Dos Delitos e das Penas

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View of Daniel Defoe (1660-1731) – Fonte: The Bridgeman Art Library

O livro “Dos delitos e das penas”, de Beccaria, é uma obra que reflete a consciência crítica sobre um tema, em muitos aspectos, de difícil inovação. Foi escrito no século XVIII, em meio à forte influência advinda da inquisição e da tirania de alguns soberanos. Esse livro, antes de qualquer outro aspecto técnico, discorre sobre a liberdade humana. O autor utiliza uma argumentação lógica e sucinta para demonstrar algumas verdades que a ele não são apenas necessárias, mas, em alguns casos, vitais para iluminar o pensamento sombrio que recaía sobre o significado dos delitos e das penas no contexto em que foi escrita a obra.

Um dos pontos enfatizados por Beccaria é que “as vantagens da sociedade devem ser distribuídas equitativamente entre todos os seus membros“, desta forma fica evidente que o seu pensamento causaria um mal-estar na sociedade da época. Ele inicia suas argumentações trabalhando com o princípio de que a “verdade é uma e a mesma em toda a parte”. Logo, já deixa claro que abomina o fato da lei ser adequada a um dado contexto ou a um certo indivíduo. Sobre isso, ele diz:

Qualquer que seja a conclusão de todas essas questões, apenas direi que as penas das pessoas de mais alta linhagem devem ser as mesmas que as dos mais ínfimos cidadãos. A igualdade civil é anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas. Se todos os cidadãos não dependerem de modo igual das mesmas leis, as distinções não serão mais legítimas.

O autor construiu suas argumentações a partir de certos questionamentos, desde qual seria a origem das penas, ou em que se baseia o direito de punir, até sobre como diferenciar os crimes e como estabelecer suas penas. Mostrou-se desde o início preocupado com os costumes da época, que atribuíam uma certa divindade ao carrasco que possuía o direito de torturar em nome de uma verdade obscura.

Tortura na Idade Média – Fonte: Hulton Archive/Getty Images

Numa revisão da história, Beccaria discorreu que “as leis foram as condições que agruparam os homens, no início independentes e isolados, à superfície da terra”. Acrescenta ainda que o homem tem uma forte tendência ao despotismo. De certa forma, é observável em todas as sociedades, desde os agrupamentos humanos iniciais, que o mais forte quer impor seu poder sobre o mais fraco. Assim, é mister que tal característica seja relevante ao delinear as leis que regem um povo. Pois, segundo ele, “somente a necessidade obriga os homens a ceder uma parcela de sua liberdade”, então se ele quer ter segurança nessa convivência em comunidade, ao compreender a sua própria natureza, entenderá que é interessante abandonar sua condição de homem livre em termo absoluto, para que o outro, com características tão similares às suas, não venha também a desejar usurpar-lhe algo, ou invadir seus domínios.

A partir dessa reflexão, o autor concluiu que a “reunião de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o fundamento do direito de punir”. Desta forma, quando no exercício do poder houver um afastamento deste fundamento, tal ato constituirá abuso e não justiça. Como consequências desses princípios, o magistrado, que é parte da sociedade, não pode em nome da justiça aplicar leis que não estão previstas no código. Pois, “se o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado”.

Sobre a questão da “interpretação das leis”, Beccaria desenvolveu vários argumentos, especialmente no que tange a questão do direito que um juiz tem de fazer a leitura da lei ao seu bel prazer. Para ele, a lei deve ser definida e interpretada pelos legisladores, cabendo aos juízes executá-las. Sendo assim, o juiz não pode interferir, em nome de suas crenças e valores, para o bem ou para o mal do acusado.

O autor utiliza os fundamentos da Lógica Clássica para estabelecer o silogismo sobre o qual o juiz deveria se ater ao estabelecer a culpabilidade ou inocência de um indivíduo, assim, tem-se que: “a maior deve ser a lei geral; a menor, a ação conforme ou não à lei; a consequência, a liberdade ou a pena“. Logo, o juiz não poderia levantar questões que não estivessem sobre a regência dessa estrutura lógica, evitando, assim, caminhos incertos e reflexões obscuras.

Para o autor, “se cada cidadão tem obrigações a cumprir para com a sociedade, a sociedade tem igualmente obrigações a cumprir para com cada cidadão“, pois “a natureza de um contrato consiste em obrigar igualmente as duas partes contratantes”. Nesse ponto, ele remete sua argumentação à teoria do Contrato Social, de Rousseau, e discorre sobre a balança tênue que existe equilibrando as relações sociais a partir dos direitos e deveres das partes que as constituem.

O homem muitas vezes é levado, segundo o autor, pelo axioma comum de que há um espírito na lei a ser consultado, tal qual um oráculo que tudo sabe, tudo entende e que para tudo tem uma resposta. O grande problema em interpretar livremente uma lei é se deixar levar pela emoção de axiomas gerados pela ignorância, pois “cada homem tem a sua maneira de ver; e o mesmo homem, em épocas distintas, vê diversamente os mesmos objetos”. Assim, por essa diversidade de visões sobre um mesmo tema, é que não se pode construir verdades tendenciosas. Pois, cada homem carrega em si um conjunto de verdades que pode ser aplicado segundo seu interesse e sua necessidade. Ainda que não haja uma verdade universal, é necessário o estabelecimento de regras gerais que poderão nortear e sustentar a vida em sociedade. Acrescenta ainda, que “com leis penais cumpridas à letra, qualquer cidadão pode calcular exatamente os inconvenientes de uma ação reprovável; e isso é útil, pois esse conhecimento poderá fazer com que se desvie do crime”.

Um ponto ressaltado no livro de Beccaria e que é uma evidência cada vez mais latente nos dias atuais, é o fato de que “as leis e os usos de um povo estão sempre atrasados em vários séculos em relação aos progressos atuais”.

Como exemplo, é possível citar os avanços na área da informática que fizeram surgir novas formas de crimes e de vítimas. No entanto, existem poucas leis que lidam com tal situação. Isso dá margem a necessidade de buscar nas analogias formas eficazes para a compreensão de um crime. No entanto, uma analogia inadequada pode acarretar em inúmeros problemas e afastar a lei do seu objetivo maior, o alcance da justiça.

Ao tratar dos indícios do delito e da forma dos julgamentos, Beccaria estabeleceu um teorema geral que permite calcular a certeza de um fato e o valor que alguns indícios têm para um dado crime. No teorema ele demonstra que:

Quando as provas de um fato se apoiam todas entre si, isto é, quando os indícios do crime não se mantêm senão apoiados uns nos outros, quando a força de inúmeras provas depende de uma só, o número dessas provas nada acrescenta nem subtrai na probabilidade do fato: merecem pouca consideração, porque, se destruís a única prova que parece certa, derrocareis todas as demais.

Quando, porém, as provas independem umas das outras, isto é, quando cada indício pode ser provado separadamente, quanto mais numerosos forem esses indícios, tanto mais provável será o delito, porque a falsidade de uma prova em nada influi sobre a certeza das restantes.

A coerência desse raciocínio é observada no fato de que o teorema é baseado numa regra que apresenta o quanto as provas que se condicionam em outras podem ser frágeis e passíveis de refutação. É evidente que fatos encadeados podem ser usados para solidificar uma dada consequência, no entanto, é preciso que aquele que julga tal ato compreenda que um fato falso desmorona o encadeamento e impossibilita que se encontre o consequente final dos condicionais.

Ainda que seu raciocínio seja extremamente lógico e, em alguns casos, ele tenha a tendência de buscar quase uma demonstração matemática, o autor admite que, sendo o Direito uma ciência subjetiva, “toda certeza moral não é senão uma probabilidade, que merece, porém, ser considerada como uma certeza, quando todo homem de bom senso é obrigado a lhe dar o seu consentimento”.

Beccaria distinguiu as provas de um delito em duas categorias: provas perfeitas e provas imperfeitas. “As provas perfeitas são aquelas que demonstram positivamente que é impossível ser o acusado inocente. As provas imperfeitas derivam-se do fato de que a possibilidade de inocência do acusado não é excluída”. Então, pode-se concluir que basta uma prova perfeita para condenar um indivíduo e que é necessário um número muito grande de provas imperfeitas para provar que, juntas, constituem a certeza (ainda que relativa) de que o acusado é culpado.

Seguindo sua tendência em explicar suas teorias de forma lógica, Beccaria discorre sobre uma proposição que, segundo ele, é muito simples, que diz: “ou o crime é certo, ou é incerto. Se é certo, apenas deve ser punido com a pena que a lei fixa, e a tortura é inútil, porque não se tem mais necessidade das confissões do acusado. Se o crime é incerto, não é hediondo atormentar um inocente? Efetivamente, perante as leis, é inocente aquele cujo delito não está provado”. Com essa proposição, ele demonstra sua aversão à tortura como forma de identificar a culpa ou inocência de um acusado. Essa proposição simples (vale ressaltar que o simples não é simplório, mas carrega em si uma certa “suficiência” que refuta muita argumentação complexa) deve ser a máxima de qualquer código penal (“o acusado é inocente até que se prove o contrário”, Código Penal Brasileiro).

