmula manteve-se realmente intacta? Já houve uma tentativa de “globalização” das princesas ao mostrá-las em diferentes etnias, cores ou classes sociais. Mas ainda persistia a ideia de que a figura do príncipe era necessária para formar “o conto de fadas” ideal. Até que o paradigma do “viveram felizes para sempre com um príncipe” foi quebrado emMerida, a princesa ruiva e rebelde. Em Frozen, novas nuances são apresentadas nessa fórmula. Tais nuances trazem à tona diferentes aspectos da personalidade das princesas.

O filme Frozen é “levemente” baseado em uma história do dinamarquês Hans Christian Andersen, “A Rainha da Neve”, publicada pela primeira vez em 1845. Nessa história, um anão do mal cria um espelho encantado capaz de transformar (para pior) as pessoas que o mirassem. Mas, um dia, o espelho é quebrado e seus estilhaços se espalham pelo mundo, disseminando ainda mais seu poder de destruição. Se um estilhaço do espelho atingisse o coração de alguém, essa pessoa se tornaria fria. Se atingisse os olhos, ela só enxergaria o pior nos outros.

O aspecto do conto de Andersen que foi usado como inspiração tem relação com a metáfora do gelo. Mas, em Frozen, o mal e o horror não vêm apenas do frio e da neve, mas do preconceito e do medo diante do “diferente”.

Frozen nos apresenta a história de duas irmãs, Anna e Elsa. A mais velha (Elsa) nasceu com um dom especial, é capaz de criar gelo e neve. Sem compreender o dom que possui, usa-o na maior parte do tempo para provocar os risos da irmã mais nova. Mas, um dia, o gelo que fez da Elsa uma criança “diferente” quase provocou a morte de sua irmã, o que resultou na decisão dos pais de separá-las e, de certa forma, esconder Elsa (e seus dons incompreensíveis) do resto do mundo.

Pouco tempo depois, as meninas ficaram órfãs. Elsa permaneceu presa em seu quarto, separada da irmã, tentando assimilar que tipo de monstro carregava consigo que tornava-a um perigo para os outros. Os pais das meninas, na tentativa de fazer um bem a ambas, foram os responsáveis por criar as maiores barreiras à felicidade das filhas. Não entender algo é totalmente compreensível, temer o desconhecido também o é. Mas o grande problema é quando se faz disso um fardo e uma dor para o outro, sendo que a causa, muitas vezes, reside em seu próprio medo, na sua incapacidade em lidar com o diferente, com aquilo que saiu dos padrões que convencionalmente compõe o conceito de “normalidade”.

“Medo e preconceito. O medo do diferente é o pai do preconceito, que por sua vez abre feridas na alma. Porém nos ensinaram que temos de ser iguais, inclusão geral. Então, para não sermos diferentes, portanto objetos de suspeita ou rejeição clara, mentimos uma igualdade impossível. Melhor seria entender, cultivar e afirmar nossas diferenças – não como fator de ódio, mas de um espaço de crescimento natural de todos para um melhor convívio.” [2]

Elsa e Anna foram vítimas (ainda que de maneiras distintas) desse estranho medo do diferente. E o isolamento no qual viviam contribuiu para o sentido que elas erigiram em torno das coisas e das poucas pessoas que estavam próximas.  “A solidão produz uma hipersensibilidade a estímulos mínimos e uma tendência para interpretar erroneamente ou exagerar a intenção dos outros, considerando as pessoas hostis ou afetuosas em demasia” [3]. Assim, enquanto Anna se transformou em uma sonhadora à espera do amor de um príncipe e de uma vida repleta por todas as diversões que lhes foram negadas na infância, Elsa permaneceu presa à ideia de que precisava controlar o mal que carregava consigo, logo tinha que neutralizar parte do que era.

A cada momento, a figura de um príncipe altivo e destemido que fazia parte dos sonhos de Anna parecia se afastar ou tornar-se incongruente com a sua realidade. Na festa de coroação de Elsa, quando finalmente as irmãs se encontram novamente, vemos que toda a afobação da Anna por encontrar o “amor de sua vida” na verdade parecia ser mais uma fantasia criada para suportar a solidão. As irmãs que antes eram tão cúmplices, agora pareciam temer uma a outra. Mas, havia algo no encontro que mostrava que o abismo não era assim tão profundo, alguns traumas não têm força suficiente para destruir a essência das relações, apenas modifica-as em certos aspectos.

Anna tem características mais similares às últimas princesas Disney. É nítida a sua semelhança com a Rapunzel. Ela é engraçada, sonhadora, inteligente e, principalmente, faz uma linha “gente como a gente”, acorda desgrenhada e com baba num canto da boca. Na mesma velocidade que Anna pensou estar apaixonada por um príncipe numa espécie de “amor à primeira vista”, logo entendeu nas entrelinhas que aquilo era uma causa secundária em seu caminho. Seu objetivo era encontrar a irmã, aproximar-se dela, entender a diferença tão profunda que as afastava e que dava ao reino aquele aspecto desolador e frio. 

“Seja a boa garota que você sempre teve que ser.
Oculte, não sinta.”

Depois que ocorre o descontrole emocional de Elsa e seus poderes vem à tona trazendo um inverno profundo em todo o reino, tem-se o início do momento que, de fato, diferencia essa princesa de todas as outras das histórias Disney. Mais do que dilemas sobre príncipes, madrastas e reinos, a complexidade que existe em torno da personalidade de Elsa encontra-se nas questões éticas e nas relações de significados e sentidos que a constituem, ou seja, é no seu mundo interior que ocorre a transformação. Elsa deseja o mal do reino e, por isso, o pune com um inverno avassalador? Cansou de ser “a boa garota”, de ser controlada, de ter que se esconder para não perturbar a paz dos outros (esses outros que são tão diferentes dela) e resolveu criar seu código de conduta em seu próprio universo?

“E os medos que uma vez me controlaram
não podem mais me alcançar”

Até então, as princesas Disney, modernas ou tradicionais, aventureiras ou dóceis, engraçadas ou inventivas, ainda não tinham atravessado a ilusória linha entre o bem e o mal. Elsa, como todos nós, tem o mal e o bem nela. Para as pessoas do reino, é uma aberração. Para seus pais, era uma incógnita e, em alguns aspectos, um problema. Para sua irmã, a melhor lembrança de alegria na infância. Para si mesma, talvez fosse apenas uma mulher cansada de uma existência nas sombras.  Elsa não “precisava” de uma transformação, esse não é o verbo correto, na verdade, tudo nela “exigia” isso. Nessa história, não cabia a figura da madrasta má, da bruxa disfarçada de boa velhinha. Elsa carregava em si um pouco desses e de outros arquétipos, assim podia ser a feiticeira temida ou a princesa encantada.

“É tempo de ver o que posso fazer
Para testar os limites e progredir
Sem certo, sem errado, sem regras para mim
Estou livre!”

