Temos que reagir, temos que nos indignar

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Carlos Rivoredo, no Seminário Norte da Política Nacional de Humanização (PNH), ocorrido em Manaus, nos dias 20 e 21 de março, dá uma chamada a todos nós no momento da abertura do evento. Pede para nos indignarmos com os desvios de verba pública e diz que toda a rede de hospitais privados foi financiada pelo Fundo da Assistência Social da época da ditadura. Afeto marcado, emoção expressa e um contágio silencioso. As pessoas ficaram caladas, bateram palmas e passaram a outro assunto como se uma brisa apenas tivesse passado antes de alguém fechar a janela. Aquele homem num repente foi ele todo, humano, pois lembrava de fatos, por todos os seus sentidos, com um foco atento ao que falava, afetado, indignado com a fraqueza humana, com nossa passividade.

A chamada de Carlos Rivoredo é para usarmos nossa atenção e nossa memória ao que fazemos em busca de uma vida coletiva sem vistas grossas à corrupção, aos fascismos que se encontram na relação entre governo e população. A comunicação deve ser ampliada, gerando clínicas ampliadas. A comunicação deve gerar protagonismo, movimentar nossa atenção para pontos em comum, que, se mudados, se geridos de outras maneiras, a vida pode ficar mais fácil, mais produtiva, mais criativa, menos sofrida, menos queixosa.

É pela comunicação que fazemos nossas próprias revoluções, o humanizar inicia-se por ela, com ela e para ela. O que queremos comunicar quando falamos de um exercício político e ético? O que se quer comunicar quando se capilariza a humanização como política nacional? A PNH visa exercitar a atuação política em torno das redes de assistência, começando pela rede de saúde.

Exercitar a atuação política na e da rede de saúde significa transformar uma prática despolitizada numa politizada, ou seja, transformar uma prática reprodutora em prática criadora, descartável em cultivada, sem sentido em projetada, corrupta em gerida.

A PNH é uma política de saúde de educação, de cultura, de gestão, de trabalho, de questões e não de respostas. Questiona a pólis, na pólis, com a pólis, mas não para a pólis. Sua ação é capilar. As políticas de respostas prescrevem, a PNH processa, compõe, agencia. Busca agenciar os afetos e a formação integral das pessoas, o desenvolvimento do fazer do humano ligado a uma ética coletiva, que cultiva filhos, cultiva laços, cultiva nossas percepções, nossos talentos, nossas potencialidades, nosso tempo, nosso desenvolvimento, não em números de PIB, mas em territórios de existências solidárias, o que não é o mesmo que assistencialistas, e ético-praticantes, o que não é o mesmo que caretas.

E o Fundo de Assistência Social continua a financiar hospitais privados. Se comunicação é o que fundamenta a humanização, nosso silêncio é um analisador. Talvez por que ainda buscamos humanizar os outros, e não a nós mesmos. Processo de trabalho nenhum é condição suficiente para manter tantos desencontros nas práticas de cuidado e da formação ao estilo ainda, eminentemente, bancário. Os processos de trabalho são raízes podadas de um tronco que mais cedo ou mais tarde vai cair. Se as raízes não crescerem, a árvore vai cair; se não desenvolvermos nossos processos de trabalho, não desenvolveremos nossa humanidade. Não me refiro aqui ao trabalho assalariado, mas ao trabalho como constituinte da humanização. O trabalho que cria culturas, ao invés de descartáveis, junto à educação; que trabalha os sentidos, a língua, a fala, a escrita, a lógica, o corpo, o sexo, as percepções, a arte e o esporte. Desenvolver seres humanos, na concepção que sustenta esse texto, não significa direcionar o homem para um rumo evolutivo-progressivo…desenvolver não é direcionar; o homem não precisa de direção, ele traça direções. O desenvolvimento deve se dar na apropriação de nossa capacidade criativa, gestora da vida e das coisas. Sem isso, nossa coletividade vai ruir, nossa humanização será a insistência de uma rede que se constitui quase sempre com dificuldades.

A formação da rede de serviços públicos não pode se sustentar na diferenciação entre usuário, gestor e técnicos de serviços. Não importa essa diferenciação, quando a questão é a gestão do coletivo. Isso não quer dizer que as funções-trabalho necessariamente devem ser banidas, mas a forma de trabalhar deve mudar. Os processos de trabalho possuem sua cota de importância nas características de nossa sociabilidade. Portanto, aqueles devem visar essa última. Fazer os Conselhos de saúde funcionar com potência é função de todos, não por que todos devem estar presentes nos conselhos, mas sim pelo fato de ser função de todos contagiar nossas relações com o bem público com transparência, solidariedade e co-gestão.

Carla Bressan (2002) faz uma análise política em seu artigo intitulado “Fundo de Assistência Social” parte integrante dos Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”. Seu trabalho retrata a maneira como os equipamentos do controle social funcionam aquém de sua real função que é estratégica na política pública da saúde, no SUS.

O Conselho é propositivo, avaliativo, deliberativo sobre os recursos, mas a execução não está na instância do Conselho. A gestão do Fundo não é do Conselho, mas do órgão público responsável pela assistência. No entanto, a proposta orçamentária deverá ser aprovada pelo Conselho e sua aplicação fica sob acompanhamento e controle do Conselho. Eis aqui um dos pontos centrais: o Conselho precisa discutir e analisar a proposta e o que se percebe é que, normalmente, a proposta orçamentária vem do gestor e muitas vezes, os conselheiros sequer têm elementos para discuti-la. Ou ainda a proposta vem com a referência explícita de que não seja discutida por falta de tempo porque “é perda de tempo discutir”, pois o recurso é muito pouco frente às necessidades. É muito comum acontecer isso, o gestor encaminhar para que o Conselho apenas aprove. O que quero chamar a atenção é que nossa função não está em meramente aprovar, pois existe uma responsabilidade nessa atitude – não é apenas uma formalidade eque muitas vezes, acabamos aprovando questões que nem sempre receberam o tratamento de debate e análise que demandariam. Isso não quer dizer que a proposta que vem do gestor seja ruim, mas a referência está na operacionalização do Plano e suas prioridades. Se a proposta é boa, não se tem que ter medo de que seja discutida.” (BRESSAN, 2012, p.16)

O sítio www.portaltransparência.gov.br/# apresenta as despesas e as receitas geradas nos Fundos Municipais de Saúde. Essas despesas e receitas precisam ser geridas pelos Conselhos. Os participantes do Conselho são os que diretamente podem ligar o orçamento municipal a um planejamento amplo. Como é planejado o uso desses recursos? Eu não sei.