A partir de Beccaria, foi apresentada com mais clareza a necessidade de se estabelecer a duração dos processos e, principalmente, o tempo necessário para sua prescrição. Segundo o autor, esses fatos já devem ser definidos a priori, por lei, assim, evitaria que os juízes exercessem a função de legislador, ou que algumas situações injustas viessem a ocorrer. Para ele, podem ser distinguidas duas espécies de crimes: a dos crimes horrendos, que se inicia com o homicídio e engloba toda a progressão das formas mais terríveis de assassinatos; e a dos crimes menos hediondos do que o homicídio. No código penal brasileiro, também comete crime hediondo aquele que subtrai a vida de outrem e, para esses crimes, a pena é mais dura e o tempo de prescrição é maior. No entanto, há inúmeras críticas com relação ao Código Penal Brasileiro, especialmente no que tange às questões relativas à progressão da pena.

Ao demonstrar sua opinião contrária à pena de morte, Beccaria constrói seu melhor argumento, como pode ser verificado adiante:

A soberania e as leis nada mais são do que a soma das pequenas partes de liberdade que cada qual cedeu à sociedade. Representam a vontade geral, que resulta da reunião das vontades individuais. Mas quem já pensou em dar a outros o direito de lhes tirar a existência? Será o caso de supor que, por sacrificar uma parte ínfima de sua liberdade, cada indivíduo tenha desejado arriscar a própria vida, o bem mais precioso de todos?

Ou tem o homem o direito de suicidar-se, ou não pode passar tal direito a outrem nem à sociedade toda.

A pena de morte, pois, não se apóia em nenhum direito. É guerra que se declara a um cidadão pelo país, que considera necessária ou útil a eliminação desse cidadão.

A partir do entendimento de como se dá a doação da liberdade para o alcance da justiça, o autor desenvolve uma disjunção que implica, necessariamente, em dois caminhos obscuros. Assim, ele demonstra que a pena de morte não nos remete a nenhuma consequência justa, qualquer caminho que se segue para validá-la é por si só um caminho vicioso e sombrio.

O autor enfatiza, ainda, que o rigor do castigo não determina a sua eficácia em coibir novos atos da mesma forma ilícitos. Ou seja, que não adianta executar uma ação brutal e rápida (como a pena de morte) se a continuidade de um ato possibilita mais recordação do que a violência instantânea. Maquiavel já argumentou sobre isso em “O Príncipe”, que o mal deve ser feito de forma rápida, se a pessoa não quiser ser lembrada por ele. Já as boas ações devem ser realizadas com calma e de forma constante, assim dará a impressão que o homem que a faz é melhor do que talvez seja. É claro que as situações supramencionadas são diferentes, no entanto, a ideia é semelhante. A visão de permanecer preso numa cela por trinta anos é menos poética e mais apavorante do que uma morte rápida. A natureza humana tende a desafiar o perigo extremo, mas teme a dor constante e a ausência de liberdade.

Sobre a pena aplicada a crimes aparentemente semelhantes, é observado que no código penal brasileiro há uma diferenciação entre a pena para o roubo que é feito com violência e aquele em que é retirado o bem do cidadão, sem, no entanto, atacá-lo fisicamente. Beccaria, diz que “o roubo com violência e o roubo com astúcia são crimes totalmente diversos; e a política sã deve admitir, mais ainda do que a matemática, o axioma certo de que entre dois objetos heterogêneos há uma distância infinita”.

Um ponto em que Beccaria sempre retorna é a questão da igualdade civil, desta ser “anterior a todas as diferenças de honras e de riquezas”. Essa preocupação constante é explicável especialmente tendo em vista a época em que o livro foi escrito. Num mundo em que a barbárie é pregada pela mesma fonte de conforto e amor, que é a igreja, é compreensível que há uma inversão de valores e quem percebe isso e tenta confrontar tal situação, tem que fazê-lo de forma insistente. Mas, também, parece ser uma temática atemporal, dada as inúmeras discussões e protestos atuais em torno das questões relacionadas aos Direitos Humanos.

Os dois questionamentos a seguir apresentam a objetividade e sagacidade do pensamento de Beccaria, neles é possível novamente compreender que os argumentos mais simples foram por muito tempo obscurecidos por certos interesses e, de certa forma, em muitas situações ainda o são.

Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e claras; e esteja o país inteiro preparado a armar-se para defendê-las, sem que a minoria se preocupe constantemente em destruí-las. Que elas não favoreçam qualquer classe em especial; protejam igualmente cada membro da sociedade; tema-as o cidadão e trema apenas diante delas. O temor que as leis inspiram é saudável, o temor que os homens inspiram é uma fonte nefasta de delitos.

Desejais evitar os crimes? Caminhe a liberdade acompanhada das luzes. Se as ciências produzem alguns malefícios, é quando são pouco difundidas; porém, à proporção que se espalham, as vantagens que propiciam se tornam maiores.

A inteligência está na sensibilidade de perceber que, “sob boas leis, o homem apenas perdeu a nefasta liberdade de cometer o mal”. O ponto mais interessante nessa obra está na constatação tão atual de que “a maneira mais segura, porém ao mesmo tempo mais difícil, de tornar os homens menos propensos à prática do mal é aperfeiçoar a educação”.

FICHA TÉCNICA DO LIVRO

DOS DELITOS E DAS PENAS


Autor: BECCARIA, Cesare
Tradução: Torrieri Guimarães
Ano:
2002

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De onde vem a genialidade?

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Einstein

O documentário da BBC de Londres “What Makes a Genius?” faz uma compilação de alguns estudos recentes que buscam compreender de onde vem a genialidade. E, como sempre, qualquer estudo que tenha o cérebro como contexto é complexo, passível de refutação e, em alguns aspectos, paradoxal.

O matemático Marcus du Sautoy, narrador do documentário, apresenta uma série de questionamentos no decorrer do vídeo que dá ao documentário uma maior abrangência, pois as questões lançadas não tendem a abraçar uma causa ou uma teoria como verdade absoluta, mas trazem uma amostra de estudos nessa área e dos resultados que abriram caminhos para novas pesquisas.

Primeiro, é necessário pontuar a diferença entre uma pessoa inteligente ou com determinadas habilidades e um gênio.  Por exemplo, no documentário é apresentado um professor de matemática que tem uma habilidade extrema para fazer contas, ele é capaz de inferir o quadrado de números de, até, 5 dígitos. Isso é uma façanha incrível, mas como esse mesmo professor diz no vídeo, isso não faz dele um gênio, apenas aponta um tipo de habilidade na qual ele se sobressai. O que falta então para que esse professor seja considerado um gênio? Segundo suas próprias palavras, a criatividade. A possibilidade de juntar um conjunto de habilidades e competências a um processo criativo e promover inovações.

A grande questão que permeia todo o documentário é: um gênio nasce pronto ou pode ser criado?

The Three Sphinxes of Bikini (1947) – Salvador Dali

O primeiro ponto apresentado traz pesquisas que mostram um estudo da arquitetura do cérebro de forma a entender se há alguma diferenciação na anatomia dos cérebros de pessoas que se enquadram na categoria de gênio.  As primeiras pesquisas nesse aspecto, ainda no início do século XX, tentavam validar (sem sucesso) a hipótese de que o peso do cérebro tinha relação com a inteligência do indivíduo.  Em pesquisas mais recentes, como a realizada no Departamento de Anatomia da Universidade de Louisville, a partir da dissecação de cérebros de cientistas considerados “supernormais”, o Dr. Manuel Casanova verificou certas diferenças estruturais que podem contribuir na explicação da inteligência.

Nessa pesquisa, o foco é um minúsculo agrupamento de neurônios no córtex, que ele denominou de “mini-colunas”, e que nos cérebros dos cientistas analisados está presente em maior quantidade. Além disso, também foi detectado que há uma quantidade maior de ligações curtas nos cérebros dos ditos gênios, o que poderia explicar (em um dado nível) o raciocínio rápido e a capacidade de fazer determinadas tarefas muito bem.

A estrutura do cérebro como fator preponderante na definição da inteligência causa uma série de discussões, pois, de certa forma, estabelece que a capacidade de aprendizagem, a definição de habilidades e a possibilidade de gerar inovações estão “presas” a uma base inicial.

Um teste realizado na Universidade John Hopkins envolvendo pontos coloridos em uma tela mostra bons resultados na verificação de talentos naturais para a matemática, o que corrobora com a teoria de que as pessoas já nascem com predisposição para determinadas áreas.