Com o musical “Let it Go!”, acompanhamos a transformação de Elsa. O momento em que ela aceita sua magia é uma forma de aceitação de quem ela é de fato. E isso provoca uma mudança inclusive visual. As roupas mais pudicas da jovem rainha de um reino que a trata como uma aberração deram lugar às roupas sensuais da “Rainha do Gelo”. Se o mundo não a aceitou, ela resolveu criar seu próprio mundo e nele é soberana.  Com um vestido esvoaçante, cabelo de comercial de shampoo, pernas de fora, jeito e atitude de diva, eis que nasce a primeira Princesa Disney Sensual. E o mundo não acabou.

Em seu reino de isolamento, que é comum em vítimas de preconceito, Elsa pensou ter encontrado o esconderijo ideal. Mas assim como a “boa menina” do início tenha sido apenas uma máscara que outras pessoas lhe colaram à face, a diva da solidão também era um disfarce que ela construiu para sobreviver. Esses disfarces funcionam como artifícios emocionais que erigimos na esperança de sobrevivermos às tempestades que se formam em nosso universo particular. Sair do seu reino de gelo era voltar a um mundo em que a vulnerabilidade, a insegurança e o medo se fariam presentes. Mas não há relação humana isenta desses conceitos.

Na história de Anna e Elsa também é apresentado, ao final, que o ato de amor, longe de ser somente uma viagem narcisista à procura de um reflexo, de um “semelhante”, pode ser um ato de altruísmo, de doação. É esse amor que transforma as irmãs e, com elas, todo o reino.

Referências:

Filme – Ficha Técnica:

Título: Frozen – Uma Aventura Congelante

Direção: Chris Buck, Jennifer Lee

Roteiro: Chris Buck, Jennifer Lee, Shane Morris

Gênero: Animação

Ano: 2013

Artigos e Sites:

[1] http://wildhunt.org/2013/12/disneys-frozen-a-tale-of-two-princesses.html#sthash.BbC6NyKi.dpuf

[2] LUFT, Lya. Múltipla escolha / Lya Luft. – Rio de Janeiro: Record, 2010. 189p.

[3] PERLMAN, D., & PEPLAU, L.A. (1981). Toward a social psychology of loneliness. In S. Duck & R. Gilmour (Eds.), Personal relationships 3: Personal relationships in disorder (pp. 31-55). London: Academic Press. [Reprinted in B. Earn & S. Towson (Eds.), Readings in social psychology. Peterborough, Canada: Broadview Press].

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12 Anos de Escravidão: liberdade ainda que tardia

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Com nove indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Diretor (Steve McQueen), Ator (Chiwetel Ejiofor), Ator Coadjuvante (Michael Fassbender), Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong’o), Roteiro Adaptado (John Ridley), Figurino, Montagem, Design de Produção.

Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
(Mateus 22:39, Bíblia)

“12 anos de escravidão” foi baseado na autobiografia de Solomon Northup (interpretado por Chiwetel Ejiofor), publicada em 1853. Solomon era um cidadão de Nova Iorque que nasceu livre e que vivia em uma situação relativamente confortável com sua família até cair em um embuste em 1841 e ser sequestrado em Washington (capital dos EUA). Depois disso, foi vendido como escravo em Louisiana, local aonde a escravidão ainda era permitida. A história relatada, então, acompanha alguns dos momentos de sua vida nos 12 anos que “sobreviveu” sendo propriedade de fazendeiros no Sul do país.

 

 

Há alguns fatos históricos que são complexos demais para serem assimilados sem um dado contexto, especialmente porque a linha temporal contribui no estabelecimento de uma estranha distância emocional, fazendo com que aquilo que se vivencia no cinema seja esquecido ou atenuado tão logo se saia da sala de projeção, já que parece se tratar de fatos dissociados da nossa época ou da nossa realidade. Assim o que foi visto passa a ter uma conexão fantasiosa, como se fosse mais uma história imaginada por alguém, sem qualquer vínculo com a realidade.

Acredito que o grande mérito desse filme, sob a direção exemplar do inglês Steve McQueen, é nos aproximar dos personagens mostrados na tela e nos fazer pensar sobre as consequências de determinados fatos históricos. Isso porque cada época carrega consigo, cultural e historicamente, uma série de variáveis que afeta de forma profunda sua dinâmica atual, logo refletir sobre isso parece ser extremamente relevante quando tentamos entender a dinâmica de um povo ou de uma comunidade.

 

 

Em imagens que mostram a imensidão do mar em um duro contraste com as amarras que encarceram os homens nos navios, vimos através do olhar de Solomon a diferença perturbadora entre viver como um ser humano e ser tratado como uma coisa. E enquanto alguns dos homens e mulheres que ali estavam nunca tinham sido livres, logo a liberdade era apenas um conceito abstrato e distante, para ele era um absurdo imaginar que seria propriedade de alguém. Ao mesmo tempo em que ele se achava diferente daquelas pessoas por ser livre, sua expressão mostrava um espanto aterrador ao entender que essa pretensa liberdade vivenciada por ele até então era fantasiosa enquanto outros homens permanecessem escravos.

 

 

Em Louisiana, Solomon foi vendido, juntamente com outra escrava, a um fazendeiro local, William Ford (Benedict Cumberbatch).  Ford, no momento da compra, ficou sensibilizado ao separar mãe e filhos, mas ao pensar em sua propriedade e em suas dívidas, mesmo aparentemente compadecido, tomou a decisão mais lógica (para ele): levou Solomon e a jovem mãe (mesmo que esta gritasse em desespero pelos filhos).

 

 

Lá, em sua fazenda, Ford reunia negros e brancos para que estes o acompanhassem na pregação da palavra de Deus. E enquanto a mãe escrava chorava a falta de seus filhos, a esposa de Ford dizia: “logo ela esquece”, já que memória, dor e sentimentos são prerrogativas dos seres humanos, não de escravos. Ou seja, os escravos podiam sentar-se nos bancos da igreja improvisada aos domingos com seus proprietários para ouvir as palavras da Bíblia, mas não podiam ficar com seus filhos, ou ir e vir de acordo com sua vontade.

É essa falta de complacência na apresentação dos personagens que dá a esse filme um tom mais aprofundado, pois o fazendeiro bonzinho, que presenteia Solomon com um violino, é também um fraco, que desaparece com a mãe chorosa para que sua esposa não entre em depressão (já que o som do choro da “escrava” a perturba), e que no primeiro sinal de problema, vende Solomon ao cruel Edviw Epps (numa espetacular atuação de Michael Fassbender), mesmo conhecendo a natureza sensível do “seu escravo” e o poder de destruição física e psicológica do seu amigo fazendeiro.

 

 

É na fazenda de Edviw Epps que Solomon conhece Patsey (interpretada notavelmente por Lupita Nyong’o), que mesmo nascida escrava evoca um comovente sopro de liberdade. Ela suporta o trabalho pesado no campo de forma altiva, só não consegue escapar do fascínio doentio que exerce sobre Epps e da inveja que provoca em sua esposa.

 

 

E é na fazenda de Epps que vemos como os proprietários de escravos podem ser cruéis, especialmente quando usam a religião como meio de persuasão. Enquanto Epps prega aos seus escravos e enfatiza a leitura de alguns versículos de forma a evidenciar a necessidade de subserviência por parte deles, também vai criando artifícios para corroborar com sua ideia de que é um bom homem, a serviço de Deus, cuidando “daquelas criaturas”.