Mas vejamos um exemplo de como a verba pública é administrada. O sítio da “Conexão Tocantins” mostra um projeto de lei que visa instituir auxílio-moradia para procuradores e promotores do Ministério Público Estadual. Os promotores e os procuradores recebem em torno de 25 mil reais como salário e pedem, das verbas públicas, mais 2 mil reais como auxílio-moradia. Para quê? Gostaria realmente de saber! O custo desse pequeno adicional (maior do que o salário bruto da maioria da população), por ano, para os 12 procuradores e para os 100 promotores, girará em torno de 2.900.000 reais (dois milhões e novecentos mil reais) A soma dos salários dessas 112 pessoas, juntamente com a soma do possível auxílio, resulta em cerca de 32 milhões de reais o que corresponde a um décimo dos recursos oriundos do governo federal para o município de Palmas que girou em torno de 290 milhões de reais. Isso quer dizer que 112 pessoas que trabalham para e no Estado recebem, como salário, um décimo do que o município recebe para criar políticas públicas para em torno de 220 mil pessoas, se pensarmos apenas no município de Palmas, sem contar as demais pessoas que, mesmo que parcamente, beneficiam-se com o retorno federal ao Estado do Tocantins. Não consigo compreender o exercício ético que sustenta uma realidade dessa. Vejamos a justificativa apresentada na reportagem do “Conexão Tocantins”:

“O projeto é apresentado após polêmica causada com a decisão dos deputados de também receberem auxílio-moradia, mesmo maioria deles tendo residência própria na capital. O valor que os parlamentares vão receber é de R$ 3.429,50.”

Ou seja, o argumento gira em torno de uma birra, como de crianças diante de um saco de pirulitos: o outro tem, quero ter também. Esse é o argumento apresentado na reportagem. Desconheço o real argumento, mas não creio ser diferente desse. A ética que sustenta uma realidade dessa é iníqua, não poupa vidas para se manter desigual assim. O bolsa-família gira em torno de, no máximo, 306 reais, por família. Analisemos bem, 306 reais por família, para todas as despesas, contra 2000 reais para deputados que já possuem casas e recursos para terem mais casas. Palmas possui em torno de 6500 famílias contempladas pelo programa bolsa família, ou seja, Palmas recebe em torno de 1 milhão e novecentos mil reais, por mês, para melhorar as condições de vida de mais ou menos 30 mil pessoas que moram em Palmas. Enquanto o salário de 112 pessoas contabilizam 32 milhões de reais por ano, o bolsa família atinge, com 24 milhões, 30 mil pessoas ao ano. Existe uma massa imensa de trabalhadores das universidades e dos serviços públicos, nós todos, eu inclusive, que sabem disso e se organizam apenas por sindicatos burocráticos e datas base que mais parecem um jogo histérico do qualquer outra coisa. Santa psicose, dai-nos forças contra as perversões, contra as fantasias e contra as depressões.

O ser humano é um manancial de vida e se deprime pelo fato de não saber onde deve atuar para injetar vida nessa pólis com marasmo, na qual sempre estamos em dívida. Devemos sempre…devemos dinheiro, devemos técnica, devemos conhecimento, devemos, devemos, devemos. Devemos fazer mais, devemos votar, devemos trabalhar, devemos deveres, devemos dever. Quando se deve, sempre se está num tempo que não o livre… a vida gira em torno da dívida. Quem deve, paga…quem paga trabalha à força.

Assim financiamos o Fundo da Assistência Social, mas não o gerimos. Estamos atarefados demais para conseguirmos pagar pelo o que fazemos. E quando fazemos nos sentimos, constantemente, em dívida. Trabalhamos mais e o ciclo se fecha assim, numa escrita sem fim.

Referência:

BRESSAN, Carla. Fundo de Assistência Social. In: Fundos Públicos e Políticas Sociais.MAGALHÃES JÚNIOR, José César; TEIXEIRA, Ana Claudia C. (Org.) Fundos Públicos. — São Paulo: Instituto, Pólis, 2004.. (Publicações Pólis, 45) Anais do Seminário “Fundos Públicos e Políticas Sociais”; São Paulo, Agosto de 2002.

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18 de maio – comemorar o quê?

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Falo aqui sobre Luta Antimanicomial a partir da vivência afetiva do ser humano. O afeto, enquanto expressão das emoções, expressa, comunicando, a maneira pela qual o homem integra-se numa vivência de ser que por sua vez não vejo motivo para caracterizar como, necessariamente, racional e ou consciente.

Para isso precisamos compreender, ampliando, o conceito de inconsciente. Ele está associado a um reservatório-criadouro de energias que, associando-se por meio da vivência corporal, ligam-se, por significação, a objetos, tanto corpóreos quanto simbólicos.

As energias seriam decorrentes da estimulação constante a que nossas células são expostas uma vez que são elas, em nível microscópico, que fazem todo o trabalho da vida, gastando e produzindo energia. E os nossos jeitos de ser é que vão balanceando a troca, pelos nossos costumes, hábitos, crenças, sociabilidade e um tanto de outros processos que merecem ser, em outro momento, listados, descritos e poetizados, ao invés de medicalizados ou psicologizados.

Todo saber tem sua própria ciência, seus próprios métodos, e, se o homem humaniza-se no trabalho, enquanto motor econômico e educacional, e, portanto cultural, ele, ao se doar a um trabalho que não forma, mas deforma (haja vista o grande crescimento das doenças ligadas ao trabalho e a medicalização do trabalho) está alienando-se de parte de sua humanização. Todavia não se há clareza de qual trabalho seja mais humanizante, ou seja, não se pode afirmar qual saber ligado às suas respectivas práticas faz uma sociedade ideal, se o psicológico ou o religioso, se o do curandeiro ou do pediatra; só sabemos que são muitos os saberes e as práticas que fazem as ideias e os ideais de todas as sociedades. Portanto, o paradigma do campo da saúde mental está ou coincide com o viver subjetivo.