Menino de seis anos realizando um teste na Universidade John Hopkins

O teste é uma espécie de “preditor cognitivo do sucesso ou fracasso na matemática escolar”, dado o fato que verifica a capacidade instintiva que algumas pessoas têm em relação aos números. Segundo um dos pesquisadores, o teste não verifica o quão bom alguém vai ser em matemática (por exemplo, se será um gênio), mas é capaz de verificar se a criança em questão terá que ter algum acompanhamento extra nessa área, já que instintivamente tem dificuldade na assimilação de tais conceitos.

Há um gene específico na definição da inteligência?

Apparition of a Face and Fruit Dish on a Beach (1938) – Salvador Dali

As irmãs Brontë seriam um exemplo de que a genialidade tem um caráter genético?

Um grupo de pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology) parece ter encontrado o “Santo Graal da Inteligência”, definido como um gene específico associado à aprendizagem. Para tanto, realizaram, inicialmente, um simples teste de condicionamento de ratos. Assim, os pesquisadores partiram de duas premissas: (1) “quanto mais você faz algo, melhor você faz”; (2) “os genes que são ativados pela atividade do cérebro durante essas atividades seriam os relevantes para o processo de aprendizagem”.  Na pesquisa usaram dois ratos, um intacto, que ao receber choque após ouvir um dado som associou o som ao choque (ou seja, aprendeu algo naquela situação), e outro que sofreu os mesmos choques (seguidos ao som), mas que não conseguia fazer essa associação. A diferença entre os dois ratos é que o segundo teve um determinado gene desligado (no documentário, os pesquisadores não revelam qual gene). Assim, a ausência de um gene específico fez com que o rato perdesse a capacidade de aprender. A partir disso, Marcus apresentou o seguinte questionamento a Dra. Elly Nedivi (professora de Neurobiologia – MIT):

“Que implicações isto tem para os humanos? Ou seja, você achou algo em ratos, mas é o mesmo para os humanos? Será que temos um gene associado à aprendizagem?”

E a Dra. Elly Nedivi  deu a seguinte resposta:

“Este gene em particular é muito interessante, é muito conservado. A proteína produzida por este gene em humanos é 100% a mesma que nos ratos. E geralmente quando vemos algo que é tão altamente conservado entre as espécies podemos inferir que estamos lidando com algo muito crítico porque a evolução não mexeu com ele”. 

Ou seja, o gene da inteligência identificado nos ratos pode ter um correspondente em humanos. De alguma forma, parece que o algoritmo formado pelos genes define não apenas a cor dos nossos olhos e cabelos, mas, especialmente, a nossa capacidade de aprender.

A pesquisa da Dra. Elly Nedivi tende a esbarrar em desafios morais e éticos, por exemplo, até que ponto é saudável ajustar a nossa genética para aumentar nossa inteligência? Isso porque se as pesquisas em torno desse gene validar as hipóteses que foram levantadas pelos pesquisadores, essa possibilidade pode sair do âmbito da Ficção Científica e passar a ser uma potencial realidade.

Um outro ponto levantado no documentário é a questão dos testes de QI usados para medir a inteligência e apontar a genialidade. Lewis Terman, um dos pioneiros em testes de QI, em 1922 iniciou um dos mais longos testes de QI da história.

Crianças realizando o teste de QI de Lewis Terman em 1922

Ele avaliou centenas de crianças e acompanhou as que ele considerou extraordinárias. No entanto, o que se mostrou interessante foi verificar o que aconteceu com as crianças que não foram aprovadas no nível de genialidade proposto por Terman.  Uma dessas crianças foi William Bradford Shockley, que em 1956 dividiu o Prêmio Nobel de Física com outros cientistas por pesquisas relacionadas a semicondutores e a invenção do transistor. Essa invenção desencadeou no desenvolvimento de outra inovação tecnológica, o microchip, determinante para a Revolução da Informática. De certa forma, mensurar a inteligência a partir de um tipo de teste específico é muito questionável, justamente porque a inteligência é complexa, tem várias facetas, não usarei o termo “múltiplas” porque estou cansada do Howard Gardner.

No Laboratório de Bebês Birkbeck, da Universidade de Londres, os pesquisadores realizam experimentos que estão contribuindo para o entendimento do potencial do cérebro dos bebês. Um desses experimentos faz a mensuração da atividade cerebral dos bebês e consegue verificar quando os bebês percebem a diferença entre determinadas faces que lhes são apresentadas em um visor. Na idade adulta temos facilidade em verificar a diferença entre faces humanas, mas as faces dos macacos, por exemplo, nos parecem semelhantes demais para apontarmos diferenças.

 

Esther (uma bebê de seis meses) realizando o teste de reconhecimento facial no laboratório de Birkbeck

O que os pesquisadores verificaram nos testes realizados foi que para os bebês de seis meses a capacidade de processar (e diferenciar) as faces humanas e de macacos é a mesma. Segundo os pesquisadores, um dos pontos que eles identificaram nas pesquisas com bebês de uma forma geral “é que eles são atraídos por faces desde muito cedo, mas, o cérebro do bebê é muito plástico e com o tempo ele vai aprender a processar faces, e então processar faces de macacos porque está aberto a todos os estímulos”. O que acontece é que algumas conexões são mais relevantes que outras, daí pela própria ausência de estímulo (por exemplo, é mais comum vermos faces humanas que de macacos), os bebês, com o tempo, perdem essa habilidade, assim as faces processadas facilmente serão aquelas que são mais úteis ao seu contexto.

Existem outros exemplos no documentário que mostram situações em que o indivíduo, dado uma determinada circunstância adversa, modificou a forma que aprende. Se há um ambiente hostil, por exemplo, se não há um dos sentidos (a visão ou a audição), há meios para estimular outros sentidos e desenvolver habilidades que, para muitos, podem parecer um dom. Outra situação apresentada é a forma como a criatividade exerce um papel decisivo na definição da inteligência. Para tanto, Marcus entrevistou Tommy, uma pessoa que sofreu uma hemorragia cerebral em 2001.

Tommy McHugh durante seu processo criativo

De alguma forma, essa hemorragia afetou uma parte do cérebro de Tommy que tem relação com a criatividade e fez com que ele iniciasse um processo que pode ser denominado como uma espécie de “criatividade obsessiva”. Assim, Tommy está preso a sua própria capacidade criadora, é como se fosse um escravo da sua necessidade de criar pinturas, só descansa quando dorme, pois em todo o resto do tempo precisa (obsessivamente) produzir pinturas novas.

Existem algumas abordagens da Psicologia que criticam o fato de pesquisas lidarem com o cérebro como se fosse uma entidade independente. Há questões conceituais envolvidas nessas discussões, mas no âmbito de várias pesquisas científicas, de certa forma, tende-se a trabalhar com um objeto e focar em um dado ponto para depois ampliar suas vertentes. Por vezes, tem-se que isolar uma parte para depois juntá-la ao todo e buscar um entendimento mais abrangente e profundo. A estrutura do cérebro, a definição da mente, a natureza e a condição humana formam um campo de estudo repleto de divergências. Mas isso, em alguns aspectos, pode refletir em resultados positivos, pois geralmente é necessário um certo caos para que os sistemas retornem à busca pelo equilíbrio.

Ainda não existem respostas exatas para as questões levantadas nesse documentário:

“Nascemos predispostos a certas habilidades? Há, de fato, um gene da aprendizagem? Vantagens inatas podem nos permitir ter sucesso em certas áreas? Poderia o nosso destino ser determinado no nascimento? Ou nascemos como folha em branco, com cérebros capazes de enfrentar qualquer desafio?”

Talvez uma das poucas verdades que podemos erigir desses questionamentos é que qualquer estudo que tenha o ser humano como foco de pesquisa deve ser concebido como um processo multidisciplinar. Particularmente, penso que, às vezes, damos um valor demasiado a determinadas formas de inteligência e esquecemos a complexidade que compõe as relações humanas. Enquanto é relevante para a compreensão de nossa espécie entender o conceito (tão revisado) da inteligência, também é importante relembrar um trecho do discurso de Chaplin no filme O Grande Ditador: “Mais do que máquinas precisamos de humanidade. Mais do que inteligência precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes a vida será de violência e tudo estará perdido”.

FICHA TÉCNICA

Título Original: BBC Horizon – What Makes a Genius?
Gênero: Documentário
Ano de Lançamento: 2010
Tempo de Duração: 58 Min
País de Origem: Inglaterra
Director: Dan Walker

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Renato Russo: essa saudade que eu sinto de tudo que eu ainda não vi

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É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há.

(Pais e Filhos)

Renato Russo

Em 1996 ainda não vivíamos flutuando em redes virtuais, compartilhando memes sobre a situação do nosso país, sobre novelas ou fatos cotidianos, nem víamos nascer a cada segundo uma nova celebridade em vídeos distribuídos em canais da rede. Tantas pessoas ainda morriam (e, infelizmente, ainda morrem) vítimas da AIDS, uma doença estigmatizada por preconceitos (velados ou claramente expostos). Renato Russo foi uma dessas pessoas. Mesmo sem falar abertamente sobre tal fato até quase o final de sua vida, contraiu o vírus HIV por volta do final da década de 1980 e teve que conviver com isso os seis anos seguintes, situação essa que, de certa forma, está refletida nas letras de algumas de suas músicas e nas suas escolhas para os discos solo que lançou.

