Foto: Irenides Teixeira
Ilustração: Michel Rodrigues
Durante outra conversa vimos que, nome por nome, na atual conjuntura, não vale de nada, pois aonde vamos não perguntam nosso nome e sim o CPF, o RG, o Passaporte, o número do cartão de crédito, o número do telefone. Percebemos que somos número. Com essa ideia criada ou observada, batizei o personagem com um número, o número cinco. Entretanto, para brincar com os idiomas, chamamos o nosso personagem de Cinque (pronúncia em italiano: tchinque). Cinque logo se identificou com seu nome, pois têm cinco dedos em cada mão e pé, cinco membros (duas pernas, dois braços e uma cabeça), cinco buracos pelo corpo. Enfim.
Durante a parte da manhã fiquei um pouco decepcionado com as pessoas pois, todos passavam por onde o personagem estava e lia uma placa escrita assim: “pago 1, real, por uma boa conversa (mas só pago se for boa, muito boa mesmo)”, e depois riam, comentavam algo e saiam. Eu pensei que o dinheiro fosse atrair e funcionar como uma desculpa para iniciar uma conversa, mas com aquele público não funcionou. Tive poucas conversas. Conversei mesmo foi com professores e acadêmicos. Até tentei mudar minha estratégia, fui andando com a placa, mas não fui bem percebido, ao contrário dos meus patins que fizeram muito sucesso.
Mas para mim, a maior surpresa foi durante a noite. Este foi o momento no qual trabalhei saúde mental de um jeito incrível, em simples relacionamentos e conversas. À noite estavam apenas três pessoas, eu do segundo período com este personagem e mais duas meninas de períodos similares ao meu, ou seja, tudo calouro.
No nosso espaço na EXPRO tínhamos uma instalação que era um caminho cheio de lixo, uma intervenção, que era uma mesa e duas cadeiras penduradas de lado na parede com a intenção de parecer que a parede era o chão, tinha ainda um boneco feito de rodo, papelão e fitas, e o estande com uma teia gigante com fotos.
As meninas estavam andando pela EXPRO chamando as pessoas para o estande, e no estande estava Cinque (eu), este sim foi um momento belíssimo, no qual eu pude trabalhar a ideia de uma frase que estava grudada na mesa da parede: “Veja o mundo com diferentes perspectivas”.
Cinque se aproveita de tudo para ter uma boa conversa. Conto aqui algumas situações aproveitadas por Cinque para iniciar uma conversar, que por ventura, tornar-se-ia boa: Muitas pessoas ao saírem do caminho do lixo comentavam algumas coisas como “não aprendi nada aqui”, “que coisa feia”, “coisa chata”, “Clichê”. E a partir destes comentários Cinque se apropriava da situação de forma que chegava ao lado das pessoas que comentavam e começava a comentar a mesma coisa dizendo que não tinha nada a ver, que era uma coisa muito feia, sempre concordando com a pessoa, e isto fazia nascer certo interesse, nas pessoas, pelo personagem, e neste ponto a conversa iniciava, de um comentário rotulado como inútil surgiram várias “boas muito boas conversas”, conversas de pessoas tristes, angustiadas, outras felizes e de bem com a vida, uma grande experiência para Cinque que ao tempo que muito aprendeu, muito ensinou com seu jeito educado e inocente de ser.
Dentre as conversas que Cinque teve, houve casos incríveis. Certa vez veio-lhe uma mulher querendo apenas o um real; entretanto, esta não teve uma boa conversa e, portanto não ganhou o um real, voltou ali outra vez, e a mesma coisa, na terceira vez que voltou, conversou por bastante tempo com Cinque, uma conversa muito boa mesmo; conversaram sobre pessoas, amigos, valores e conversas; no final da conversa quando Cinque finalmente foi pagar a combinado, a pessoa simplesmente não aceitou, e disse: “vou ficar apenas com a conversa, obrigado, valeu mais que muitos reais” e o mais incrível foi que Cinque pensando que tinha aprendido muito, pelo visto ensinou algo.
Pessoas que precisavam conversar apareceram para Cinque com a ideia de ganhar um real, durante a conversa essas pessoas começavam a contar de suas vidas, verdadeiros relatos, ou se alguns preferem, utilizaremos a palavra desabafo, mas não era simples desabafo, pois na suavidade de Cinque os desabafos se transformavam em historias as quais poderiam se ajeitar. A cada um real que Cinque pagava, aceito ou não, muito lhe era acrescentado e aprendido, não só para ter assunto para outras conversas, mas também para adequar-se ao mundo.
Um dos fatos engraçados foi com uma mulher falando que psicologia é coisa de loucos, psicólogos é um bando de loucos; depois de alguns minutinhos de conversa, a mulher resolve fazer terapia, finalizo aqui esta historia. Só para relatar, as conversas que Cinque tinha não eram com intuito terapêutico, eram pra ser apenas conversas, porém a tamanha qualidade das conversas, não por parte de Cinque, mas sim por parte e sinceridade de quem vinha conversar, tornava as conversas num ambiente de grande crescimento e fortalecimento da saúde mental, ou melhor, dizendo, da boa saúde mental.
Não apenas mulheres foram conversar com Cinque, mas também homens, e com estes Cinque se surpreendeu, homens que ao chegar sacaneavam um pouco e por fim acabavam “se abrindo” e tornando-se receptíveis.
Mas apesar de ótimas conversas, não minto que por ali passaram várias pessoas que ridiculizaram Cinque, e também que não deram atenção, Cinque nunca insistiu, sempre está aberto para o que quer que venha. Algumas muitas pessoas nada queriam, portanto, riam, nem olhavam, passavam reto. Até estas pessoas serviram de aprendizado, ou melhor, ensinamento para Cinque, que agora vê um jeito de atingir também estas, sem ser forçado, de maneira que as pessoas venham de maneira natural.