Talvez seja mais coerente, portanto, dizer em criar as condições para os agrupamentos humanos discutirem o que é, por exemplo, saúde para elas. E tais condições são as satisfações básicas, o pensamento livre e o afeto desenvolvido… integralidade hoje é um termo vazio de sentido…é um tudo que não é nada. Se não se fala e nem se produz afeto no que fazemos não adianta inventar conceitos para nos humanizar. O tempo disciplinar gera alienação mesmo e o que mais fazemos é disciplinar nosso tempo, dentro mesmo dos CAPS. O que o SUS, por meio dos CAPS, está oferecendo hoje é, muitas vezes, somente um comércio de recursos entre entes da federação. Mas tal efeito é colateral; não é por descaso ou avareza humana necessariamente. A questão é que há a produção dos CAPS, elementos estratégicos para se trabalhar com a afetividade, mas as demais políticas de sociabilidade, e portanto da afetividade, estão deixando a desejar.

As pessoas imbuem-se mais em sofrimentos psíquicos, independente do SUS e de sua Política Nacional de Saúde Mental; sabem pouco lidar com o afeto, deprimem, entram em pânico, TABitizam, borderlinerizam-se, TDAHgatizam, DSMizam-se. É cult… igual iphone e ipad. A diferença que esses são interativos e produzem intuições enquanto aqueles são cascas que não nos deixam ver que a vida é muito mais simples do que imaginamos, somos apenas covardes e sem ritmo, ocupados demais para dançar. Não fazemos esportes, não fazemos comida, não trepamos, não cultivamos, não compreendemos, não sabemos decidir  e nem controlar nossas emoções doentes, não somos assertivos, não temos memória, nem atenção e nem afeto. Somos profissionais, que temos que lutar contra a pobreza e contra as garras das drogas, do capeta, dos maus gestores, dos pedófilos, dos assediadores da moral, dos incompetentes… todos os inimigos errados. Tudo conversa fiada. Temos que lutar mesmo é contra o fascismo.

Temos que lutar contra o fascismo. Contra mercados econômicos de formação que fazem ciências sem paradigmas, contra o roubo diário chamado Imposto, contra uma educação que não consegue otimizar nem 1/100 de nossa memória, de nossa atenção e de nosso afeto; contra uma sociabilidade individualista, que coloca uma criança dentro de uma escola por dez horas diárias e contra essa família cada vez mais desafetizada, onde pais relacionam-se com seus filhos, apenas por doenças e remédios. Temos que lutar contra a política que espalha drogas tarjas pretas no mercado, do Oiapoque ao Chuí, com todos os seus efeitos colaterais e proíbe o uso da maconha, planta que produz muitos benefícios ao ser humano. Temos que lutar contra a soberania militar, que pode tudo a qualquer hora… quem me diz que a ditadura acabou não sabe do que fala. Temos que ir duas mil pessoas de branco, de preto (não importa) ao Congresso e retirar, amistosamente, Renan Calheiros do Senado. Temos que lutar contra a concentração de riqueza – essa distribuição de bolsas não atinge nem perto os grandes malotes de riquezas roubados e-ou concentrados na mão de uma minoria sem criatividade, sem garra, sem preocupações de sustento, e com tantas outras descabidas.

Temos que lutar a favor da vida. A vida não é difícil como parece.  Basta-nos ter espaço, comida e interação social que gere trabalho e passe cultura, educando. Um sistema simples, que não precisa de shoppings, de câmaras e muito menos de partidos políticos. Aliás, precisamos lutar contra os partidos políticos… são as coisas mais inúteis, perniciosas e corruptas mesmo que obrigatórias em nossos sistema, não só eleitoral, mas de vida. São os partidos que gestam a verba pública. Os conselhos apenas brincam de gestão. A verba no SUS continua sendo mal gerida; o sofrimento mental está mudando de lugar e, sobre isso, ainda não concluo nada. As drogas continuam sendo o bode expiatório das mazelas e os engravatados realmente acham que esperamos eles decidirem se podemos ou não podemos fumar maconha. Quer saber, tudo isso é uma grande babaquice. Um país, um estado e um município em que não posso afirmar que fumo maconha sem causar problema e frisson são fascistas. Amo o Brasil, mas acho ridículo o tema “ORDEM E PROGRESSO”.  Vamos mudar esse nome para – LIBERDADE E EDUCAÇÃO.

É contra isso que luta a Luta Antimanicomial. Não sei se temos tanto a comemorar. Eu comemoro as conquistas solitárias de muitos CAPS; não comemoro pela nossa educação pública; não comemoro a Copa e nem as Olimpíadas; comemoro a festa em Porto Nacional; comemoro os Tccs protagonistas; comemoro os movimentos acadêmicos; não comemoro a medicalização e nem a falta de paradigma da Psicologia; comemoro os projetos nos editais de cultura e de saúde, comemoro os grupos no SEPSI, as atividades em Dianópolis, os grupos do Alteridade e os estudos de Psicanálise; não comemoro os impostos e nem os dízimos das Igrejas; comemoro a turma que discute a sustentabilidade, os exercícios de estruturação curricular, a poesia e os encontros; não comemoro o DSM e nem os diagnósticos classificatórios; comemoro as exposições fotográficas, os livros bons que são publicados, os filmes que nos afetam; não comemoro a repressão e nem a inflação; comemoro as boas aulas e não comemoro pelos erros em sala de aula; comemoro viagens, não comemoro prisões. Comemoro troca e não usurpação; comemoro o silêncio, o grito, mas não a falácia e a falação. Comemoro muitas outras coisas, e tantas outras não. Comemoro as amizades, a inveja não.

Em especial, comemoro os dois anos do (En)Cena, pela criatividade, dedicação, produção, arte, humildade e perseverança. Comemoro nossa afetação e nossas parcerias. Comemoro. Comemoramos.

Equipe (En)Cena, em um dos seus momentos de Luta, comemora o encerramento do Seminário Norte de Humanização em Manaus – AM, 2013.

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Knulp – O viajante – Hermann Hesse

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Knulp é um personagem criado por Hermann Hesse. Hesse foi um poeta e romancista alemão, nascido em 02 de julho de 1877, que conviveu com artistas alemães do final do século XIX que provocaram alterações no campo das artes, da política e dos costumes alemães. Conviveu com os principais artistas expressionistas. O Expressionismo foi um movimento cultural alemão do início do século XX, que durou de 1905 à década de 30, até a ascensão do nazismo. Dentre os seus representantes listam-se:

Egon Schiele, na pintura, com o seu quadro “O abraço”, de 1917;

Franz Kafka, na literatura, autor dos livros “O processo” e “A metamorfose”;

Alban Berg, na música.