Nasceu Renato Manfredini Júnior, no Rio de Janeiro. Morou, dos 7 aos 10 anos, em Nova Iorque (por causa do trabalho do seu pai), mas passou parte da adolescência e juventude na capital do País.

Foi em Brasília, uma cidade que nasceu como capital de um país imenso, que o Renato Manfredini foi moldando o artista que conhecemos como Renato Russo. Ainda na adolescência (entre os 15 e os 17 anos), foi acometido por uma doença óssea que o manteve preso à cama por grande parte desse tempo, mas também fez com que ele se aproximasse ainda mais dos livros e da música, o que deu à sua obra (especialmente as suas letras) uma nuance poética.

Capa do CD da banda Aborto Elétrico – ao Vivo UNB (1981)

Renato iniciou sua carreira na banda “Aborto Elétrico” (1978 – 1982). E ainda nessa época ele compôs alguns dos seus maiores sucessos, como “Faroeste Caboclo” e “Que país é esse”. Mas, por uma série de divergências com o baterista Fê Lemos (que depois formou a banda Capital Inicial) desistiu desse projeto e, então, deu-se o início a formação da Legião Urbana.

Primeira Formação da Legião Urbana

O primeiro Álbum da Legião foi lançado em 1985 em um cenário político em que se destacava o fim dos 21 anos de ditadura militar no Brasil e o início do governo do José Sarney, que assumiu a presidência após a morte de Tancredo Neves.  A principal música desse Álbum foi “Geração Coca-Cola”, uma crítica não apenas ao país, mas à sua própria geração, em versos que tanto expunha a homogeneização cultural advinda de uma grande potência como a apatia dos jovens perante aquele cenário.

Somos os filhos da revolução
Somos burgueses sem religião
Somos o futuro da nação
Geração Coca-Cola

Mas, nem só de crítica política foi construído o primeiro Álbum da Legião. Destacam-se, também, músicas como “Por enquanto”, em que é mostrada uma temática que constantemente está presente na obra de Renato Russo, que é a brevidade das relações e a finitude da vida (“Se lembra quando a gente / Chegou um dia a acreditar / Que tudo era pra sempre / Sem saber / Que o pra sempre / Sempre acaba…”) e  “Ainda é cedo”.

Uma menina me ensinou
Quase tudo que eu sei
Era quase escravidão
Mas ela me tratava como um rei

Há aqueles que acreditam que a “menina” citada na letra é uma analogia à cocaína, mas ainda prefiro pensar que tem ligação com um relacionamento que o Renato viveu. No CD As Quatro Estações – ao vivo, disco 2, é possível ouvir uma explicação dele sobre isso  ( http://youtu.be/-AAw7BSWTRE ).

“Tanta gente já foi embora da minha vida por causa disso. Porque eu sou mandão, ‘com a melhor das intenções’”. Ele fala isso nos momentos finais da música, depois canta partes de  Gimme Shelter, Pretty Vacant, Satisfaction, Jumping Jack Flash, Rock Around The Clock e Blue Suede Shoes. E quando voltam aos acordes de “Ainda é cedo”, ele diz: “ela gostava de todas essas músicas… Você está em algum lugar, eu sei… foi para você”. Uma coisa é certa, não importa a interpretação que se dê, a música é linda.

No Álbum Dois, de 1986, a Legião Urbana se consolida no cenário pop nacional, com músicas de acordes simples e letras pungentes. Inclusive, bem destoantes de algumas bandas da época, que tinham sucessos com letras mais inocentes e uma forma mais direta de atrair a mídia, com participação intensa em programas de TV, o que não era uma prática da Legião. Nesse álbum, músicas como “Será”, cuja estrofe de cunho contestador depois foi romantizada em outras versões, viraram hits a partir de versos como esses: Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão? Será que vamos conseguir vencer?

Quem um dia irá dizer
Que existe razão
Nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
Que não existe razão?
(Eduardo e Mônica)

No Álbum Dois, além da simplicidade genial de Eduardo e Mônica, com a descrição da história de amor de um casal que se completa “que nem feijão com arroz”, ainda estão presentes os versos melancólicos e dramáticos de músicas como Tempo Perdido.

Todos os dias quando acordo
Não tenho mais
O tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo
[…]
Somos tão jovens

O ecletismo de Renato Russo pode ser observado especialmente na música Faroeste Caboclo, que, segundo ele mesmo, é uma espécie de junção entre estilos que vão desde Raul Seixas até a literatura de Cordel. Essa música tem nove minutos e, ao contrário de todas as previsões de agentes da indústria fonográfica, transformou-se em um hit e agora virou um filme com estreia prevista para 30 de maio de 2013 (trailer: http://youtu.be/4azYkNkPtJg ).


Não tinha medo o tal João de Santo Cristo
Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou pra trás todo o marasmo da fazenda
Só pra sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
(Faroeste Caboclo)

O terceiro Álbum da Legião – As Quatro Estações (1989) – traz à tona (de forma mais intensa) parte da figura complexa que foi Renato Russo. Se, geralmente, os fãs costumam achar que sua música reflete muito daquilo que ele viveu e sentiu, versos como “Parece cocaína/Mas é só tristeza” dão uma amostra das conturbações emocionais sempre presentes em sua vida. Renato tinha problemas com drogas e álcool (esse último desde a adolescência) e parecia viver em uma espécie de montanha-russa, com rompantes de raiva, melancolia e carência, mas isso são apenas impressões que podem não condizer com a realidade. A época do lançamento desse álbum coincide com a descoberta de que ele era soropositivo. Às vezes é possível quase sentir seus temores (que nascem do “cansaço e da solidão”), mas, mesmo em meio à tristeza de alguns trechos da sua música, há esperança quando sua voz forte pronuncia que:

Disciplina é liberdade
Compaixão é fortaleza
Ter bondade é ter coragem (Ela disse)
Lá em casa tem um poço
Mas a água é muito limpa…

(Há Tempos)

Com o lançamento desse álbum, o cantor assumiu publicamente sua homossexualidade. Assim, o rapaz nascido em uma família tradicional e católica cantou aos quatro cantos do país que gostava de “meninos e meninas”, e muitos entoaram esses versos com ele.  Quando lhe perguntaram sobre isso, ele disse: “Eu estava precisando me assumir há muito tempo (…) mas fica aquela coisa, filho de católico, ‘você é doente’ etc.  No meio do caminho, eu já estava pensando: pô, eu sou um cara tão legal, eu não posso ser doente. (…) Eu sempre gostei de meninos – eu gosto de meninas também -, mas eu gosto de meninos. Como é que não é natural? Se eu sou assim desde os quatro anos, então sou doente, pervertido… ah, não!”.

Não sou escravo de ninguém
Ninguém senhor do meu domínio
Sei o que devo defender
E por valor eu tenho
E temo o que agora se desfaz.
[…]
É a verdade o que assombra
O descaso que condena
A estupidez o que destrói
Eu vejo tudo que se foi
E o que não existe mais
(Metal Contra as Nuvens, Álbum V)

É difícil definir o Renato, mesmo em sua superfície, pois ele parece ser mais complexo que todas as letras que criou, ainda que em meio a referências tão heterogêneas que vão desde Camões até as passagens bíblicas. Uma vez li em “A Insustentável Leveza do Ser”, do Milan Kundera, sobre o quão absurda é a leveza da vida, de uma única vida. A impressão que temos é que quando iniciamos o processo de aprender a lidar com ela (a vida), partimos. Em “Teatro dos Vampiros”, Renato disse “sempre precisei de um pouco de atenção, acho que não sei quem sou, só sei do que não gosto […] Esse é o nosso mundo: o que é demais nunca é o bastante e a primeira vez é sempre a última chance”. Talvez mais gente compartilhe do seu sentimento, daí o sucesso de sua música e o fato dela perdurar mesmo em meio a um cenário musical tão estranho em que, algumas vezes, uma série de interjeições forma uma letra de música.


Álbum – O Descobrimento do Brasil (1993)

O álbum “O Descobrimento do Brasil” foi lançado em 1993. O fim do ano anterior foi marcado peloimpeachment do presidente Collor. Assim, a crítica à podridão política e a situação precária da Segurança e da Educação do Brasil pode ser sentida nos versos cortantes de Perfeição.

Ao lançar seu primeiro disco solo, The Stonewall Celebration Concert (referência aos conflitos violentos entre a polícia de Nova Iorque e a comunidade LGBT, no bar Stonewall Inn, em 1969), Renato assume uma face angustiada de quem se despede contra a vontade. Uma das músicas deste CD parece resumir seu sentimento:

Em entrevistas sobre este CD Renato falou da felicidade em poder cantar as letras das músicas de acordo com seus sentimentos, sem precisar esconder nada. No caso de If Tomorrow Never Comes, Renato trocou o “she” original pelo “he”.