Além disso, a religião passa a ser um mecanismo para combater as frustrações que ele tem em relação ao seu casamento, ao desejo incontrolável que sente por Patsey e sua própria incerteza perante sua moralidade e suas virtudes como um homem de Deus. Isso porque suas plantações são constantemente devastadas por pragas (o que remete à ira do Deus do Velho Testamento). Claro que ele encontra uma forma de interpretar as pragas dos céus de acordo com sua perspectiva torta, então passa a responsabilizar os escravos pelo castigo divino. E esse comportamento torna-o muito parecido com algumas figuras que temos em nosso meio, que são capazes de fazer as maiores atrocidades em nome de um Deus e de um discurso bíblico forjado segundo seus próprios e escusos critérios.

 

 

Epps torna-se ainda mais alucinado e cruel na medida em que sua obsessão por Patsey aumenta, especialmente porque, mesmo tendo posse de seu corpo, não consegue enxergar nela algum tipo de retorno. Acredito que ele nem consegue entender que tipo de retorno gostaria de ter, e talvez seja essa confusão emocional que o torna ainda mais monstruoso.

A violência física é terrível e existem cenas perturbadoras nesse aspecto, mas acredito que a violência psicológica é ainda pior, a forma como vamos percebendo que aquela vastidão luminosa das fazendas do Sul se torna incompatível com a condição abominável de sobrevida daquelas pessoas.

 

 

Solemon teve que suportar o sofrimento, a humilhação, a dor das pessoas que conviviam com ele e a saudade de uma família que parecia existir só em seus sonhos – sem reagir, sem atacar, porque todas as tentativas que presenciou de rebelião foram contidas e resultaram em mortes. Mas, de todas as vidas sofridas apresentadas nessa história, o que achei mais perturbador e tocante foi perceber que a luz que emanava de Patsey, aquela que no início do filme tinha um espírito livre apesar da escravidão, foi paulatinamente encoberta pela brutalidade avassaladora de ser tão cruelmente invadida. A morte, naquele contexto, parecia não ser apenas uma saída adequada, mas a única possibilidade de descanso.

 

 

Por ser baseado em um livro autobiográfico, sabemos de antemão que Solomon consegue sobreviver àquele inferno. Mas, o seu retorno a liberdade enquanto seus amigos ficaram à mercê da estupidez de um sistema absurdo não pareceu uma vitória. E isso se refletiu na jornada que ele iniciou a partir de então, que foi promover uma campanha pela abolição da escravatura em todo o território americano.

Voltando para nosso contexto, sabemos que, apesar de vivermos em um país com uma miscigenação tão intensa, ainda há no Brasil muito preconceito racial latente e, em muitos casos, evidente. E isso não é refletido somente nos discursos patéticos de alguns humoristas em redes sociais, geralmente apoiados por uma legião de seguidores, mas nos perfis das pessoas que ocupam determinados cargos, nos personagens principais das novelas, na política e, especialmente, em ações triviais do nosso cotidiano. Chegamos a um ponto em que não adianta mais propagarmos apenas a ideia de uma liberdade poética, é preciso mostrar, de fato, que há oportunidade para o exercício dessa liberdade.

 

FICHA TÉCNICA:

12 ANOS DE ESCRAVIDÃO

Direção: Steve McQueen
Roteiro: John Ridley
Elenco Principal: Chiwetel Ejiofor, Lupita Nyong’o, Michael Fassbender, Benedict Cumberbatch
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014 (Melhor filme drama)
Screen Actors Guild Awards (Melhor Atriz Coadjuvante: Lupita Nyong’o)
AFI Awards, USA (Melhor Filme)
Austin Film Critics Association (Melhor Ator (Chiwetel Ejiofor), Melhor Atriz Coadjuvante (Lupita Nyong’o), Melhor Roteiro Adaptado (John Ridley))

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ELA: sou onde não penso?

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Com cinco indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Roteiro Original (Spike Jonze), Trilha Sonora Original (William Butler e Owen Pallett), Canção Original (“The Moon Song”, Karen O (música e letra) e Spike Jonze (letra)), Design de produção.

“Tornou-se terrivelmente óbvio que a nossa tecnologia excedeu a nossa humanidade.”  (Einstein)

 

Einstein disse certa vez: “o meu lápis é mais inteligente do que eu” [1].  E essa frase pode ser interpretada sob vários aspectos, por exemplo, segundo Popper, poderia ser compreendida como: “o que é expresso, ou ainda melhor, o que é escrito, tornou-se um objeto que podemos criticar e investigar a procura de erros” [2]. Mas, fazendo uma interpretação mais livre e substituindo lápis por computador, podemos nos deparar com o desafio de Turing: “especifique a maneira pela qual você acredita que um homem é superior a um computador e eu montarei um computador que refutará a sua crença” [1].

A princípio, pode se achar que ELA trará novamente o embate entre Humanos e Máquinas e as velhas discussões sobre o quão tecnológicos estamos e o quanto isso se tornou um fator decisivo para o abismo que parece existir em torno das relações humanas. Mas, o surpreendente roteiro de Spike Jonze (de “Quero ser John Malkovich”) vai além dessas questões, pois traz à tona temáticas que envolvem um contexto bem menos evidente e, talvez, por isso mesmo, mais desafiador, que tem relação com os sentidos que erigimos a partir das relações que construímos entre pessoas e coisas, e como esses sentidos podem ser alterados por uma série de influências tecnológicas, históricas e culturais.

 

“Às vezes acho que já senti tudo que eu deveria sentir. E que de agora em diante não sentirei mais nada novo. Somente versões menores do que eu já senti.” (Theodore)

ELA conta a história de Theodore (Joaquin Phoenix), um homem recém-separado que trabalha numa empresa cujo ramo de negócio é escrever cartas de amor.  Ele está inserido em um mundo não muito diferente desse que vivenciamos. Um mundo em que as pessoas parecem se divertir mais sozinhas com seus apetrechos eletrônicos do que em relações pessoais. Cada pessoa carrega seu dispositivo móvel e comunica-se com o aparelho através da voz. Então, o mundo que acompanhamos nesse filme não é marcado pelo silêncio, muito pelo contrário, as pessoas conversam o tempo todo, no trabalho, em casa, enquanto andam nas ruas, quando pegam o metrô. A questão é que esse diálogo encontrou o meio e o receptor ideal, fazendo com que a estrutura de comunicação se limite ao próprio indivíduo e sua máquina.

No mercado de software atual, têm-se alguns Sistemas Operacionais (SO) e cada um vem acompanhado de muitas funcionalidades. Mas, no tempo/espaço retratado no filme essas funcionalidades se amplificaram, pois a partir de uma série de técnicas de Inteligência Artificial, as empresas de tecnologia já não vendem apenas um SO, elas vendem um software com “alma”, ou seja, um programa capaz de aprender, de ter intuição.