Para Neto (1998), “o ideário expressionista está em sintonia com as sensações de desconforto e ansiedade, com estados de tensão, com a ’alma torturada.’” (p. 119). Como exemplo podemos pensar no desconforto vivido pelo personagem Gregor Samsa, do conto “A metamorfose”, de Franz Kafka, quando se transforma e vive em forma de um inseto. Mas isso serve apenas para exemplificar a dinâmica cultural em que viveu Hesse, sem querer dizer que o pessimismo dos expressionistas o tenha pegado também pelas escritas. Não. Pelo menos em Knulp, não.

Hesse nasceu em Calw, uma pequena cidade alemã. Escrevia desde jovem e em sua educação deparou-se com a cultura oriental que o influenciou na escrita. Foi rebelde com sua família, crítico da burguesia. De acordo com Mariano Torres (autor da orelha do livro traduzido do alemão para o português), Hesse era um homem de espírito inquieto que largou a escola e foi trabalhar como aprendiz de relojoeiro. Depois disso, foi trabalhar numa livraria. Aos 26, resolveu dedicar-se apenas à escrita, depois do sucesso de sua primeira novela chamada “Peter Camenzind”, de 1903.

Foi um viajante ligado ora à terra, ora ao mar. Lutou contra a IGM, enlouqueceu, tratou-se com psicanálise e dedicou-se à pintura também como forma de tratamento, como conta Antônio Gonçalves Filho em artigo pelo jornal O Estado de São Paulo (disponível em – http://m.estadao.com.br/noticias/arteelazer,museu-de-berna-expoe-150-obras-do-escritor,914606.htm). Filho ainda conta sobre a exposição de 150 obras em aquarela feitas por Hesse. A foto abaixo mostra um de seus quadros:

Antônio Gonçalves Filho comenta que Hermann Hesse aproveitava todos os pedaços de papel disponíveis para desenhar como mostram as “centenas de cartões natalinos de prisioneiros de guerra dos quais esteve encarregado. No verso desses, Hermann Hesse desenhou esboços de paisagens e estudos de perspectiva”.

Knulp é um viajante que não tem posses. Vive de cidade em cidade no interior da Alemanha e é sempre bem recebido pelas pessoas que ele conhece. Relaciona-se de maneira simples e profunda com as pessoas. Sua hermética profundidade o torna herói, aquele ser prodigioso, raramente visto, como se viajasse numa carruagem de fogo que só se deixava ser vista quando muito longe. Sua inabalável serenidade o faz louco, pois tem as ideias diferentes de todos os outros que o rodeia e, talvez até por isso, fosse tão respeitado e adorado. Possui uma liberdade com relação ao sofrimento que parece, a ele próprio, um alienígena.Suas histórias, mentiras e versos o fazem escritor de palavras ao ar, nas rodas movidas a mosto, a desapego e a sorrisos de meninas que lhe ficavam à volta suspirando sussurrosas. Sua maior preocupação foi quando achou que a solidão que sentiu no momento da morte, a mesma que sentiu durante toda a sua vida, fosse desespero, como ele mesmo diz em sua conversa com Deus.

– Aconteceu naquela ocasião – persistia Knulp sempre – naquela ocasião em que eu tinha quatorze anos e a Franziska me abandonou. Então ainda poderia ter feito tudo de mim. Aí alguma coisa arrebentou-se em mim ou foi posta a perder, e a partir de então não prestei mesmo mais… AH, o êrro foi unicamente não me teres deixado morrer com quatorze anos! Minha vida teria sido tão bela e plena como uma maça madura. (p.125)

E Deus lhe disse que era ingrato, pois Knulp pôde bem saltar pelos campos floridos e sorrir com as raparigas nas rodas de dança. Diz ainda que Knulp fez mal a um seu amor, mas que, por fim, andarilho havia de ser para espalhar o riso de criança. E deus lhe diz:

– Vê para que fazer-te diferente do que és? Em meu nome perambulaste e levaste, sem cessar, às pessoas sedentárias, um pouco de anseio por liberdade. Em meu nome fizeste tolices e deixaste que zombassem de ti; eu próprio fui zombado em ti e és um pedaço de mim e não experimentaste nem sofreste o que eu não tenha provado contigo. (p.129)

E, como numa alquimia elaborada, a sombra do desespero transformou-se na luz da liberdade. Knulp é uma ode à esperança, à amizade, à liberdade e ao caráter rústico da vida, de todos nós que somos como plantas criadas soltas, como pedras, pois sem acabamento e como os animais, na simplicidade. Algumas pessoas invejavam a vida de Knulp. Certa feita, o alfaiate Schlotterbeck,lamentava sobre a vida dura de alfaiate com cinco filhos para cuidar. Knulp, querendo dizer boas palavras ao amigo, fala:

– Olha-me! Tu me invejas e pensas: sua vida é fácil, nada de família e nenhuma preocupação! Mas não é assim. Eu tenho um filho, um gurizinho de dois anos que foi adotado por pessoas estranhas, pois não conheciam o pai e a mãe morreu no parto. Não precisas saber onde fica a cidade; mas eu sei, e quando chego lá, volteio a casa e me posto na cerca à espera. Quando tenho a sorte de ver o molequinho não ouso dar-lhe a mão nem beijá-lo; no máximo me animo a assobiar de passagem. Sim, assim é, e agora adeus, e fica feliz por teres filhos! (Hesse, 1971)

No breve resumo que faz sobre Hesse, Mariano Torres deixa a questão do quanto Knulp pode ser um livro autobiográfico.A medida da “projeção” de Hesse em Knulp é incerta, mas não se pode negar que a “projeção” de Hesse sobre o personagem, no sentido de lhe dar profundidade na serenidade e na sabedoria, é impecável.  Vejo em Knulp um homem de intensidade solitária, das com que se vive como herói, ou como louco ou como escritor. E Knulp era herói, louco e escritor, assim como Hermann Hesse.

Referências:

Hesse, Hermann. Knulp. Traduzido do alemão por Eglê Malheiros pela Editora Civilização Brasileira S.A., Rio de Janeiro, 1971.