Assim, em meio a conturbações na banda – muito em razão do seu gênio difícil -, a shows cancelados, à carreira solo (um projeto que deveria ocorrer em paralelo), tem-se o início da fase mais complicada da sua vida. A dependência química, a forte medicação (“Quando eu tomo o coquetel [de AZT e outros] é como se estivesse comendo um cachorro vivo. E o cachorro me come por dentro”, dizia Renato) e um quadro de depressão que foi agravado com o aumento dos sintomas da doença marcaram seus últimos dias. Em Via Láctea, música do último álbum que gravou com a Legião, ele disse que “Hoje a tristeza não é passageira, hoje fiquei com febre a tarde inteira. E quando chegar a noite, cada estrela parecerá uma lágrima. Quando tudo está perdido, eu me sinto tão sozinho. Quando tudo está perdido, não quero mais ser quem eu sou”. E, ao final, agradece “obrigado por pensar em mim”.

E mais de 16 anos após a sua morte, ainda estamos pensando nele. Filmes vão estrear homenageando sua obra e retratando sua vida (Somos tão Jovens, trailer: http://youtu.be/xa3izIueaE4 ). Então….

Só por hoje eu não quero mais chorar
Só por hoje eu não vou me destruir
Posso até ficar triste se eu quiser
É só por hoje, ao menos isso eu aprendi.

 

Referências:

http://www.legiaourbana.com.br/

http://www.culturabrasil.pro.br/tempoganho.htm

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Armadilhas psíquicas e o medo em ‘Psicose’

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De Alfred Hitchcock

Com quatro indicações ao Oscar: Melhor Diretor (Alfred Hitchcock), Melhor Atriz Coadjuvante (Janet Leigh), Melhor Fotografia, Melhor Direção de Arte – Preto e Branco

“Não há terror em um estrondo, apenas na antecipação dele.”
Alfred Hitchcock

Há mais de 50 anos uma cena se tornou um ícone e intensificou uma fobia: o medo de banheiro quando se está sozinho em um quarto de hotel. Existem várias histórias em torno das primeiras exibições do filme Psicose em 1960, entre elas dizem que muitas pessoas desmaiaram na cena do chuveiro, outras vomitaram, além de toda forma de grito que as cordas vocais pudessem produzir.  Hoje, em alguns aspectos, tal cena poderia ter uma conotação ingênua, pois a partir da década de 1980, filmes de terror (e também a realidade mostrada nos noticiários) transformaram uma morte por faca em algo leve, já que a partir daí intensificaram-se os mais bizarros tipos de morte, como cabeças decepadas, braços arrancados, sangue jorrando por todos os poros, vilões com máscaras assustadoras, garras etc. Mas, ao contrário desses filmes, que buscam, no excesso, criar o ambiente necessário para o “susto”, Hitchcock continua conseguindo impressionar justamente por saber manipular o silêncio e intercalá-lo com uma trilha sonora que provoca arrepio e quebra a linha tênue entre o suspense e o horror.

Acho que tudo começou quando eu estava nos braços da minha mãe aos seis meses de idade e ela me disse: ‘boo’ e isso despertou um medo de algo fora de mim.
Alfred Hitchcock, em Entrevista (Robinson, 1960)

Escrito por Joseph Stefano (do romance de Robert Bloch), Psicose, para Sandis (2009), é o mais freudiano de todos os filmes de Hitchcock. Isso pode ser verificado se considerarmos, por exemplo, o que Kusnetzoff (1982) apresenta em seu livro Introdução à Psicopatologia Psicanalítica, no qual ele observa que o mecanismo de cisão do Ego faz ressaltar a heterogeneidade estrutural do Ego e os dois “senhores” aos quais deve obediência: o reconhecimento das exigências da realidade e as exigências de satisfação dos desejos pulsionais. Assim, tem-se que parte do Ego aceita a realidade tal qual ela é constituída, podendo simbolizá-la e, outra parte, a rejeita, criando uma outra “realidade” que pode ir desde o objeto fetiche até um delírio alucinatório. Essa situação (em um formato mais ampliado e, em alguns aspectos, caricatural) pode ser observada no filme a partir das ações de Norman, que parece verdadeiramente acreditar nas palavras que profere, mesmo que suas ações ou, em um dado sentido, a própria realidade as refutem. Um outro ponto é o  paralelo que pode ser feito entre a exploração da casa por Lila Crane em busca de respostas sobre o desaparecimento de sua irmã e a nossa exploração gradual dos vários “quartos” que compõem a personalidade psíquica de Norman Bates.

Acho que estamos todos presos em nossas armadilhas e nenhum de nós consegue sair. Usamos nossas garras e unhas no vazio, umas com as outras. E, por tudo isso, nunca mudamos nosso modo de agir.  (Norman)
Às vezes entramos de propósito nestas armadilhas.  (Marion)
Eu nasci na minha, não me importa mais. (Norman)
Mas deveria, deveria se importar. (Marion)

Marion Crane hospeda-se no Bates Motel depois de tomar uma decisão repentina de roubar 40.000 dólares da empresa em que trabalha. Uma decisão impulsionada pela falta de perspectiva diante da vida, que é refletida no romance às escondidas com um homem casado e em um profundo sentimento de solidão. No diálogo apresentado acima, Norman, em meio a uma aparente animação por ter uma hóspede em seu Motel, inicia uma inocente conversa com Marion, mas suas palavras acabam por traí-lo, revelando muito de sua personalidade, especialmente da parte mais obscura desta. É possível ver a dualidade entre o homem jovem que está consciente de ter diante de si uma bela mulher e o filho obediente, que vive em função da mãe, apontada por ele como alguém fraca e doente, carente de seus cuidados e merecedora de sua atenção.

“O melhor amigo de um homem é a sua mãe.” (Norman)

O mecanismo de defesa “Repressão” e o Complexo de Édipo são dois conceitos freudianos presentes nesse filme. De acordo com Freud (apud Kusnetzoff, 1982), repressão “consiste num ato de despejo do nível consciente da representação ligada à pulsão”, assim, chama-se “repressão” àquela operação psíquica que ocorre consciente, mas cujo destino é alojar a representação no espaço pré-consciente. Geralmente, isso está relacionado às memórias traumáticas, comumente associadas a eventos vividos na infância, que são reprimidas pela mente consciente em uma tentativa de deixar o Ego livre de conflito e tensão. Já o Complexo de Édipo, cuja terminologia remete ao personagem da mitologia grega que, sem saber, mata o pai e se casa com sua mãe, está presente no filme através da relação conturbada entre Norman e sua mãe, especialmente nos estranhos acontecimentos que envolvem a sua suposta morte e a do homem que vivia com ela. Este acontecimento, segundo Sandis (2009), leva a uma perda parcial do ‘eu’ e a um forte sentimento de identificação com a vítima, então, agrega-se a isso o fato da memória reprimida poder ser desencadeadora de episódios neuróticos ou psicóticos, o cenário do filme está construído. Na época de Freud, dizia-se que a neurose consistia numa rejeição do instinto e, simultaneamente, em ficar-se à mercê do mundo exterior; enquanto na psicose é rejeitado o mundo exterior, obedecendo automaticamente o Id; mas, essas afirmações são hoje relativas, desde que as rejeições do mundo exterior “arrastam” igualmente “pedaços” do Ego e do Id.

Marion e Norman são semelhantes, em um dado nível, pelos sentimentos de medo e solidão que vivenciam. Ambos estão presos em armadilhas complexas. Enquanto ela busca um meio de encontrar uma rota para uma Ilha Deserta, de forma a viver sem ter que responder a uma sociedade que a oprime e a rejeita, ele, que já se sente em uma Ilha Deserta, busca conciliar os “eus” que carrega consigo, que talvez sejam piores que qualquer “demônio” que exista do lado de fora. Mas, o que separa um do outro de forma profunda é que Norman, diferentemente de Marion, já não sabe distinguir onde acaba a realidade de fato e inicia o mundo criado apenas na mente dele. Norman já não sabe qual “eu” é o real. Então, o mal se torna um meio de mostrar ao “eu” que está no comando que ele é fiel, que sente culpa e que o ama.

Referências:

SANDIS, Constantine. Hitchcock’s Conscious Use of Freud’s Unconscious. Europe’s Journal of Psychology 3/2009, pp. 56-81.

KUSNETZOFF, Juan Carlos. Introdução à Psicopatologia Psicanalítica. 7ª ed.. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.