Uma das boas estratégias usada por Cinque além de conversar sobre o que as pessoas queriam conversar, era usar patins e terno ao mesmo tempo, por causar certa estranheza, algumas pessoas se aproximavam e queriam saber o motivo e era apenas um instrumento para aproximação, e nisso as conversas iniciavam.
Não só conversas individuais teve Cinque, mas também com grupos, grupos super espontâneos estiveram ali e também grupos fechados, de difícil interação. Entretanto, conversas rolaram sobre vida, mundo, banana, ar condicionado, telha, pessoas, grupos, saúde mental, psicologia, eu, você, diferentes perspectivas, esses foram alguns temas conversados nesses grupos, trabalhamos também dinâmicas e apresentações que, ao interagir com os grupos, fortificava e deixava um pouco mais aberto a novos integrantes. O chão foi o melhor ambiente para aqueles grupos, para outros, bom ambiente foi andar, outros ainda foi nem conversar. Enfim cada grupo e cada pessoa têm suas características e trabalhar com elas foi incrível.
Muitos outros causos aconteceram e antes de cada um vinha, para Cinque, uma ansiedade que era de não saber a próxima conversa que teria, como ele iria se portar ou conversar de tudo; ele pouco sabia, e pouco sabe, quer aprender.
Findando este momento… Caso queiram saber outros causos ou não, se querem conversar ou não, criticar ou elogiar, ou ainda fazer qualquer outra coisa, vos convido: VAMOS CONVERSAR?
No dia 18 de Maio de 2012, o Portal (EN)CENA Saúde Mental em Movimento promoveu uma intervenção na Praça do Bosque, em Palmas – TO, chamada de “Saúde Mental em Redes”, aproveitando o ensejo da Luta Antimanicomial (comemorada nessa data), e com o objetivo de provocar uma reflexão acerca do tema Loucura, a ideia central do evento era: “Traga a sua Loucura para a praça”.
Nesse sentido, eu criei um personagem: um mímico, mudo, que utilizava um capacete de melancia. E não se iluda, nesse figurino, nada fora escolhido aleatoriamente.
A verdadeira identidade do meu personagem não foi muito bem entendida por todos. Ele causava, à primeira impressão, certo estranhamento, mas logo era aceito, e pelas mímicas que eu fazia ao tentar me comunicar, as pessoas rapidamente começavam a interagir com o mímico.
Acredito que a aparência de um palhaço, com um capacete de casca de melancia na cabeça, facilitou para a aprovação geral do personagem por todos. Mas, infelizmente, as pessoas presentes no evento se apegaram somente ao estereótipo de palhaço, e preferiram focar nesse aspecto. Esse comportamento não difere muito do que acontece na sociedade atualmente. Acho que todos pensaram que: por eu estar pintado como um palhaço, fazendo mímicas, e com uma melancia na cabeça, eu estava fazendo apenas o que se era proposto pelo evento: levando a minha loucura para a praça.
Minha intenção era ficar em silêncio desde o momento que eu me vestisse como o personagem, e assim permanecer até eu me descaracterizar. Foi o que aconteceu.
No geral, a impressão que tive, foi a de que todos achavam que eu só queria chamar a atenção, afinal, é crença popular de que se você quer ser visto por todos, basta colocar uma melancia da cabeça, e sim, foi o que eu fiz, literamente. Mas, o que ninguém percebeu de fato, é que o meu capacete, além ser feito da casca de uma saborosa melancia, protegia o meu personagem (ou a mim) das ideias (todas essas ideias) que nos são empurradas goela abaixo pela sociedade. Munido do capacete eu poderia transitar tranquilamente pelo evento, sabendo que em minha cabeça fluiriam apenas pensamento genuínos, fruto de meu próprio senso crítico. O capacete de melancia do palhaço era, por assim dizer, uma defesa eficaz contra o controle de terceiros.
Durante o evento ocorreu uma situação engraçada, na qual, uma das pessoas presentes não entendeu a proposta do personagem. Ele estava arrumando o som e era necessário mais um microfone, eu tentei explicar apenas com mímica (o que não deu muito certo), e ele já irritado, disse que era pra eu falar logo o que eu estava tentando mimicar.
Vemos assim o quão difícil é aceitar o jeito de ser do outro, imagine então a dificuldade que é entender a loucura do outro? Estamos muito mais preocupados em sermos nós mesmos, e esperar que os outros ajam como esperamos que eles ajam que, quase sempre, não toleramos o diferente, o inesperado.
Por que parece ser tão difícil entender a “loucura” alheia? A meu ver, essa é uma dificuldade da nossa atual sociedade (sociedade está na qual estamos inseridos), aliás, quase nunca nos atentamos para o fato de que SOMOS essa sociedade em que vivemos, e de que temos sim essa dificuldade. A própria Luta Antimanicomial surge, historicamente, atrelada aos movimentos de Reforma Sanitária que defendiam, entre tantas coisas, que não basta fechar os olhos e negligenciar o problema da loucura, mas que ele deve sim, ser encarado. Parece impossível de acreditar, mas a solução para chegarmos a uma solução pode ser muito mais simples do que imaginamos, e como já dizia Chiara Lubich (Ganhador do Prêmio Unesco pela Paz 1996 e do Prêmio Europeu para os Direitos Humanos 1998): “Podemos recomeçar, esquecer o que aconteceu e ir em frente com uma nova ideia”.