Neto, Henrique Duarte. O expressionismo na poesia de Augusto dos Anjos. Publicado no Anuário de literatura como publicação de Curso de Pós-Graduação em Letras, Literatura Brasileira e Teoria Literária, ISSN 1414-5235, N°6, pags. 117 – 130, 1998. Disponível em:http://150.162.1.115/index.php/literatura/article/viewFile/5206/4798 Acesso em 21 de janeiro de 2013.

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Cartola: o mundo é um moinho

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“Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve.” (Nelson Sargento)

Não conheci Cartola e nem Nelson Sargento. A música de Cartola me atiça a vontade de tê-lo conhecido, de lhe ter em minha presença, como se com isso, eu passasse a viver uma paz quase que absoluta. Essa é a visão que faço de quem foi Cartola – alguém que, não sei por qual maneira, inspirava paz e confiança em, senão todos, quase todos à sua volta. Às vezes imagino que o posso encontrar, olhar-lhe nos olhos por uma vez e, com isso, aprender a tocar samba. Daí eu, sem graça e sem palavras, lhe diria, com leves e descompassadas batidas no meu violão, palavras que são dele:

“A sorrir eu pretendo levar a vida… pois chorando eu vi a mocidade perdida.” (trecho da música “O sol nascerá”)

Depois disso, eu não diria mais nada; o escutaria tocando samba para o mundo, para quem o quisesse ouvir, passaria a tarde observando-lhe o jeito, as feições e as atitudes e depois iria embora; procuraria a beira do rio ou do mar, no fim de tarde, e, por um momento, eu não saberia distinguir meu choro de meu riso, nem meu riso de meu choro. E a sorrir continuaria levando a vida.

As músicas de Cartola tocam profundamente a alma de muitas pessoas. São letras, acordes, arranjos, harmonias e dissonâncias belíssimas, pulsantes, simples, estupendas, emocionantes…

Cartola morreu em 1980 e a única forma de lhe conhecer é escutando suas músicas e lendo as biografias e os trabalhos que as pessoas fizeram e fazem em seu nome. Pretendo contar sobre o que li a respeito de Cartola com o intuito de partilhar minha admiração.

Os trabalhos que dão suporte a esse texto são: “Cantarolando Cartola”, de Carneti et all (2011); “Que samba é esse malandro? – Uma análise teológico-existencial de sambas de Cartola a partir da teologia da cultura de Paul Tillich”, de Elton Vinicius sadao Tada, de 2010; “O trabalho de arte e de grupos com jovens no Centro cultura Cartola – Comunidade da Mangueira RJ”, de Regina Gloria Nunes Andrade e Cibele Mariano Vaz de Macêdo;  “Samba e autoconservação: possibilidades para a sala de aula”, de Christian Muleka Mwewa e “De dentro da cartola: a poética de Angenor de Oliveira”, de Nilcemar Nogueira, neta de Cartola, sobre o qual julgo que é a referência mais completa dos trabalhos disponíveis na internet.

Nilcemar, ao falar sobre sua dissertação, diz assim:

Atualmente, alio meu apego à memória do mestre sambista a outro grande compromisso, contraído recentemente: o Centro Cultural Cartola. Instalado em um prédio cedido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (lBGE), localizado na Mangueira, a edificação está em processo de reforma, de maneira que possa contar com áreas adequadas ao funcionamento de um arquivo, de uma biblioteca e salas de consulta, onde o público interessado no tema possa aprofundar ou adquirir novos conhecimentos sobre este ícone da Música Popular Brasileira, bem como sobre a história do samba e de outros pioneiros. Lugar também destinado à preservação de nossa memória, história e cultura, em um momento em que já se admite o samba como identidade cultural do brasileiro. Esta pesquisa dará origem ao primeiro banco de dados da obra de seu patrono e a montagem de uma exposição, ambos no referido espaço cultural. Os depoimentos de seus parceiros (e suas respectivas gravações em áudio) também serão incorporados ao acervo do Centro de Documentação e Pesquisa do Centro Cultural Cartola.

Praticamente todas as pessoas que se referem a Cartola o chamam de gênio. (Nogueira, 2005; Carneti et all, 2011; Mwewa, 2011; Carneiro, 2008). Por suas músicas, conclui-se isso. A letra da música “O sol nascerá” continua da seguinte maneira:

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Finda a tempestade
O sol nascerá
Finda esta saudade
Hei de ter outro alguém para amar

A sorrir
Eu pretendo levar a vida
Pois chorando
Eu vi a mocidade
Perdida

Cartola a compôs com Elton Medeiros. Elton conta a história dessa música em depoimento a Nilcemar Nogueira. Ele diz que Cartola a compôs em 40 minutos em resposta a uma provocação de Renato Agostini. Nas palavras dele:

Nisso, chega o Renato Agostini com a Glorinha, que era a mulher dele na época. Aí, “tudo bem, pessoal?” que era a turma que já habituava passar na casa do Cartola. Ainda não existia o Zicartola. Aí, “tudo bem, tudo bem”. O Cartola: “pô, acabamos de fazer um samba aqui”. De provocação, o Renato disse assim: “vocês não sabem fazer samba coisa nenhuma”. Aí, “ouve aqui” e cantamos o samba pra ele. Aí, “canta de novo”. Nós cantamos de novo. “Esse aí vocês não fizeram. Esse aí vocês ouviram de alguém, compraram”. Provocação dele, e nós estávamos sacando que era provocação do Renato. “Eu só acredito que vocês tenham feito essa música, que são sambistas mesmo, se vocês fizerem um samba na minha frente”. Aí, o Cartola olhou pra ele e disse assim pra mim: “você topa?”. Eu: “se você está topando, não vou topar? Topo”. Aí, Cartola pegou o violão e não pensou muito. Ele já saiu: “a sorrir … “. Eu digo: “eu pretendo levar a vida … “. Já saiu cantando isso. Aí, eu fui … ele botou o papel na frente. O samba dizia: O Sol Voltará, depois que mudou para O Sol Nascerá. Na gravação da Nara que mudou para O Sol Nascerá. (Elton Medeiros citado por Nilcemar Nogueira, 2005, p. 72)

Para ela, Cartola era um

Homem do morro e da cidade baixa, da labuta e do carnaval, do asfalto
e da Mangueira, leitor de Guerra Junqueiro e de Olavo Bilac, lavador de carros e funcionário público, foi fiel à verde-e-rosa e ao eterno aprendizado do sentimento. Sem dele escapar por um único compasso, produziu dentro de seu tempo, carregado de seus infortúnios, sem se deixar levar por querelas ideológicas, e compôs, no seu ritmo, no âmbito de sua individualidade incorruptível, talvez as mais belas canções de nosso repertório musical. Sentimento e poesia, mais que letra e canção, harmonizou profusão e qualidade.