FICHA TÉCNICA DO FILME

PSICOSE

Título Original: Psycho
Direção: Alfred Hitchcock
Roteiro: Joseph Stefano
Elenco Principal: Anthony Perkins, Janet Leigh, Vera Miles, John Gavin, Martin Balsam
Ano: 1960

Prêmio: Globo de Ouro: Melhor Atriz Coadjuvante (Janet Leigh)

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Tudo é Vaidade

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Era uma vez um Deus e seu Anjo. Um dia o Anjo também quis ser Deus. Eis o início da vaidade.

Vaidade das vaidades. Tudo é vaidade. […] Vi tudo o que se faz debaixo do sol, e achei que tudo era vaidade e aflição de espírito. Os perversos dificultosamente se corrigem, e o número dos insensatos é infinito.
(Bíblia Sagrada – Antigo Testamento. Livro do Eclesiastes)

 


Figura: Charles Allan Gilbert, All Is Vanity (1892)

 

Segundo o dicionário Houaiss, a palavra ‘vaidade’ pode ser compreendida como “a qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória; a valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros”. No entanto, a análise conceitual de uma palavra vai além de um conjunto de significados que atribuímos a ela. Para Wittgenstein (1958), o princípio do uso é a base para o entendimento do significado de uma expressão, ou seja, “a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”. Isso dá ao conceito uma amplitude maior no que tange à sua análise, pois já não há um campo seguro de verdades finitas ou constantes.

Historicamente, a vaidade pode ser relacionada a uma categoria de pecado da qual ninguém está imune, ou seja, aquele pecado que permite ao indivíduo, por vezes ordinário, sentir e querer mostrar-se aos outros como alguém extraordinário. Há quem defende tal pecado como uma necessidade básica, pois a criação de personas em torno de sua “real” figura torna-se relevante para a definição e criação das mais infinitas obras e perfis, que vão desde a ascensão de impérios e estados até a imortalização de uma imagem (quando aquilo que a vaidade construiu se torna maior do que aquilo que a pessoa de fato é).

Em Os Irmãos Karamázov, vimos um dos personagens apresentar um questionamento que traz à tona a complexidade do conceito de liberdade, mesmo diante de um contexto que parece primar pelo pecado da vaidade, ou seja, pela possibilidade de recriar um “eu” segundo a sua imagem e semelhança.

“’Diante de quem se inclinar? Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar…” (Os irmãos Karamazov, Dostoiévski)

Parece que as palavras do Grande Inquisidor de Dostoiévski formam uma contradição à vontade de poder apresentada por Nietzsche em sua obra “Assim falou Zaratustra”, na qual ele diz que “onde encontrei vida, ali encontrei vontade de poder, e até mesmo na vontade daquele que serve encontrei vontade de ser senhor”. Mas, para uma contradição vir à tona tem-se que ter um grau maior de entendimento da semântica dos enunciados. Assim, quando as frases ganham (talvez por vaidade) uma complexidade semântica, situá-las em polos extremos para entender conceitos como contradição torna-se, por vezes, uma tarefa não apenas incongruente, mas também sem sentido.  De certa forma, há a necessidade de ser senhor e, para tanto, a vaidade exerce um papel decisivo, mas, em contrapartida, há um desejo primitivo em ser guiado.

 

Foto: Hitler – Hulton Archive / Getty Images

 

A vaidade de Hitler, por exemplo, ajudou a criar a figura histórica responsável pelas maiores atrocidades do século XX. Sua vaidade foi estabelecida diante da fraqueza de um país em decadência econômica e publicamente humilhado depois da Primeira Grande Guerra. Assim, temos o início de uma espécie de vaidade gerada no indivíduo, mas defendida por toda uma população, sustentada por uma espécie de “loucura coletiva”. Essa passagem atribulada da história foi contada de forma crua (e polêmica) no livro do professor de Harvard Daniel Jonah intitulado “Os carrascos voluntários de Hitler”. Nele, o autor apresenta a corresponsabilidade do povo alemão nas ações que definiram o genocídio dos judeus. E, com isso, as palavras sombrias do Grande Inquisidor de Dostoiévski ecoam pelos séculos cada vez mais atuais:

Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. 

Marylin Monroe por Richard Avedon (1957)

“Nunca enganei ninguém, só deixei que as pessoas enganassem a si mesmas. Ninguém se preocupou em tentar descobrir quem eu era de verdade. Inventaram uma personagem para mim. Nunca desmenti”. Marilyn Monroe

 

Essas fotos da atriz americana Marylin Monroe feitas pelo fotógrafo Richard Avedon sintetizam a ideia da vaidade que reside em cada um de nós, mas especialmente apresentam o momento em que ela nos deixa a sós. Acostumar-se a vaidade não significa viver o tempo todo com ela. Parece que até a vaidade, o pecado que veio acompanhado pelo quantificador universal (todo) na Bíblia, às vezes afasta-se do seu hospedeiro. Avedon contou uma vez como aconteceu o momento decisivo para capturar uma imagem da Marylin sem a vaidade dos seus personagens. Ele disse que, depois de um tempo fazendo poses sensuais e luminosas, ela sentou-se em uma cadeira no canto do estúdio e pareceu se encolher, como uma criança assustada. Nesse instante, ele produziu a última foto do ensaio e, para o fotógrafo Vik Muniz, “o quadro final resultante está entre os retratos mais famosos de todos os tempos”. Roland Barthes, ao elogiar Avedon por captar esse momento, disse que essa foto “é a evidência de que, dentro da imagem, há sempre algo mais”. Talvez nem tudo seja vaidade.

 

Foto de Robert Doisneau, 1963

O orgulho é a consciência (certa ou errada) do nosso próprio mérito, a vaidade, a consciência (certa ou errada) da evidência do nosso próprio mérito para os outros. Um homem pode ser orgulhoso sem ser vaidoso, pode ser ambas as coisas, vaidoso e orgulhoso, pode ser — pois tal é a natureza humana — vaidoso sem ser orgulhoso.

Fernando Pessoa, in “Da Literatura Européia”

 

A última possibilidade apresentada por Pessoa (“ser vaidoso sem ser orgulhoso”), considerando sua definição de orgulho e vaidade, reflete a complexidade da natureza humana, que mesmo sem a consciência, de fato, dos seus méritos e virtudes, constrói um conjunto de disfarces para que possa ser exaltada, copiada e seguida. Na continuação desse texto, Pessoa diz que “o homem prefere ser exaltado por aquilo que não é, a ser tido em menor conta por aquilo que é”. Com essa última frase, ele apresenta um novo vislumbre dessa pessoa  vaidosa e sem orgulho, ou seja, esse indivíduo não é alguém que ignora seus méritos, mas apenas não os acha bons o suficiente para o tornar alvo de admiração dos outros, daí criam-se as máscaras.

 

Foto: Elizabeth Taylor em cena no filme ‘Ash Wednesday’ em 1973

 

Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Poesias de Álvaro de Campos, Tabacaria, Fernando Pessoa)

 

No livro “Os nus e os mortos” (publicado originalmente em 1948), Norman Mailer, ao apresentar sua visão dos campos de batalha na Segunda Guerra (a partir de sua vivência nas trincheiras), traz nas falas de seus personagens uma reflexão sobre a identidade humana: “Há aquele equívoco popular de considerar que o homem é uma coisa situada entre a besta e o anjo. Na realidade, o homem está em trânsito entre a besta e Deus”. E, novamente, tem-se o retorno ao início da vaidade, ao desejo da criatura em tornar-se o criador, mas com grande possibilidade de tornar-se o seu contrário, ao menos no que tange a representação dessas duas figuras no imaginário coletivo.

 

Charlie Chaplin por Richard Avedon (1952)

 

“Não é a religião, isso é óbvio, não é o amor, não é a espiritualidade. Todas essas coisas são engodos, propinas que inventamos para nós mesmos quando as limitações de nossa existência nos desviam do outro sonho: o de nos igualarmos a Deus. Quando entramos esperneando no mundo, somos Deus, o universo é o limite de nossos sentidos. E quando nos tornamos mais velhos, quando descobrimos que não somos o universo, sofremos o mais profundo trauma de nossa existência.”

(Os nus e os mortos, Norman Mailer)

 

A vaidade em seu aspecto mais conceitual é representada pelo vazio, pela inconsistência. No entanto, não há leveza nesse vazio, há uma luta constante em manter uma representação, em partir para o embate (seja com Deus ou com sua própria natureza), em refutar aquilo que É em nome daquilo que gostaria DE SER. Por que insistir em representar uma figura para os outros? Talvez porque Sartre tenha razão: “o inferno são os outros”. A vaidade existe porque há o outro. O anjo só se rebelou porque havia um Deus. Embora tenha iniciado esse texto buscando (internamente e, talvez, vaidosamente) refutar o axioma inicial (“Tudo é vaidade”), termino-o derrotada, isso porque há o outro.  Assim, se a existência do outro é condição suficiente e necessária para a concepção e base da vaidade, então que aprendamos a lidar com o pecado e, principalmente, a sobrevivermos a ele.

