A compulsão à repetição

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fonte: encurtador.com.br/quIQR

Te convido a imaginar a seguinte situação: sabe aquela pessoa que tem o ‘’dedo podre’’ e não importa a relação que ela esteja, ela sempre acaba se dando mal? é traída, nunca dá certo com ninguém, sofre pelas mesmas coisas, mesmo estando em relacionamentos com pessoas diferentes, o resultado é o mesmo. Você e muitas outras pessoas, podem até pensar que seria melhor ela ficar sozinha, evitando se relacionar com alguém, afinal, já se sabe  onde isso vai dar. Quanta falta de sorte! Como o destino dessa pessoa pode parecer cruel, fadado ao mesmo resultado, uma coisa que não parece ter fim. Mas seria isso o destino? será mesmo que por muitas vezes  estamos fadados ao fracasso? ou os nossos impulsos primitivos nos levam a tais situações? Em Freud encontramos uma explicação: somos impelidos a repetir.

Para Freud (1920) o jogo do prazer e do desprazer tal como em um jogo de criança, brincando com um carretel,  que quando jogado, se vai juntamente com um simbolismo de ausência da mãe, gerando um sofrimento (desprazer) mas na volta do objeto é também como a volta da mãe, gerando um novo sentimento; o de prazer.  O então jogo do fort (embora) dá (voltou) traz a objeção de que essa criança cause o sofrimento para  obter o prazer. A partir desse exemplo Freud começa a assinalar a possibilidade da compulsão à repetição, percebendo que as manifestações desse jogo não são o suficiente para confirmar tais formulações, pois a compulsão a repetição vai além do que um mero prazer ou da evitação de um desprazer, são experiências de fato desagradáveis, parecendo que nenhuma instância psíquica seja capaz de satisfazê-la.

Somente em 1914 Freud define a compulsão à repetição como um fenômeno clínico, ao evidenciar os pacientes em análise percebe que os mesmo não se portam de forma calma, se expressam por  acts it out, ou seja eles o repetem não como uma lembrança, mas como uma ação repetindo sem saber que o fazem, já que o conteúdo está recalcado. Como sabemos na teoria de Freud, o aparelho psíquico é regulado pelo princípio do prazer,  fazendo com que os eventos psíquicos tenham o foco em diminuir a tensão ocasionada pelo acúmulo de excitação.  “ (…) um prazer momentâneo e incerto acerca de suas consequências só é abandonado para assegurar que mais tarde, por novas vias, se obtenha um prazer garantido” (FREUD, 2004/1911, p.68). Ou seja, só é possível obter prazer se antes houver desprazer.

No início a compulsão à repetição era compreendida como o retorno do recalcado, pois era entendido que a repetição vinha como um sintoma. Conforme o decorrer dos estudos, a mesma foi compreendida com aspecto estrutural, insuperável e insistente, por esse último fator é que tem-se grandes impactos e acaba requerendo mais energia do aparelho psíquico (MIRANDA; FAVERET, 2011).

É compreendido quando Freud traz a sua teoria sobre “Recordar, repetir e elaborar”, que é posto em perspectiva o impulso à recordação e pode-se notar que é um impulso que atua em oposição à compulsão à repetição, isso tendo em vista que a compulsão à repetição atua quando a recordação falha (GREEN; 2007).

De acordo com Pereira e Migliavacca (2014), pode-se compreender então, que a compulsão à repetição pautada em três dimensões, a primeira como meio de propiciar o movimento de ligação  do excesso traumático, em segundo ponto como uma forma de expressar a qualidade da insistência da repetição das pulsões e em terceiro ponto como uma forma de resistência do ID, uma resistência que seria inseparável das próprias pulsões.

Seguindo o pensamento de Green (2007), a ligação da compulsão com o prazer vem quando se compreende que o prazer só será experienciado após um desprazer para o ego, ou seja, desprazer para um sistema e satisfação para o outro sistema. Ainda sim a compulsão à repetição se apresenta de forma mais primitiva e instintiva que o próprio princípio do prazer.  