A família de Cartola passou pelo mesmo problema por que passam as famílias nos morros cariocas de hoje. O centro do Rio de Janeiro modernizava-se no início de 1900 e a milícia expulsava moradores pobres que foram morar nos morros (que hoje estão sendo tomados). A família de Cartola se estabelece no Rio de Janeiro por meio de seu avô materno, pai de Aída Gomes de Oliveira, sua mãe. Aída casou-se com o seu primo, o carpinteiro Sebastião Joaquim de Oliveira, com quem teve mais nove filhos além de Cartola.

Cartola nasceu em 1908. Sua família passou por duas casas, antes de se acomodar no morro da Mangueira, quando Cartola tinha 11 anos. Nesse lugar, Cartola conheceu o samba. Trabalhou como tipógrafo até seus 15 anos, quando passou a trabalhar como pedreiro. Para evitar o cimento lhe grudar no cabelo, começou a usar uma cartola que limpava todos os dias. Gostava tanto do acessório que usava o dia todo. Disso vem o seu apelido.

Em 1926, ano da morte de sua mãe, por conta de conflitos com o pai, que lhe exigia o soldo completo no fim do mês, Cartola foi expulso de casa; Cartola dormia no trem da Central, fazendo viagens a noite toda. Quando voltou à Mangueira, deparou-se com o seguinte bilhete do pai: “Vou-me embora deste morro, mas deixo aqui um Oliveira para fazer a vergonha da família.” (Nogueira, 2005, p.17). No documentário dirigido por Lírio Ferreira, chamado “Cartola – música para os olhos”, lançado em 2007, Cartola canta “O mundo é um moinho” para seu pai, muitos anos depois desse episódio.

Sua vida, aos 17 anos, era feita de biscates, farras e fome. Nas palavras de Cartola:

Eu estava na pior. Todo engalicado. Eu tinha gonorréia, cancro duro, cancro mole, mula, cavalo, o diabo. Gemia o dia inteiro naquela cama. Aí, uma vizinha, com pena, passou a cuidar de mim. Fazia sopinha, trazia. Lavava minha roupa. M e dava remédio. Como uma verdadeira mãe. Era a Deolinda (Nogueira, 2005, p.17).

Deolinda era casada e tinha uma filha de dois anos. Apaixonou-se por Cartola que passou a morar com ele. Aos 18 anos, de repente, saiu da “pior” e estabeleceu uma família. Era considerado o melhor pedreiro do morro, mas o sustento da casa era mantido por Deolinda.

Em1928, Cartola, com mais uma porção de gente, fundou a Estação Primeira de Mangueira, nome e cores escolhidos por ele próprio. O primeiro samba de desfile da Mangueira é chamado “Cheia de demanda” e a autoria é de Cartola. Durante o final dos anos 20 e início dos 30, Cartola vendeu algumas músicas à recente e crescente indústria de rádio, sem mesmo lhe ficar crédito por elas. No início dos anos 40, fez parte de um projeto com Villa-Lobos e desapareceu do ambiente musical. Como diz Nogueira (2005),

A partir dessa época, desapareceu do ambiente musical, transformando-se em figura mitológica dos anos iniciais das Escolas de samba. A auto-imposição desse recolhimento propiciou a desastrada notícia de que teria falecido. Nessa época, e com a morte daquela que havia sido sua companheira por mais de vinte e três anos, Deolinda, resolveu deixar o morro. “Quando ela morreu [Deolinda], ele ficou desgostoso. Morreu do coração [ … ] Então ele ficou desgostoso, sumiu.Mas ele era moço e arranjou outra mulher, a Donária, ela tinha muito ciúme dele, não gostava dele no morro que ele tinha muita mulher. Então, sumiu com ele que ele era muito mulherengo, né, aí ele também se viu envolvido com ela e aí sumiu. (Moura citado por Nogueira) (Nogueira, 2005, p.27)

Nas décadas de 60 e 70 virou-se como pôde, entre um biscate e outro. Em 1952, iniciou seu romance com Euzébia Silva de Oliviera, conhecida como Dona Zica. Voltou à Mangueira, mas não se contentou com o estilo adquirido pela escola de samba que ajudou a fundar. Em 1956, encontrou-se com Sérgio Porto, enquanto lavava carros. Sérgio o levou para tocar em rádios e lhe arrumou um emprego no Jornal Carioca. Em 1964, Cartola e Zica inauguraram o restaurante chamado “Zicartola” local que movimentou culturalmente a capital nacional, o Rio de Janeiro, com boa comida e música; serviu como um ponto de resistência e como escola de reconhecimento de vários artistas.

A reconstituição de tais informações leva-nos à conclusão de que o Zicartola representou um momento de integração entre autênticos sambistas e a reprimida classe média da Zona Sul do Rio de Janeiro. [a re-ascensão] de Cartola deve-se em momento de exacerbação do nacionalismo, no começo dos anos 60. Nesses tempos alguns estudantes, especialmente Carlos Lira, procuravam alternativas nas chamadas “músicas de raiz”, com que queriam contrapor a música popular elaborada pelos jovens burgueses da bossa-nova com a realidade brasileira. [ … ] Apesar do sucesso, o Zicartola durou pouco (de setembro de 1963 a maio de 1965). (p. 28)

Nas décadas de 70 e 80, Cartola conseguir melhores condições de vida e reconhecimento de sua música. Em 1970, gravou o trabalho “Cartola Convida”. Sobre esse período, ele disse:

Essa fase, eu estou achando a fase mais importante da minha vida. Hoje sou rodeado de amigos, mas amigos que eu fiz. Plantei e agora estou colhendo, porque eu sou um sujeito muito humilde, não tenho vaidade. E não há quem não goste de uma pessoa que não seja vaidosa. Porque a vaidade prejudica muito. Sobe à cabeça e a gente perde tudo que pode ganhar. Então, eu trato todos com humildade, considero os meus amigos, sou considerado por eles, e acho que tudo que eu faço não é nada. (Nogueira, 2005, p. 30)

Em 1974, gravou o seu primeiro LP que o consagrou na crítica de música brasileira. Em 1979, descobriu que tinha câncer. Faleceu em 1980, no dia 30 de novembro, ocasião na qual João Batista Figueiredo, o então presidente da República, enviou o seguinte telegrama à Dona Zica:

Consternado com a morte de seu marido, poeta e compositor que cantou de forma tão bela os encantos da vida, envio-lhe sincero abraço de solidariedade e certeza de que Cartola viverá para sempre na alma singela do povo brasileiro, na imortalidade de suas canções e na saudade de seus amigos e admiradores. (Figueiredo citado por Nogueira, 2005, p. 34).