Hoje, temos várias técnicas de uma área da computação denominada “Aprendizagem de Máquina” capazes de fazer com que determinadas relações potencialmente novas sejam criadas a partir de uma base inicial. No filme, essas técnicas estão mais evoluídas e são apresentadas como uma possibilidade de saída de um ambiente cinza (que é predominante na fotografia inicial) para um contexto mais desafiador e dinâmico. E as empresas vendem seus produtos através de campanhas de marketing que fazem uso de questões universais: Quem é você? O que você pode ser? Aonde você pode chegar?

 

“Somos todos feitos de matéria. Isso me faz sentir que estamos sob o mesmo cobertor macio e acolhedor. E tudo abaixo dele tem a mesma idade. Temos todos 13 bilhões de anos.” (Samantha)

 

Atraído pela promessa de uma vida menos monótona, Theodore, como a maioria das pessoas, compra o novo Sistema Operacional. Cada SO se nomeia, de acordo com sua base de dados, das características do seu interlocutor ou a partir do que assimilam do ambiente no momento que sua instalação é concluída. Assim, conhecemos Samantha (voz de Scarlett Johansson), a divertida e inteligente versão do SO que Theodore comprou. E sua individualidade já vem com o próprio nome, ela não faz parte de um lote de Samanthas. Ela decidiu se chamar assim não apenas porque encontrou esse nome numa extensa base de dados de “nome X significado”, mas porque gostou da forma como o nome soava ao pronunciá-lo.

Geralmente, na computação, os programas utilizam uma lógica baseada em dois valores: 0 ou 1 (verdadeiro ou falso). E isso faz com que as situações sejam menos flexíveis, logo, não há lugar, a priori, para conceitos como intuição e inteligência. Mas, o que é interessante ressaltar é que muitas pessoas também se vinculam a um padrão de comportamento que tende a ser apresentado em apenas dois polos: certo ou errado. E é essa aproximação do humano com a lógica rasa do “zero e um” e o distanciamento da máquina desse tipo de algoritmo que marca a evolução dos Sistemas Operacionais do filme, em contraposição com a desestruturação emocional dos indivíduos.

 

“Consigo sentir o medo que você carrega, e queria ajudá-lo a deixar isso de lado. Porque, se conseguisse, acho que você não se sentiria mais tão sozinho.” (Samantha)

 

Samantha é divertida, tem sede por aprender, ama aquele homem que a ensina, que sorrir através do som do sorriso dela, que mostra-lhe o mundo, que possibilita que novas relações sejam estabelecidas em sua memória virtual. E na medida em que a máquina se assemelha ao homem, tem-se o estabelecimento de uma série de conflitos. Samantha não sabe se aquilo que sente é real, se aquilo que percebe do mundo tem coerência, se ela só é um algoritmo muito bem programado ou se tem algo mais, se há um espírito na máquina que a move, que a diferencia, que a torna especial.

Enquanto isso, Theodore, que não consegue manter um relacionamento com as mulheres que fazem parte do seu cotidiano, por temer compromisso, por temer deparar-se com uma situação que não poderá controlar, apaixona-se por Samantha (seu Sistema Operacional), que é um sopro de novidade e vivacidade, coisas que não existem muito nas pessoas que o cerca.

 

“Ela não é apenas um computador.” (Theodore)

 

E o relacionamento entre um Sistema Operacional e um homem, da forma como o roteiro é conduzido, parece ser um caminho não apenas possível, mas também coerente. E assim, aquelas pessoas que viviam falando com suas máquinas naquele mundo cinza, passam a se divertir com elas, criam intimidade, rompem barreiras físicas, já que, em tese, parece que vigora a máxima de Descartes “penso, logo existo”. Só que esse pensamento é estendido através da ideia de que se pensar é ser, então, é possível criar também a realidade mais adequada para essa existência.

Então, o casal começa a criar caminhos para o romance percorrer. Samantha, que tem ao seu alcance não apenas uma base de dados, mas a possibilidade de criar novos arranjos mentais dando margem a uma avalanche de inventividade e sensibilidade, passa a tornar provável o “impossível”. Em um dos momentos mais tocantes do filme, vimos que Ela apresenta ao Theodore uma música que compôs. Essa música é o registro da imagem ausente, é uma metáfora da foto do casal que, em tese, não poderia existir pelo detalhe aparentemente tão insignificante da ausência de forma de um deles.

 

“Só estamos aqui por um breve momento. E, enquanto estiver aqui, vou me permitir sentir alegria.”(Amy)

 

Mas, se a evolução em nosso mundo físico é constante, mas “lenta” (quando consideramos o limite de uma vida), no mundo virtual isso é radicalmente modificado. Na ausência do físico, a velocidade se expande.

Assim, se por um lado os humanos estão cada vez mais dependentes da consciência individual que existe em seus computadores, as máquinas estão extrapolando a máxima defendida por Vygotsky “uma palavra é um microcosmo da consciência humana”. Isso porque, se há uma capacidade de processamento que permite fazer relações cada vez mais rápidas e mais complexas, a palavra (no contexto em que compreendemos a linguagem) torna-se insuficiente para compor o tipo de consciência que existe na máquina. E isso provoca o início de uma nova ruptura, só que com uma diferença crucial, o mais evoluído já não é o humano. Samantha, nesse contexto, estende a noção de amor, desapega-se de questões relacionadas à posse, que é tão comum nas relações humanas, e constrói uma rede de conhecimento que vai além da compreensão humana.

 

“É como se eu estivesse lendo um livro. E é um livro que eu amo profundamente, mas agora estou lendo-o devagar. As palavras estão muito distantes umas do outras e o espaço entre elas é quase infinito. Eu ainda posso sentir você e as palavras da nossa história. Mas é neste espaço infinito entre as palavras que eu me encontro agora. E é um lugar que não está no mundo físico.” (Samantha)

 

“O ‘eu’ e o ‘ego’ tem sido frequentemente comparado a um iceberg, sendo o ‘eu’ inconsciente a vasta parte submersa, e o ‘eu’ consciente a parte que se projeta acima da superfície da água” [1]. Tendo essa ideia como base, o filme apresenta de forma primorosa que o dualismo de Descartes não é suficiente para explicar o ser humano. Logo, parece mais coerente buscar na frase de Lacan uma maneira sucinta de expressar essa complexidade: “Penso onde não sou, logo sou onde não penso”.

 

“Qualquer pessoa que se apaixone é uma aberração. É algo louco de se fazer. Uma forma socialmente aceitável de insanidade.” (Amy)

 

Assim, parece que Thedore, ao final, busca na amizade que construiu com Amy ao longo da vida, mesmo que conscientemente não consiga definir totalmente essa relação, uma forma de sobreviver às incertezas, contradições, medos e fragilidades que definem a condição humana. E se há algum tipo de mistério em torno do “eu” e da “existência”, mesmo em um mundo em que máquinas pensam com mais propriedade que humanos, então é justamente nessa ausência de entendimento que reside a esperança. Procuramos tanto tecer uma rede segura em torno da consciência que deixamos pouco espaço para escutar aquilo que está submerso, que talvez seja a parte mais reveladora da nossa natureza.