  A repetição então vem disfarçada como uma mera coincidência, voltando do passado como algo novo recriado. ‘’ Há algo que retorna do Real, que volta sempre ao mesmo lugar em termos de um encontro falho, abalando o estatuto subjetivo e abrindo a hiância por onde irrompe a interrogação: por que justamente comigo passa essa fatalidade?’’ (HARARI, 1990, p. 89).  O que é repetido ou o que é recordado, varia de acordo com cada caso, pois a compulsão à repetição está associada à resistência do ego.

 A transferência é um instrumento importante para a manifestação dessa repetição, possibilitando  a transformação da neurose comum em neurose de transferência. logo o analista deve se apresentar na relação formas que possibilitam a possíveis atuações, fazendo o analisando perceber que suas vivências atuais são fruto de um passado recalcado. Freud (1914). 

’Significar é sempre recordar sem perceber (e sem poder perceber) que se recorda: é associar, num átimo, consciente e inconsciente. Daí a expressão freudiana ambígua, fluida, misteriosa, mas reveladora: lembrança inconsciente – indicando-nos que a conexão mnemônica entre tempos e eventos, por um significado, pode ser recalcada de imediato e produzir efeitos psíquicos sem que o sujeito tenha racionalmente atinado com esse processo de si sobre si mesmo’’ (CASTILHO, 2013 p.248)

Notamos que essas repetições podem estar ligadas a eventos traumáticos, que nos causam uma neurose traumática.  Mas afinal o que seria essa  neurose? Ela ocorre após uma carga de energia gasta, seja em graves acidentes, amputações ou desastres de uma forma geral.  Ao se instalar na vida de alguém  pode causar danos a todos em volta, pois ela tem total controle sobre a vida da pessoa, que acaba fazendo suas escolhas segundo os desejos que a encobrem, depois de ser registrada no psiquismo, a neurose começa a se manifestar em forma de sintomas. Logo o Traumatizante se associa ao rompimento de uma estrutura de defesa do ego.

O ser humano traumatiza-se porque nele acontece algo inesperado, o desejo (inconsciente) e a angústia (consciente).  ‘’Qualquer experiência que possa evocar afetos aflitivos, tais como susto, angústia, vergonha ou dor física, pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso acontecer, de verdade, depende naturalmente da suscetibilidade da pessoa afetada” (FREUD, 1987 [1893a], p. 43) 

Freud fala ainda das nossas percepções sensoriais, do que é visto e ouvido, pontos de partida para  a construção de um trauma. Podemos então compreender que os comportamentos que integram a repetição não são movidos por um simples destino, mas em decorrência de uma compulsão, que são percebidos de uma forma estranha, advindos de um sentimento familiar, que foi esquecido. 


fonte:encurtador.com.br/dzC78

REFERÊNCIAS 

Campos, Douglas Oliveira de A compulsão à repetição e o sentimento de culpa / Douglas Oliveira de Campos. – Maringá : |S.I|, 2009. – 84 f. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Maringá, 2009 1. Teoria Psicanalítica. 2. Compulsão à repetição. 3.Sentimento de culpa. 4. Compulsão à repetição na teoria de Freud. Maringá 2009. Disponivel em <http://old.ppi.uem.br/Dissert/PPI-UEM_2009_Campos.pdf> acesso em 05 de maio de 2022

GREEN, André. Compulsão à repetição e o princípio de prazer. Rev. bras. psicanál,  São Paulo ,  v. 41, n. 4, p. 133-141, dez.  2007 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0486-641X2007000400013&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  03  maio  2022.

MIRANDA, Olivia Barbosa; FAVERET, Bianca Maria Sanches. Compulsão à repetição e adicção. Psicanálise & Barroco em revista , [S. l.], v. 09, n. 02, p. 147-160, 1 dez. 2011. Disponível em: http://seer.unirio.br/psicanalise-barroco/article/view/8733/7429. Acesso em: 2 maio 2022.

PEREIRA, Douglas. Aspectos da compulsão à repetição na clínica psicanalítica: Resistências e toxicomania. Orientadora: Eva Maria Migliavacca.2013. 126 f. Dissertação (mestrado programa de pós graduação em Psicologia. Área de concentração: Psicologia Clínica). Instituto de psicologia da universidade de São Paulo. São Paulo 2013. Disponivel em <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47133/tde-09012014-095422/publico/pereira_corrigida.pdf>  Acesso em 05 de maio de 2022.