Nogueira (2005) divide a produção de Cartola em fases, assim:

1- Primeira Fase: 1928 – 1949 – Cartola: o compositor da Escola de Samba;
2- Segunda Fase: 1950 – 1969 – O retorno ao meio artístico e a criação do Zicartola;
3- Terceira Fase: 1970 – 1980 – A consagração de Cartola como artista brasileiro

A partir do capítulo II, Nogueira analisa e conta as histórias das músicas de Cartola, leitura que é fascinante. Por exemplo, ela conta que a música “O mundo é um moinho”, diferente de como se pensa, não foi feita à sua filha. De qualquer maneira, é uma letra linda. O fim da poesia diz-se por si:

Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares, estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés.

A poesia de Cartola diz-se por si só. Deixo aqui minha admiração por essa poesia e pela pessoa que conheci através desses relatos. Mwewa (2011), ao analisar o documentário de Lírio Ferreira, afirma que Cartola foi uma pessoa essencial para a construção do samba como um estilo cultural. Para o autor,

(…)Cartola se torna um mediador entre as pessoas do seu entorno e o samba, a partir de uma relação intersubjetiva. Ou seja, Cartola se torna uma peça fundamental na relação que as pessoas do seu contexto estabeleciam com o samba. Claro está que não sugiro aqui que, se Cartola não existisse, as pessoas que o cercava não teriam estabelecido uma relação frutífera com o contexto do samba. Não! Mas, seguramente seriam outras pessoas. Não digo isso, mas sim que, da forma como se apresenta o documentário, Cartola exerce um papel fundamental para os seus amigos em relação ao samba. E esse papel, de alguma forma, é que nos revela o Cartola que é conhecido. (Mwewa, 2011, p. 33).

Cartola medeia até hoje. Andrade e Macêdo (2012) relatam acerca de um projeto que desenvolve a cultura da arte em grupos com jovens no Centro Cultural Cartola, uma ONG que “se dedica à educação musical e artística de jovens e adultos, e realiza atividades como a Orquestra de Violino, Curso de Flauta e Ação Griô.” (p. 23).

As palavras do próprio Cartola sobre sua música é a forma mais acertada, para mim, de encerrar esse texto:

“Minha música é uma coisa muito séria. Eu componho devagar para trabalhar bastante cada composição. Eu não fabrico sambas. Se alguém quiser cantar minha música, é só porque sentiu o que eu quis dizer, não porque fiquei insistindo. Se eu peço, o sujeito pode até cantar, mas sai tudo errado, e acaba estragando tudo. Não me interesso em fazer uma coisa que o povo saia cantando, mas que ele sinta minha obra. Faço música para você guardar dentro de si, eternamente, no seu coração e não apenas na sua coleção de discos. (Cartola citado por Nogueira, 2005, p. 122)

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Max Wertheimer

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Max Wertheimer nasceu em Praga, no dia 15 de abril de 1880.Iniciou direito em Praga, aos 20 anos. Sem finalizar o curso de direito, transferiu-se para o estudo da filosofia e da psicologia, passando pelas universidades de Berlin e de Würsburg, onde doutorou-se em 1904 com o estudo sobre a associação de palavras na detecção de padrões no raciocínio. (Goodwin, 2010).

 

Centro de História da PsicologiaAdolf Würth da Universidade de Wüsburg
Disponível em: http://www.awz.uni-wuerzburg.de/en/archive/film_photo_and_tone_archives/video_documents/max_wertheimer_and_schumanns_tachistoscope/

 

Em 1910, viajando de Viena para Renânia, Wertheimer observou que percebia o acender e o apagar alternados de duas lâmpadas (duas luzes) como um movimento de uma luz apenas que atravessava o espaço de uma lâmpada à outra. Em sua parada em Frankfurt, experimentou a mesma percepção com um estroboscópio e cartolinas.

Estroboscópio: instrumento utilizado para alternar a entrada de luz em estímulos parados que, na interação com as modificações da luz, parecem promover um movimento – os primórdios do cinema. Disponível em: http://www.nxtorm.es/Proyectos/pr-h-efectos-opticos-NXT.html

Ao acender uma luz num ponto A e, depois, num ponto B, criando variações nos intervalos de tempo entre uma piscada e outra, Mazdescobriu que se a alternância entre o piscar das luzes fosse de 200 milissegundos, a percepção era de duas luzes alternadas sucessivamente; se o tempo fosse de 30 milissegundos (ou seja, mais rápido), a percepção era de duas luzes acendidas simultaneamente; e se o tempo fosse de 60 milissegundos, a percepção era de uma luz apenas, que se movimentava do ponto A ao ponto B. Ou seja, o percepto, que é o produto da percepção, não corresponde ao que se prevê na relação entre estímulo e sensação: há a percepção de um movimento em estímulos parados como ocorre no filme cinematográfico, o movimento se dá pelo passar consecutivo de fotos. Tal movimento foi chamado de movimento fi.

A percepção de movimento a partir de dois focos de luz que acendem rapidamente já havia sido descrita pelo físico Plateau na primeira metade do século XIX e reproduzida por Exner, professor de Wertheimer, em 1875. Em 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière apresentavam publicamente, pela primeira vez, o cinematógrafo, uma máquina que fazia e reproduzia filmes. E em 1890, o psicólogo Christian vonEhrenfels publicou seu artigo sobre as qualidades gestálticasno qual também questiona a relação direta entre sensação e percepção, usando como exemplo a melodia: observou que a melodia de uma música continua a mesma, mesmo que se alterem todas as suas notas nas múltiplas tonalidades permitidas pela experiência musical. Ou seja, um todo, como no caso da melodia, não se caracteriza somente pela soma de seus elementos, as notas, mas também pela relação que tais elementos estabelecem entre si e com o todo, o que caracteriza as “qualidades estruturais”. As “qualidades estruturais”, para Ehrenfels são formadas por sensações, ou seja, mesmo que Ehrenfels relativiza a importância das sensações na formação das percepções, ele ainda encara aquelas como os átomos destas. (Moraes, 2010).