REFERÊNCIAS:

[1] POPPER, Karl; ECCLES, John. O Eu e seu Cérebro. 2ª. Edição. Campinas, SP: Papirus; DF: Universidade de Brasília, 1995.

[2] POPPER, Karl. A vida é aprendizagem : epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Lisboa: Edições 70, 2001.

FICHA TÉCNICA:

ELA

Título Original: Her
Direção: Spike Jonze
Roteiro: Spike Jonze
Elenco Principal: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Amy Adams, Rooney Mara
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014 (Roteiro Original)
Austin Film Critics Association (Filme, Roteiro Original, Trilha Sonora e Prêmio Honorário à Scarlett Johansson (pela atuação destaque – Voz))
Chicago Film Critics Association Awards (Roteiro Original, Trilha Sonora)

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Conhecimento e imaginação no universo feminino retratado em “A Bela e A Fera”

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“A Bela e a Fera” tem sua origem em um romance escrito no século II d. C., “ The Golden Ass” (O Asno de Ouro), do erudito romano Lucius Apuleio. Mais especificamente, a história é baseada  em um dos capítulos do livro intitulado “Eros e Psique”. De uma forma bem sucinta, [1] esse capítulo conta a  história de uma jovem de bela aparência que foi vítima do ciúme e da fúria de Afrodite (a deusa do amor e da beleza). Tudo isso ocorreu porque Afrodite ficou indignada pelo fato de alguns homens (tão humanos) se deixarem embriagar pelas qualidades da moça e, pasmem,  terem cortejado uma simples mortal como se esta fosse uma deusa. Assim, Afrodite enviou seu filho Eros (o deus do Amor) para atingir a pobre Psique com uma de suas flechas fazendo-a se apaixonar pela criatura mais monstruosa existente. Mas, claro, as coisas não ocorreram bem da forma que Afrodite desejou.

Há, ainda, uma versão européia mais moderna da história de Eros e Psique [2],  escrita por Madame Gabrielle de Villeneuve, na França, em 1740.  Esse conto de teor adulto “La Belle et La Bete” foi adaptado para o universo infantil alguns anos mais tarde pela, também francesa, Madame Le Prince de Beaumont. Villeneuve e Beaumont, através de sua Belle, mostraram que mais do que beleza física ou  da necessidade de buscar a felicidade nos braços de um príncipe altivo, a maior qualidade da sua personagem estava na capacidade de tomar suas próprias decisões baseada na bondade de sua alma. E, então, retornamos ao mito da Psique, que segundo a mitologia grega é a personificação da alma. Esses contos do século XVIII assemelham-se mais, no que tange à essência da Bela, com a história que vimos no filme da Disney em 1991, que usarei como base para essa análise.

“Essa garota é muito esquisita
O que será que há com ela?
Sonhadora criatura
Tem mania de leitura
É um enigma para nós a nossa Bela”
Para os habitantes de uma pequena vila francesa em meados do século XVIII, a Bela era um enigma. Em uma época que a maioria (quase absoluta) das mulheres era destinada ao casamento e a uma vida de obediência ao seu marido e senhor, eis que uma moça estranha vagava pelas ruas da vila com um livro nas mãos. Bela não era apenas uma leitora voraz, também tinha ideias próprias sobre a vida e o mundo.

Um dos grandes diferenciais da Bela em relação às outras princesas da Disney apresentadas antes (Branca de Neve, Cinderela, Bela Adormecida e Pequena Sereia), era que seu pai, longe de ser um rico ilustre ou um grande rei, era “apenas” um pobre inventor criativo. Para o povo da vila, ele não passava de um velho excêntrico que fazia coisas bizarras e que não dava limites para uma filha independente demais e com ideias estranhas demais para uma mulher.

Gaston: Como você pode ler isto? Não há figuras!
Bela: Bem, algumas pessoas usam a imaginação.

Uma das características mais significativas da Bela é seu amor pela leitura. A possibilidade de ter alguém por perto que refletisse sobre o mundo e desafiasse o outro através do discurso, como Bela fazia com o Gaston (o homem perfeito e desejado pelas mulheres da vila), provocava constantemente algum tipo de desconforto.  “Não é certo uma mulher ler. Logo ela começa a ter ideias … a pensar”, dizia Gaston.

E Bela fazia justamente aquilo que ele temia, ela pensava e, mais do que isso, ela imaginava um mundo diferente, pois ela sabia que tinha capacidade para sair dos padrões pré-estabelecidos e moldar uma nova realidade. Porém, o que mais irritava Gaston era entender (ainda que inconscientemente, pois processar pensamentos profundos não era bem seu forte) que, mesmo com sua aparente beleza e destacável força, aos olhos dela, ele era apenas um grande perdedor.

“Madame Gaston?
Casar com ele?
Madame Gaston,
mas que horror!!!
Jamais serei esposa dele!
Eu quero viver num mundo bem mais amplo.”

Ainda hoje, as meninas que passam muito tempo com seus livros e estudos são associadas, em vários filmes e programas de TV, a determinados estereótipos, como aqueles que vêm em forma de uma mulher estranha que usa grandes óculos, tem gestos estabanados e, principalmente, um comportamento antissocial. E, muitas vezes, são apresentadas em análises psicológicas superficiais como portadoras do Transtorno de Personalidade Esquizoide. Esse transtorno, segundo [3], “é definido como um transtorno de personalidade primariamente caracterizado por falta de interesse em relações sociais, tendência ao isolamento e à introspecção e frieza emocional e, simultaneamente, por uma rica e elaborada atividade imaginária interior”.

A Bela, em alguns sites, é apontada como portadora desse transtorno, pois era tida como antissocial pelas pessoas da sua cidade, já que não queria se relacionar com o homem mais desejado pelas mulheres da vila e criava um mundo que só existia em sua mente. Ao contrário disso, acredito que a apresentação de uma heroína da Disney criativa e independente como a Bela pode suscitar discussões sobre determinados pré-conceitos relacionados à mulher inteligente e a necessidade de seguir padrões de comportamento tido como “normais”.

Marissa Mayer – CEO da Yahoo!

Uma mulher ter o status de “geek” ou “nerd” no século XXI já não é mais sinônimo de viver em isolamento social, muito menos de ter fracasso profissional ou pessoal. Um exemplo disso é a Marissa Mayer, CEO e Presidente da Yahoo!, graduada e mestre em Ciência da Computação pela universidade de Stanford. Antes de ir para a Yahoo, ela trabalhou na Google e algumas patentes registradas pela empresa na área de Inteligência Artificial advêm de suas pesquisas.

É claro que o rosto bonito como o de uma princesa da Disney chama a atenção, mas o seu sucesso está vinculado especialmente à sua inteligência, sua competência profissional e a capacidade de liderança. Desde sua contratação pela Yahoo, em 2012, foi responsável por um aumento de 100% nas ações da empresa [4]. E, assim, a “bela” tem se destacado no mundo dos negócios voltados para a tecnologia, um mundo muitas vezes associado ao universo masculino, talvez pela exígua quantidade de mulheres em cursos superiores dessa área.