 

 

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O Milagre na Cela 7: colaborações do pensamento sistêmico

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O Milagre na Cela 7 é um filme turco que se tornou uma sensação inesperada na Netflix, remake de um filme sul-coreano de Lee Hwan-gyeong. A filmagem ocorre na Turquia, precisamente em Mugla e BeyKoz em Istambul. O filme apresenta Memo, pastor de profissão, que vive na casa da avó com a sua filha, Ova. Ele possui deficiência intelectual e apresenta uma relação mais de amizade que de autoridade com a filha.

No contexto apresentado, a família protagonista é caracterizada por ser multigeracional, sendo classificada como uma família estendida, concomitantemente, em situação de vulnerabilidade social e com a presença de uma pessoa que exige cuidados especiais. A teoria sistêmica da família, descrita e publicada na década de 80 por Minuchin (1988), trouxe uma nova forma de visualizar os estudos sobre família. Considerar a visão sistêmica significa destacar a família como um sistema complexo, composto por vários subsistemas que se influenciam mutuamente, como: marido-esposa, genitores-filhos, irmãos-irmãos, avós-netos (Dessen, 1997).

Fonte: encurtador.com.br/qzB14

O melodrama gira em torno do fato da criança, Ova, querer a mochila de uma personagem que outra garota, filha de um comandante do exército, adquire antes. Ao vê-la com o acessório em uma reunião de família ao ar livre, Memo segue a garota, que o provoca em uma espécie de brincadeira. Nesse jogo, contudo, a criança escorrega em pedras íngremes,  bate a cabeça, cai na água e vem a óbito. Memo busca a menina e a leva de volta à família aos prantos, e, claro, é acusado injustamente de matar a garota. Posteriormente, o desenrolar de Memo é marcado pelas muitas violências que sofre antes e depois da chegada na prisão. Já na prisão o personagem sofre as consequências de estar preso por “matar uma criança”, os demais detentos punem o indivíduo que pratica tal ato. Ao se recuperar, Memo consegue conquistar amigos detentos, todos presos na cela de número 7 – de onde vem o nome do filme.

A narrativa de Milagre na Cela 7 vagueia entre o conforto de se sustentar na figura de Memo, que cativa sem muitas dificuldades, e a benevolência de absolutamente todos ao seu redor (exceto pelo tenente-coronel, tido como o grande vilão). O amor que Memo sente pela filha Ova é belíssimo de se contemplar, mas pouco sabemos sobre como ele a criou ou como era a relação de ambos quando a menina era mais nova. O carinho que vemos em tela mais se qualifica com um sentimento de irmãos, do que em geral estamos acostumados a ver entre pai e filha.

Fonte: encurtador.com.br/amIN2

Ao passo que a hierarquia familiar veio se tornando mais flexível em direção a maior igualdade de papéis entre os genitores, as relações maritais e parentais também se modificaram (Dessen & Braz, 2005b). Uma concepção semelhante no que se refere à ênfase nas relações interpessoais, segundo Zamberlan e Biasoli-Alves (1997), a família é um grupo primário condicionado pelo parentesco e pelas relações interpessoais entre seus membros, as quais são sustentadas por sentimentos de afeição, apoio, partilha de tarefas, cuidados com a prole e cooperação mútua em várias outras atividades.

Durante o desenrolar da história é possível notar que a filha, Ova, apesar da pouca idade tem compreensão da deficiência intelectual do pai, preocupação com os cuidados e o bem-estar dele. A escassez de estudos a respeito de pais com necessidades especiais dificulta a obtenção de dados estatísticos, mas sabe-se que a adaptação dessa família a essa condição pode ser bastante variável, a depender dos recursos que cada família possui.

i“[…] sobre o ciclo vital da família, afirma que esta deve cumprir suas tarefas fundamentais: a prestação de cuidados que satisfaça as necessidades físicas e afetivas de cada um dos seus elementos, […] e a socialização dos seus membros, que os inicia nos papéis e valores da sociedade em que interagem, permitindo a adaptação à cultura que os rodeia.”(Gomes;2007, p.1 apud Relvas,1996:II3).