Referências:

A BÍBLIA SAGRADA, Velho Testamento, Eclesiastes.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, 2008. 2  volumes.

GOLDHAGEN, Daniel J. Os Carrascos Voluntários de Hitler: o povo alemão e o holocausto. Tradução de Luís Sérgio Roizman. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Ed. Objetiva, 2001.

MAILER, Norman. Os nus e os mortos. 3 ed. Rio de Janeiro: Record, 1976.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário Silva. 9ª. Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos (Tabacaria). Disponível em:
http://www.insite.com.br/art/pessoa/ficcoes/acampos/456.php

SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes. Tradução Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations (Philosophische Untersuschungen). Tradução de G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1958.

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A Árvore da Vida: o universo diante de cada um de nós

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Com três indicações ao Oscar 2012: Melhor Filme, Melhor Diretor (Terrence Malick), Melhor Fotografia (Emmanuel Lubezki)

“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez”. (João 1:1-3)

A árvore da vida poderia ser apenas mais um filme que tenta responder perguntas que, talvez, nem devessem ter sido formuladas, dada a impossibilidade lógica das respostas.  No entanto, não há tentativas de elaborar respostas em A Árvore da Vida, há questionamentos murmurados em meio a uma impactante sequência de imagens, que vai desde a origem do universo e o desenvolvimento da vida na Terra até a casa de uma família atingida por uma tragédia.

No início do filme, tem-se um monólogo feito pela mãe em uma tentativa de descrever em palavras sua visão da vida e do ser humano. De uma forma simples, ela separa as pessoas em duas categorias, mas o que vamos presenciar no decorrer da história é que o ser humano, talvez como reflexo do seu próprio Criador, não é tão facilmente categorizável, assim, muitas vezes há intersecções e uniões que desafiam nossa lógica e nossa tão domesticada lucidez.

“O coração de um homem tem duas formas de encarar a vida: a forma da natureza e a forma da graça. Você deve escolher qual das duas seguir. A graça não tenta agradar a si mesma. Ela aceita ser desprezada, esquecida, rejeitada.
Ela aceita insultos e machucados. A Natureza apenas tenta agradar a si própria. Ela gosta do poder.
De ter suas próprias escolhas.” 

Com a morte de um dos seus filhos, a mãe começa a questionar até o sentido da sua Fé. Especialmente quando recebe palavras de conforto do tipo: “Ele agora está nas mãos de Deus”. Ao que ela responde: “Ele sempre esteve”. E é essa a angústia que separa os dois estados: em um momento o filho existe e pertence a Deus, em outro momento ele não existe, mas ainda pertence a Deus.  “Deus dá e Deus tira. É assim que Ele é. Ele envia moscas à ferida que Ele deveria curar”, diz a avó do menino, cansada demais para qualquer busca por sentido.

É nesse ponto que inicia-se na tela o que muitos consideram a parte mais ousada do filme, já que estamos em uma época em que a velocidade é primordial para manter o interesse do público e que efeitos visuais devem ser capazes de mudar a direção da nossa atenção a cada fração de segundo, e isso definitivamente não acontece nesse filme em particular. Mas há a força de um questionamento que marca o início de um fantástico balé de cores e sons.

Deus, por quê? Onde você estava? (a mãe)

Então, o silêncio é quebrado por uma trilha sonora profunda em meio a imagens que tentam contar uma história que, de certa forma, é impossível de ser contada. Ou seja, tem-se a tentativa do diretor de mostrar a Criação do Universo, os caminhos que foram necessários para que a nossa espécie, enfim, pudesse existir, mesmo que muitas outras desaparecessem nessa trajetória.

Onde você estava? Deixou um garoto morrer. Nada poderia ser feito? Por que devo ser bom se Você não é? (Jack)

Esse é o grande questionamento de Jack, que é iniciado ainda na infância e o assombrará por grande parte de sua vida. Uma vida marcada pela morte prematura do irmão e por tantas outras perdas. São dele as principais lembranças descritas no filme, desde a sua relação conturbada com o pai até seus momentos de extrema felicidade com a mãe e os irmãos. Em alguns momentos, o pai, na tentativa de fazer com que os filhos possam ter um futuro melhor do que o dele (um músico e inventor frustrado), cria um ambiente de medo e exige uma obediência cega, sem questionamentos.

Por favor, Deus, mate-o. Deixe-o morrer. Tire-o daqui. (Jack)

Paradoxalmente, Jack questiona Deus por não interceder e evitar a morte de um menino, mas pede que esse mesmo Deus mate seu pai. Natureza e Graça. Em que categoria o menino se encontra? Em que categoria podemos nos colocar, se a própria dinâmica da vida modifica o nosso sentido das coisas e de nós mesmos? Até que ponto o que desejamos é aquilo que sentimos? Talvez essas perguntas possam ser respondidas em um livro de autoajuda, pois só nesses livros as contradições são facilmente resolvidas. Agora, parece-me mais coerente concluir a questão sem apontar respostas, já que, para cada um de nós, tanto as perguntas quanto as respostas podem ter um sentido diferente. Os personagens do filme em um dado nível não são apenas contraditórios, são também relativos.

Eu queria ser amado. Ser um grande homem. Eu não sou nada. […]. Sou um homem tolo. (o pai)

Em meio a uma história de vida que não reflete um sonho (de ser um músico famoso, por exemplo), o pai tenta impor à sua família um conjunto de verdades simples e isso mostra-se insuficiente quando, mesmo com sua conduta tão correta (perante seus princípios), ele perde o emprego, a casa e, principalmente, um filho.  O homem que se pensava tão justo e inventivo não alcançou a graça, nem tão pouco pôde viver conforme a sua natureza.

Ao presenciar o pai, aos poucos, perdendo a força das suas crenças, Jack sussurra: “Pai! Mãe! Sempre a sua inquietação dentro de mim”.  Ele é, inevitavelmente, parte deles.

Se você não amar, sua vida passará em frente aos seus olhos. Admire. Acredite.  (a mãe)

Em um dado momento, temos a impressão, pelo recurso de imagem usado, que a personagem da mãe não está em um espaço/tempo definidos, logo ela pode vivenciar todas as fases que compõem sua trajetória, como se fosse, simultaneamente, a criança, a adolescente e a mãe. É como se ela e Deus (em forma do universo) estivessem em sintonia. Daí tem-se a aceitação e, quem sabe, o entendimento não somente da perda, mas, especialmente, do universo que há diante de cada um de nós.

Entrego-o à Você.Entrego-Te meu filho. (a mãe)

FICHA TÉCNICA DO FILME

ÁRVORE DA VIDA

Título Original: The Tree of Life
Direção e Roteiro: Terrence Malick
Elenco: Brad Pitt, Jessica Chastain, Sean Penn, Hunter McCracken, Laramie Eppler, Tye Sheridan
Ano: 2011

Prêmio:
Palma de Ouro no Festival de Cannes

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Depressão, Autismo, TDAH, Esquizofrenia e Bipolaridade compartilham a mesma base genética?

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Depressão, Autismo, TDAH, esquizofrenia e bipolaridade são doenças mentais categorizadas no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) a partir de um conjunto de sinais e sintomas. Esses sintomas podem mudar substancialmente de uma categoria para outra. Agora, a questão é: e se todos esses transtornos mentais compartilhassem um mesmo fator genético?

O artigo publicado na revista científica The Lancet (http://www.thelancet.com) na quarta-feira (27/02/2013) mostra o resultado de uma pesquisa baseada em dados genéticos de mais de 60.000 pessoas e que apresenta algumas informações elucidativas para o entendimento das premissas desencadeadoras de vários transtornos mentais. Um grupo de cientistas de diversas instituições de ensino aponta que essas pesquisas sobre o material genético e sua relação com os transtornos psiquiátricos podem ser a mais relevante da atualidade nesse contexto. O resultado dessa pesquisa em específico começa a indicar que, em um dado nível, os fatores de riscos genéticos podem ser mais salutares para o tratamento das doenças do que seus sintomas. Mas, os pesquisadores estão cautelosos com a apresentação dos resultados, dada a complexidade da temática, assim o Dr. Jordan Smoller, um dos responsáveis pela pesquisa e professor de psiquiatria na Harvard Medical School, diz que “o que foi identificado é provavelmente apenas a ponta de um iceberg“, pois entender os fatores genéticos por detrás dos problemas psíquicos não é algo trivial, já que há uma série enorme de genes envolvida e a descoberta dessas variações aponta para um caminho que pode ser refutado ou comprovado em pesquisas posteriores.

Para entender a pesquisa (iniciada em 2007), é interessante uma contextualização:

  • Participantes: dois grupos de pessoas, 33.332 com transtornos mentais e 27.888 sem incidência alguma de doença mental (o grupo de controle). Material genético de pessoas de 19 países.
  • Coleta de dados: de exames de DNA.
  • Procedimentos: verificação de variações em trechos de material genético (considerando que cada DNA tem bilhões de letras, é um trabalho que requer o uso de tecnologia de ponta e algoritmos computacionais complexos).