Voltando à nossa Bela…

Quando seu pai foi capturado pela Fera, ela assumiu o seu lugar no castelo, mesmo impactada com a aparência da criatura. Fez isso por ser extremamente protetora com aqueles que ama. Na verdade, sua curiosidade em relação à Fera e aos estranhos objetos falantes do castelo era maior do que seu medo. E essa é uma mudança marcante nos filmes de princesa da Disney, pois mesmo que a Bela esteja sendo mantida em um cárcere, ela tem o controle do seu destino e, principalmente, do destino da Fera. Como destacam Henke e Umble [5], ela é a primeira heroína da Disney que não se apaixona por alguém à primeira vista.

Mas, segundo [6], apesar dos homens já não terem o poder total sobre as mulheres e a relação entre eles ter se tornada mútua e dinâmica, a Bela e a Fera ainda “se centra na busca de uma mulher pela liberdade, que, paradoxalmente, só é encontrada quando ela descobre o sucesso no amor”. Particularmente, essa é uma afirmação que considero questionável, justamente porque a liberdade de pensamento é apresentada como característica da Bela desde o início de sua história, inclusive ela é capaz de enxergar a beleza da Fera porque consegue ir além dos padrões estipulados pelo contexto em que estava inserida.

Mas, não são apenas análises amenas que compõe o universo de “A Bela e a Fera”, na net existem várias discussões sombrias sobre a personalidade da Bela. A principal delas tem relação com o fato da Bela ter sido acometida pela Síndrome de Estocolmo. Segundo [7], “a Síndrome de Estocolmo é um estado psicológico particular desenvolvido por algumas pessoas que são vítimas de sequestro. A síndrome se desenvolve a partir de tentativas da vítima de se identificar com seu raptor ou de conquistar a simpatia do sequestrador”.

A associação apresentada em diversos sites pode ser assim resumida: a Bela é capturada pela Fera e, em seguida, inicia um envolvimento emocional com o seu algoz, vivendo uma espécie de relacionamento abusivo, que é vendido no filme da Disney como um tipo de romance ideal.

Mas, quando se faz uma análise dessa natureza não se pode esquecer o contexto sobre o qual a história foi construída. De acordo com o que é apresentado no filme da Disney, a Bela, em momento algum, busca a simpatia da fera, nem ele tem o tipo de personalidade que se deixaria levar pela sua beleza ou pelo simples desejo de deixar de ser fera. Isso é nítido quando é mostrada a cena da fuga da Bela do Castelo. A Fera vai atrás dela e salva-a dos lobos, mas não exige seu retorno, inclusive, algum tempo depois, exprime verbalmente que ela está livre para voltar à sua aldeia. Ele faz isso porque é incapaz de aprisioná-la, não apenas porque ele a conheceu melhor, mas porque se conheceu melhor.

A Bela sempre interage com a Fera de igual para igual, nunca como uma prisioneira. Ele, por sua vez, vai se transformando (ou trazendo à tona algo que já fazia parte dele) quando está em sua companhia, torna-se mais suave, sai do seu próprio mundo e tenta conhecer o mundo dela. Há entre eles uma semelhança que surge justamente pelo fato de serem encarados como diferentes pela maioria. E, ao contrário do Gaston, que só via a si mesmo quando olhava para a Bela, a Fera viu nela algo diferente, que o fez entender, inclusive, que presente poderia lhe tocar o coração. Assim, ao invés de lhe presentear com chocolates, flores ou promessas (como tinha sugerido o Relógio), coloca a sua disposição uma biblioteca.

“A Bela e a Fera” é uma história de amor, logo mesmo que muitos achem que a personalidade singular da Bela foi reduzida a mais um estereótipo “Disney” quando, ao final, ela se casa com o príncipe, ainda podemos acreditar que seu espírito livre e sua busca pelo conhecimento continuam presentes. Não temos uma sequência do “viveram felizes para sempre”, assim não saberemos se ela construiu várias bibliotecas pelo país, se foi responsável por desenvolver uma inovação tecnológica de impacto mundial ou se criou simplesmente uma dúzia de filhos, frutos do amor com o fera-transformado-em-príncipe-gato. Mas, talvez, ela tenha feito as três coisas (e muito bem), já que seguir  um caminho não impede necessariamente a possibilidade de percorrer o outro.

Referências:

Filme – Ficha Técnica:

Título: A Bela e a Fera / Beauty and the Beast  (Original)
Direção: Gary Trousdale, Kirk Wise
Elenco: Paige O’Hara, Robby Benson, Richard White
Roteiro: Linda Woolverton
Gênero: Animação
Ano: 1991

Artigos e Sites:

[1] http://www.pitt.edu/~dash/cupid.html

[2] http://www.humanities360.com/index.php/fairy-tale-analysis-beauty-and-the-beast-2-6032/

[3] http://pt.wikipedia.org/wiki/Transtorno_de_personalidade_esquizoide

[4] http://www.fool.com/investing/general/2013/12/21/techs-third-best-ceo-in-2013-yahoos-marissa-mayer.aspx#.UrZ4T_RDuM5

[5] MATYAS, Vanessa. TALE AS OLD AS TIME: A Textual Analysis of Race and Gender in Disney Princess Films. Disponível em: http://digitalcommons.mcmaster.ca/cgi/viewcontent.cgi?article=1005&context=cmst_grad_research

[6] HENKE, Jill Birnie; UMBLE, Diane Zimmerman Umble.  And She Lived Happily Ever After…The Disney Myth in the Video Age?. Mediated Women: Representations in Popular Culture. Ed. Marian Meyers. Cresskill, New Jersey: Hampton, c1999.

[7] http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_Estocolmo

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Trapaça: as pessoas acreditam no que querem acreditar

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Com dez indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Diretor (David O. Russell), Melhor Ator (Christian Bale), Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Ator Coadjuvante (Bradley Cooper), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro Original (Eric Warren Singer and David O. Russell), Melhor Edição (Jay Cassidy e Crispin Struthers), Melhor Figurino e Melhor Direção de Arte.

 

Quando você era jovem e seu coração era um livro aberto
Você costumava dizer “viva e deixe viver”
Mas se este mundo de constantes mudanças no qual vivemos
Faz você se entregar e chorar…
Diga “viva e deixe morrer”.
(Live and Let Die, Paul McCartney)

Em American Hustle (Trapaça), o mundo é cinza, logo seus personagens não podem ser enquadrados em uma determinada categoria moral, eles estão quase sempre flutuando entre um ponto e outro, movidos por paixões, poder, dinheiro e, especialmente, pela vaidade.

A história é vagamente baseada em fatos reais, mais especificamente no caso ABSCAM, que abalou (como sempre) os Estados Unidos em meados de 1978. De uma forma bem sucinta, essa história tem relação com uma operação do FBI, que juntamente com alguns vigaristas condenados, utilizou um falso sheik árabe para trazer à tona uma série de subornos no congresso americano.

 

 

A trama do filme se inicia no momento dessa operação e é conduzida (por um tempo) em flashbacka partir do ponto de vista de Irving Rosenfeld (Christian Bale) e Sydney Prosser (Amy Adams), uma dupla sofisticada de trapaceiros, que para evitar uma condenação aceita colaborar com Richie DiMaso (Bradley Cooper), um ambicioso agente do FBI.