Fonte: encurtador.com.br/qAPRS

Este é sim um filme que toca em temas sensíveis e humanos: a intolerância com pessoas que apresentam diferenças mentais e baixos recursos financeiros, a dificuldade em ouvir o outro e, também, a capacidade de evolução do ser humano para alcançar o auto perdão. Logo, os cuidados cativados por Memo, através de diversos coadjuvantes durante o filme, nas mais diversas circunstâncias, nos remete ao que postula Zinker (2007) que “não é preciso amar uma pessoa para cuidar dela com respeito” (p. 19).

A intersubjetividade agrega as interações e as relações entre os indivíduos como construtora da experiência real, sendo através dela que tudo pode existir. Ao saber que a intersubjetividade nasce na interação com o outro, o indivíduo se percebe como parte de algo e entende que tudo pode ser coconstruído nessa relação, sendo a coconstrução uma capacidade de unir o que diz respeito a sua existência em conjunto com a do outro (VASCONCELLOS, 2002).

Fonte: encurtador.com.br/uwGT4

Quando a forca, designada por pena de morte, aparenta ser um fim para Memo, seus companheiros de prisão pactuam uma forma para salvar o inocente. No fim, Memo não é salvo por um testemunho tão aguardado, mas sim pela união de seus companheiros de cela, do Diretor, do guarda da prisão e Yusuf, um colega de cela que troca de lugar com Memo e morre enforcado em seu lugar, realçando o processo de coconstrução pois partiu de um reconhecimento da realidade do outro, como significativo e válida também para sua realidade.

Em suma, Memo e Ova são colocados em um barco, para fora do país com o intuito de fugirem para escapar da violência policial. Na prisão, a morte de Memo é registrada, e Yusuf, é considerado fugitivo, como se tivesse conseguido escapar no caos da noite da execução. Por fim, retornam à cena para Ova, já crescida e prestes a casar, segurando o objeto a qual lhe foi dada pelo homem que salvou seu pai.

FICHA TÉCNICA

 

Fonte: encurtador.com.br/nDQ09

MILAGRE NA CELA 7

Título original: Koğuştaki Mucize
Direção: Mehmet Ada Öztekin
Elenco: Aras Bulut İynemliNisa Sofiya AksongurDeniz Baysal
Ano: 2019
País: Turquia
Gênero: Drama

REFERÊNCIAS

Dessen, M. A. (1997). Desenvolvimento familiar: transição de um sistema triádico para poliádico. Temas em Psicologia, 3, 51-61.

Dessen, M. A., & Braz, M. P. (2005b). As relações maritais e sua influência nas relações parentais: implicações para o desenvolvimento da criança. In M. A. Dessen & A. L. Costa-Júnior (Orgs.), A ciência do desenvolvimento humano: tendências atuais e perspectivas futuras (pp. 132-149). Porto Alegre: Artmed.

Dessen, M. A. Estudando a família em desenvolvimento: desafios conceituais e teóricos. Psicologia: Ciência e Profissão, São Paulo, v. 30, p.202-219, 25 out. 2010.

Gomes, A. P. Famílias Heroínas – enfrentar a adversidade de ter um filho diferente. Cadernos de Estudo. Porto: ESE de Paula Frassinetti. ISSN 1645-9377. N.º5 (2007), p. 15-18.

Minuchin, P. (1988). Relationships within the family: A systems perspective on development. In R. A. Hinde & J. StevensonHinde, Relationships within families: Mutual influences (pp. 7-26). Oxford-UK: Clarendon Press.

Vasconcellos, Maria José Esteves de. Pensamento Sistêmico: O Novo Paradigma da Ciência. Campinas: Papirus, 2002. 272 p.

Zamberlan, M. A. T., & Biasoli-Alves, Z. M. M. (Orgs.). (1997). Interações familiares: teoria, pesquisa e subsídios à intervenção. Londrina: Editora da UEL.

Zinker, J. (2007). Processo criativo em Gestalt-terapia. São Paulo, SP: Summus.

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