Para Jonathan Sebat, professor assistente de psiquiatria e medicina celular e molecular da Universidade da Califórnia, a seguinte situação já era comumente observada: “dois diagnósticos diferentes podem ter o mesmo fator de risco genético”. Assim, um ponto relevante de contribuição dessa pesquisa é a possibilidade de ampliação das variáveis para a elaboração dos diagnósticos desses transtornos mentais, agregando aos sinais e sintomas, fatores genéticos observáveis em exames.

Segundo o Dr. Smoller, o novo estudo contribuiu na descoberta de quatro regiões do DNA que conferem um pequeno risco de transtornos psiquiátricos. Para duas dessas regiões, a situação ainda não está clara, pois não se sabe quais genes estão envolvidos ou o que fazem.  Já as outras duas envolvem genes que fazem parte dos canais de cálcio, que são utilizados quando os neurônios enviam sinais ao cérebro.

A descoberta acerca do envolvimento dos canais de cálcio nessas regiões sugere que os tratamentos que afetam tais canais podem ter efeito sobre uma série de doenças, mas o Dr. Smoller é prudente em dizer que isso é apenas um grande “se”, logo ainda são necessárias mais pesquisas para a devida comprovação.

Há algum tempo já existem no mercado medicamentos que são usados para bloquear os canais de cálcio, utilizados para o tratamento da hipertensão arterial. Alguns pesquisadores já tinham postulado que tais medicamentos podiam ser úteis para o tratamento do transtorno bipolar antes mesmo dos resultados dessa pesquisa virem à tona. Mas, ainda há um (longo) caminho para a comprovação desse postulado. Um exemplo de tentativas de comprovação desse postulado é a investigação do Dr. Roy Perlis, do Hospital Geral de Massachusetts, que concluiu o tratamento em um pequeno grupo de pessoas (dez) com transtorno bipolar utilizando bloqueadores de canais de cálcio. Seu próximo passo é expandir a pesquisa para um grupo maior de participantes.

Mas, é claro que esse “se” já deve ter causado um alvoroço na indústria farmacêutica. Por isso, é importante ater-se ao “se”, pois uma hipótese ainda não é um fato. Assumir que bloqueadores de canal de cálcio podem contribuir no tratamento da bipolaridade e, a partir da aceitação da associação que há na base genética desse transtorno com os demais, transformar tal droga “em potência” em um novo Santo Graal da indústria farmacêutica pode ser o início de mais uma doença e não de um processo de cura. Essas pesquisas são importantes desde que sejam compreendidas como um processo dinâmico (passível de refutação, mudança e comprovação), não como uma verdade absoluta e imediata.

Referências:

http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736%2812%2962129-1/fulltext
http://www.nytimes.com/2013/03/01/health/study-finds-genetic-risk-factors-shared-by-5-psychiatric-disorders.html

 

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Argo: um filme falso para uma missão real

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Com sete indicações ao Oscar:

Filme, Ator Coadjuvante (Alan Arkin), Roteiro Adaptado (Chris Terrio), Edição, Trilha sonora original, Edição de Som, Mixagem de Som

 

O Império Persa, atualmente conhecido como Irã, foi governado por 2500 anos por reis (denominados Xás), com seus costumes e regras tão diferentes do mundo Ocidental. Em 1950, o primeiro ministro (Mohammed Mossadegh) agiu diretamente na imposição de novas leis em torno das políticas que regiam o Petróleo. Mossadegh era um nacionalista e defendia o controle das riquezas petrolíferas por parte do Irã. Assim, a Inglaterra e os Estados Unidos arquitetaram os meios para a instauração de um Golpe de Estado que tirou Mossadegh do poder e instalou o Xá Reza Pahlavi como o novo líder do país.

Enquanto o povo iraniano, em sua maioria, passava fome e sofria retaliações, a família do novo Xá vivia em condições de luxúria e poder. Agregando-se a isso, a crescente insatisfação do povo do Irã com as campanhas que tentavam tornar seu país mais ocidental, estava armado o cenário para a queda de Reza Pahlavi e o retorno do clérigo Aiatolá Khomeini ao poder.

Nesse contexto, está definida a base histórica que resultou, dentre outras coisas, na tomada da embaixada americana por um grupo de iranianos em 1979. Essa é a base na qual foi desenvolvido o tema principal de Argo, o tão premiado filme do diretor/ator Ben Affleck.

De uma forma geral, conforme apresentado em Bostock (2010), a vida em uma comunidade ocorre em vários níveis: o físico, o social, o econômico, o político e o psicológico. Acrescento, ainda, o fator cultural, e relacionando esses diversos níveis talvez seja possível olhar para um determinado povo de forma mais coerente. A obscura sensação que se tem é a de que vivemos em um mundo pequeno demais para manter certa diversidade cultural. Julgar o que é bom ou o que é mau a partir de uma dada cultura pode ser o começo de grandes embates.

“A condição do estado de espírito predominante em qualquer comunidade, em qualquer momento, pode ser denominado de um estado mental coletivo” (BOSTOCK, 2010). É nesse estado mental coletivo, de um povo que vivia acuado em um regime opressivo nas mãos do Xá Reza Pahlavi e depois acreditou se libertar a partir da condução ao poder do  Aiatolá Khomeini, que se dá o estopim da crise e a tomada da embaixada americana em 1979.

Com um grupo de cidadãos americanos (52 pessoas) sendo torturado psicologicamente no Irã, o Governo dos EUA precisava encontrar um meio de ação, ainda que não soubesse qual o caminho menos desfavorável (já que todos pareciam ser ruins). Em meio a essa crise, tem-se a informação de que seis americanos conseguiram fugir e se refugiaram na embaixada canadense.

Em Argo, há uma tentativa de reconstrução fiel dos fatos que foram relevantes para a retirada dessas seis pessoas do Irã, em um momento em que todos os aeroportos do país estavam sendo fortemente vigiados e que havia uma verdadeira caça aos americanos. Em meio a isso, tem-se uma das ideias mais inusitadas usadas pela CIA na consecução de um plano de fuga, proposta por Tony Mendez (interpretado por Ben Affleck), um especialista em “exfiltração”.

 

 

O plano era “simples”: acionar um diretor e um especialista em maquiagem, que tenha trabalhado em um importante filme de SciFi (exemplo, O planeta dos macacos) e espalhar a notícia que estavam produzindo um filme de Ficção Científica em Hollywood  e que precisariam de um cenário árido (como o encontrado no Irã) para ser o planeta de um grupo de extraterrestres. Claro, tal ideia é absurda e se não tivesse acontecido (e funcionado) de fato, possivelmente Argo seria tratado como mais um desses filmes hollywoodianos fantasiosos.

 

Você têm 6 pessoas escondidas em Teerã, uma cidade de 4 milhões de habitantes gritando morte aos americanos o dia inteiro. Quer fazer um filme em uma semana. Quer mentir para Hollywood, uma cidade onde todos vivem da mentira. Então você vai enviar um 007 para um país onde querem a CIA sangrando no cereal do café da manhã e depois vai tirar seis pessoas da cidade mais vigiada do mundo?

 

Ironicamente, em meio a todo o cenário construído para a rota de fuga ter êxito, o herói é HOLLYWOOD. Se não fosse tal premissa, possivelmente Tony Mendez não teria conseguido entrar no Irã com os seis passaportes falsificados para o grupo que estava escondido na embaixada canadense. O grupo que seria identificado, então, como a equipe produtora do filme.

Argo não tenta aprofundar-se nas nuances psicológicas das pessoas que estavam sob o domínio dos iranianos, nem que tipo de contexto histórico desencadeou tal situação. É um filme que mostra como um agente da CIA, com a ajuda de um embaixador do Canadá (país que ganhou os créditos da operação até 1997, quando esta deixou de ser confidencial), conseguiu entrar em Teerã e resgatar as seis pessoas.

Em uma conversa com Tony Mendez, pouco depois desse acontecimento, o diretor da CIA resume numa frase o tipo de trabalho desenvolvido por eles: “Se quiséssemos aplausos, teríamos entrado para o circo”.

Referência:

BOSTOCK, William Walter. The Psychological Preconditions for Collective Violence: Several Case Studies. Journal of Alternative Perspectives in the Social Sciences ( 2010) Vol 2, No 1, 273-297.

 


FICHA TÉCNICA DO FLME

ARGO

Título Original: Argo
Direção: Ben Affleck
Roteiro: Chris Terrio
Elenco Principal: Ben Affleck, Bryan Cranston, John Goodman, Alan Arkin.
Ano: 2012

Alguns prêmios:
BAFTA – Melhor Filme, Diretor, Edição
Golden Globes – Melhor Diretor (Ben Affleck), Melhor Filme – Categoria Drama
Screen Actors Guild Awards – Melhor Elenco

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