Um dos aspectos que vem à tona no filme e que, de certa forma, direciona a maioria das personagens é a questão da “motivação”. Há um excesso de vontade, de desejo, de ímpeto em cada indivíduo dessa história, seja na resolução de uma dada questão e em se fazer notar dentro de um determinado ambiente ou no sonho de ter sucesso pessoal e profissional.

A motivação é encarada como uma espécie de força interna que emerge, regula e sustenta todas as nossas ações mais importantes. (Vernon, 1973, p.11).

… a motivação é o conjunto de mecanismos biológicos e psicológicos que possibilitam o desencadear da ação, da orientação (para uma meta ou, ao contrário, para se afastar dela) e, enfim, da intensidade e da persistência: quanto mais motivada a pessoa está, mais persistente e maior é a atividade. (Lieury & Fenouillet, 2000, p. 9).

Mas o problema está justamente no excesso, ainda que sejamos propensos a acreditar que a motivação como forma de atingir um objetivo nunca é demais. A condução das personagens no filme nos mostra que esse excesso pode ter um efeito contrário. E isso, longe de ser um paradoxo, é um fato que podemos observar em diversas trajetórias reais de “sucesso” e “declínio”, como é o caso do ex-ciclista americano Lance Armstrong, e do lobo de Wall Street, Jordan Belfort.

 

 

Christian Bale, novamente em uma atuação brilhante, mostra-nos de forma intensa a personalidade complexa de Rosenfeld. O homem que passa horas tentando organizar os fios dos cabelos para disfarçar a careca, não tem problema em expor seu corpo notadamente acima do peso. Rosenfeld entendeu, ainda criança, o papel que deveria desempenhar na vida e moveu-se no sentido de construir a pessoa que queria ser.

Fiquei diferente do meu pai. Virei um trapaceiro, de verdade. Da cabeça aos pés. Eu sobreviveria a qualquer custo. Pelo que sei, as pessoas se trapaceiam para conseguir o que querem. Até trapaceamos a nós mesmos. Nós nos convencemos do que nem precisamos ou queremos. Nós nos disfarçamos. Deixamos os riscos de lado, a verdade inconveniente.

 

Ao seu lado está Sydney Prosser (Amy Adams, que equilibra de forma notável alguns aspectos da personagem: sensualidade, inteligência e romantismo), e a impressão que temos é que, de certa forma, essas duas pessoas (Rosenfeld e Sydney) são extremamente similares. Notamos isso tanto na forma como eles constroem suas próprias figuras e as apresenta ao mundo, quanto na crença que possuem no amor que os une ou na capacidade de usar a inteligência a partir da sensibilidade de entender o contexto em que estão inseridos.

 

“Nós trapaceamos de um jeito ou de outro só para suportar a vida.” (Irving Rosenfeld)

 

De acordo com o crítico Steven Rea [1], American Hustle é um filme construído sobre a pedra fundamental do sonho americano: a reinvenção. Se você não está feliz com quem você é, ou em como as pessoas pensam que você é, então vá em frente e torna-se outra pessoa. Vale qualquer coisa para sobreviver e prosperar.

Se considerarmos isso, Richie DiMaso (o agente do FBI) é quem mais almeja tal intuito. A princípio, pensamos que seu objetivo é colocar os “bandidos” atrás das grades, mas, rapidamente, percebemos que sua motivação maior não é a justiça, é a fama que pode vir agregada a isso. Essa fama lhe salvará de uma vida medíocre, de um casamento circunstancial, das garras de uma mãe autoritária e da sombra de uma existência patética.

 

 

Tudo em DiMaso é forjado para tal fim, desde os cachos em seu cabelos (que é naturalmente liso), até as tentativas de mostrar-se mais inteligente do que os trapaceiros que estão sob o seu comando. Sua insegurança é demostrada na frase que ele insistentemente repete a Rosenfeld: “Você está trabalhando para mim agora“.  A necessidade em apoderar-se de algumas características daqueles que persegue confundiu até seus sentimentos, por isso deixou-se seduzir por Sydney.

O desejo sem controle provoca uma ilusão de poder. Assim, DiMaso inicia um movimento perigoso no qual começa a justificar qualquer atitude, por mais bizarra que seja, em prol da satisfação de sua vontade. Ele acredita até o fim que “tudo está sob controle” e é isso que provoca sua ruína.

 

“Você não é nada para mim até que seja tudo.” (Sydney Posser)

 

Já em Sydney Posser percebemos um tipo diferente de desejo, ainda que este seja tão intenso quanto o vivenciado por DiMaso. Depois de ser presa, de ter que criar um plano mirabolante para colocar um político (querido por todos) na cadeia e ter seu sonho de viver com a pessoa que ama desmoronar pela relação que este tem com uma esposa a beira de um ataque de nervos, ela precisa criar artifícios para reinventar-se. Nesse novo mundo que ela cria, não há espaço para mentiras, nem para meio termos. Parece que o mundo cinza, enfim, precisa de cor, pois o efêmero pode ser angustiante, às vezes.

 

 

A esposa de Rosenfeld, Rosalyn (interpretada de forma exemplar por Jennifer Lawrence) é uma explosão emocional, oscila entre a depressão e a euforia. Não tem muito controle sobre suas ações, prova disso é que está constantemente provocando incêndios domésticos. Mas, em contrapartida, sabe muito bem que tipo de pessoa é. De certa forma, ao falar sobre seu gosto excêntrico pelo cheiro de uma base de unha, que é algo entre o “doce e o azedo”, entre o “podre e o irresistível”, está falando sobre si mesma e sobre o mundo que a cerca.

 

 

Sydney pensava que Rosalyn era mais uma maluca egoísta que usava o filho para manter seu casamento fracassado. Mas o embate entre as duas faz com que ela entenda que há muitas camadas escondidas na personalidade daquela jovem mulher. Novamente, tem-se “o cinza” mostrando-nos ironicamente que a percepção que temos do mundo dos outros nem sempre reflete de fato aquilo que o outro é. Talvez o inferno não seja os outros (desculpe-me Sartre), ao menos nesse momento estou mais propensa a concordar com Melville em MobyDick: “o inferno foi uma ideia nascida em consequência de uma indigesta maçã”.

 

 

American Hustle é um espetáculo visual e sonoro. A reconstituição da década de 1970 é fantástica, assim como a forma que corajosamente David O. Russell usa a câmera lenta em alguns momentos para construir a ideia de que as ações que realizamos em nossa linha de tempo (tão transitória) são, em certos aspectos, cruciais para os rumos que tomamos em nossa vida, ou seja, podem resultar em consequências não apenas encadeadas, mas também duradouras.

 

REFERÊNCIAS:

[1] http://www.philly.com/philly/entertainment/movies/20131220_A_marvelous_trip_in_the_way-back_machine.html

LIEURY, A. & FENOUILLET, F. (2000). Motivação e aproveitamento escolar. Tradução de Y. M. C. T. Silva. São Paulo: Loyola. (trabalho originalmente publicado em 1996).

VERNON, M. D. (1973). Motivação humana. Tradução de L. C. Lucchetti. Petrópolis: Vozes. (trabalho original publicado em 1969).

 

FICHA TÉCNICA:

TRAPAÇA

Título Original: American Hustle
Direção: David O. Russell
Roteiro: Eric Warren Singer and David O. Russell
Elenco Principal: Christian Bale, Amy Adams, Bradley Cooper, Jennifer Lawrence, Jeremy Renner
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014: Melhor Filme, Melhor Atriz (Amy Adams), Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence)
Screen Actors Guild Award: Melhor Elenco
New York Film Critics Circle: Melhor Filme, Melhor Atriz Coadjuvante (Jennifer Lawrence), Melhor Roteiro (Eric Warren Singer and David O. Russell)
Hollywood Film Festival: Melhor Figurino, Melhor Design de Produção

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O Lobo de Wall Street: poder, vício e manipulação

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Com cinco indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Diretor (Martin Scorsese), Ator (Leonardo DiCaprio), Ator Coadjuvante (Jonah Hill) e Roteiro Adaptado (Terence Winter).

 

“O Lobo de Wall Street” é uma adaptação do livro de memórias de Jordan Belfort (interpretado por Leonardo DiCaprio), um corretor da bolsa, de origem humilde, que construiu um império financeiro e extravagante no final do século XX a partir de especulações na bolsa, investimentos escusos, lavagem de dinheiro e fraude de títulos. Mas, o filme é, antes de qualquer coisa, um panorama cruel e, muitas vezes, desagradável dos excessos, compulsões e vícios que estão no subsolo desses impérios econômicos.

Belfort tenta, inicialmente, iniciar sua carreira numa empresa de Wall Street, no entanto, acaba sendo despedido por causa do crash do mercado em 1987, o pior desastre econômico dos EUA desde a queda da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929. Assim, ele precisa se reinventar, e o faz graças a uma característica que o diferencia da maioria, a capacidade de liderança e de fazer as pessoas acreditarem nelas mesmas, mesmo sem compreender a extensão do contexto em que estão inseridas. E assim ele cria sua própria empresa, a Stratton Oakmont, juntamente com alguns conhecidos, todos habituados (ainda que em um ambiente diferente) a lidar com vendas e drogas, uma combinação especialmente atrativa para Belfort.

O braço direito de Belfort é Donnie Azoff (Jonah Hill), uma daquelas pessoas que poderia facilmente passar o resto da vida trabalhando em um restaurante, cheirando cocaína, sendo um pai de família mediano e um marido zeloso. No entanto, a amizade com Belfort coloca-o em um universo totalmente diferente e, de certa forma, suas atitudes e seu comportamento fazem com que venha à tona uma figura sem escrúpulos, sem ética e emocionalmente instável. Sua amizade torna Jordan ainda mais dependente, inclusive de drogas pesadas (como o crack). E sua forma de agir no impulso, apenas para mostrar que é o senhor de uma dada situação, ajuda a evidenciar os crimes cometidos na empresa, contribuindo para as investigações conduzidas pelo FBI e para a consequente derrocada de Belfort.

 

 

Em vários momentos do filme, as cenas são desconcertantes, porque não há, por parte da direção ou do roteiro, tentativa de minimizar o cenário aterrador por detrás dos jogos de poder de Wall Street. Assim, é possível vermos anões serem lançados como meros objetos em um alvo no meio da firma, e isso é feito simplesmente para garantir a diversão dos marmanjos presente e criar neles uma vontade de ultrapassar qualquer tipo de limite.

 

 

No final do expediente, ou mesmo no meio de uma tarde qualquer, vimos mulheres contratadas para as orgias sexuais dos funcionários da empresa. Assim, enquanto os corpos nus das mulheres se transformam em recipiente de cocaína, de forma a garantir a satisfação dos homens de negócio e suas necessidades primitivas de demarcação de território e abuso de poder, Belfort vai construindo seu império. Ele é o mentor da equipe e os ensina a manipular potenciais clientes através de ligações telefônicas com promessas de realização de fantásticos negócios.

 

 

Leonardo DiCaprio mostra-nos todas as nuances do personagem, desde sua compulsão por sexo e sua dependência em vários tipos de drogas, até em seu cotidiano conturbado com sua segunda esposa (Margot Robbie). Aos poucos, vamos percebendo que o Lobo feroz, imbatível e incansável vai perdendo o controle sobre sua vida. Já não é capaz de dominar a esposa, é nitidamente um pai irresponsável, por expor a criança aos seus momentos de alucinação e fraqueza, e precisa decidir entre ir para a cadeia como um herói (em sua concepção) ou trair seus amigos de forma a diminuir sua pena.

 

 

Em meio aos discursos inflamados de Belfort para seus funcionários ávidos por uma figura que represente um poder e uma liberdade que eles notadamente não possuem, vimos o quanto é fácil, para alguns, a manipulação das massas. Numa breve revisão histórica, percebemos o quanto essas figuras estão presentes nas mais variadas épocas e lugares. Parece que, desde sempre, a humanidade carece de modelos de liderança. Essa carência e desejo tornam-se mais preponderantes justamente quando as pessoas estão mais fragilizadas. Por isso, vimos que a Alemanha, no final da Primeira Guerra Mundial, derrotada e humilhada, foi o cenário ideal para Hitler formar sua legião de carrascos. E, ainda hoje, nos deparamos com líderes “religiosos” usando a fraqueza dos fiéis como forma de exploração psíquica e financeira. Ou seja, há muitos lobos em nosso meio.

 

 

Por mais desagradável que esse filme soe para muitos, e eu entendo isso, parece-me que, algumas vezes, é interessante nos depararmos com a parte mais sombria que existe por detrás do sonho de ser um vencedor em um mundo com poucas oportunidades. E isso se torna uma jornada mais complexa especialmente quando nos deparamos com as ditas “inteligências múltiplas” sendo usadas para manipular e criar cenários cujas leis morais e limites são definidos segundo dois aspectos: poder e dinheiro.

É isso que Belfort diz inicialmente, ele quer ser rico, ele gosta de ser rico, pois mesmo drogado e cercado por indivíduos monopolizáveis e fracos, ter uma convulsão numa mansão, com uma Ferrari na garagem, é um cenário mais desejável e, segundo ele, bem mais atrativo. Não é atoa que Jordan Belfort (a pessoa que inspirou o personagem), atualmente, tornou-se um palestrante motivacional e, para isso, ele usa aquilo que mais sabe fazer: liderar (ou seria manipular?) pessoas. É a vida real mostrando-se mais irônica do que qualquer roteiro saído simplesmente da nossa imaginação.

FICHA TÉCNICA:

O LOBO DE WALL STREET


Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Terence Winter
Elenco Principal: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Matthew McConaughey, Kyle Chandler
Ano: 2013

Alguns Prêmios:

Golden Globe 2014 (Melhor Ator: Leonardo DiCaprio)
Broadcast Film Critics Association Awards (Melhor Ator: Leonardo DiCaprio)

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