Max Wertheirmer, em parceria com Wolfgang Köhler, transferiu o seu experimento de garagem para o laboratório do Instituto de Psicologia da Academia Comercial. Köhler juntamente com Koffka e sua esposa foram sujeitos dos experimentos de Wertheimer. Contratado pelo chefe do laboratório, Friedrich Schumann, a parceria entre Wertheirmer, Köhler e Koffka daria origem à “escola de Berlim” ou o “gestaltismo”. A Psicologia da Gestalt (ou Psicologia da Forma) traz, como fundamento, a seguinte questão: a sensação é o átomo da percepção? E a idéia seria o átomo do pensamento como afirmava quase toda a Psicologia do início do século XX, pautada na concepção associacionista inglesa? De maneira bem resumida e sintética, inicial e vacilante, diria que essas três reconhecidas figuras questionaram o (pseudo?) paradigma fisiológico que sustentava a Psicologia em seu nascimento moderno uma vez que questionavam a posição fundante da sensação na composição das funções mentais superiores.

A psicologia da Gestalt é diferente daqueles que falam em soma de elementos. Pelo contrário, a Gestalt, de início, vai ser dividida em partes. A Gestalt é anterior à existência das partes.A determinação é de cima ou descendente e não de baixo ou ascendente. (Engelmann, 2002, p.2)

Em 1912, Wertheimer publica o artigo “Estudos experimentais sobre percepção de movimento” considerado como fundante do movimento gestáltico. O artigo tratava dos resultados da percepção aparente de movimento na relação entre luzes que são apresentadas em relação com tempos diferentes. De acordo com Wertheimer citado por Goodwin (2010) “os processos das partes são determinados pela natureza intrínseca do todo” (p. 305). Desse modo, o movimento fi não poderia ser considerado nem uma falha no julgamento tão pouco traços de personalidade, mas antes um processo total, contínuo, chamado de Gestalt. A Gestalt, portanto, refere-se ao relacionamento entre os objetos individuais percebidos, composta pelos perceptos de tais objetos (as Gestalten), mas não a eles resumida. (Engelmann, 2002).

Max Wertheimer
http://psychology.about.com/od/profilesmz/p/max-wertheimer.htm

 

Wolfgang Köhler
http://diglib.amphilsoc.org/fedora/repository/graphics:3508

 

Kurt Koffka
http://www.intropsych.com/ch04_senses/whole_is_other_than_the_sum_of_the_parts.html

 

Desse modo, Wertheimer e os outrosgestaltistasestudavam a interação entre estímulos e perceptos para a compreensão do todos chamada Gestalt que é a experiência como ela é por nós vivida. Pode-se observar, nessas conceituações, a estreita ligação entre os gestaltistas e a fenomenologia de Brentano e Edmund Husserl. Todos eles reafirmavam uma maneira diferente de conceber os estudos sobre o homem e suas culturas o que, certamente, influenciou em seus métodos realizados no âmbito da ciência.

Usando novamente nossa linguagem atual, ocorre, em tais circunstâncias, uma interação que faz, por exemplo, com que um segundo objeto apareça demasiado próximo ou em coincidência com um primeiro, que está desaparecendo, de sorte que, somente quando se apaga realmente o primeiro objeto e, portanto, a interação, pode o outro mover-se para a sua posição normal. Se isso é interação, ela não ocorre, como tal, no cenário de percepção. Nesse cenário, nós apenas observamos um movimento. (Köhler traduzido por Slomp, s/d, p2 –ftp://www.cefetes.br/Especificos/design/A_PSICOLOGIA_DA_GESTALT_NOS_DIAS_atuais.pdf)

Desse modo, chegava-se à conclusão de que a análise dos elementos sensoriais não leva ao entendimento da percepção, da maneira como percebemos o mundo à nossa volta. Essa concepção coloca questões metodológicas e éticas no próprio pesquisar em psicologia. Como pode-se ler na citação abaixo, a ablação (o corte de nervos para se estudar as funções que lhes são correspondentes – método comum nos psicólogos fisiólogos) não era o método dos gestaltistas. Pelo contrário, usavam de métodos de privação, da imitação e da instrumentalização, para colocar macacos em frente a problemas que os separavam de suas fontes de alimento, como mostra o trecho de Köller citado por Slomp:

Como os comportamentos obtidos eram sempre admiravelmente corretos, resolvi aumentar o tempo entre a percepção do alimento e a oportunidade de obtê-lo. Assim, um dia, enterrei alimento num lugar qualquer do grande terreno que os antropóides usavam para recreação. Os animais assistiram a operação, mas não tiveram oportunidade de obter a comida desejada, porque eu os levei imediatamente para o dormitório. Só os trouxe de volta no dia seguinte, cerca de dezessete horas depois, mais de metade das quais eles passaram dormindo. Pois bem. Assim mesmo, um dos chimpanzés não hesitou um momento: assim que voltou ao pátio de recreio, encaminhou-se diretamente para o local em que as frutas foram enterradas, e descobriu-as após algumas tentativas. Poder-se-ia dizer que o local onde estava enterrado o alimento não atraiu o antropóide pelo fato de este saber que havia comida ali, mas por causa do aspecto incomum que o terreno apresentava, dada as escavações feitas por mim. Aos meus olhos nada havia de incomum ali, porque tomei a precaução de cobrir toda a área com areia seca. Todavia, para rebater melhor essa crítica, devo acrescentar que, depois de os animais terem sido recolhidos, cavei vários buracos e enchi todos da mesma forma. No entanto, como disse, o animal dirigiu-se ao local certo. (Köhler traduzido por Slomp, s/d, p.1 –http://chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/edu01011/gestalt-kohler-antropoides.pdf)

Wertheimer continuou seus estudos sobre a percepção. Ficou em Frankfurt até 1916, quando mudou-se para Berlin, atuando no Instituto de Psicologia de Berlim até 1929, quando voltou a Frankfurt para a chefia do departamento de Schumann. Em 1933 foi demitido pelo regime nazista; juntamente com sua esposa e três filhos, mudou-se para os Estados Unidos onde estudou a percepção na faculdade de resolução de problemas cujas conclusões encontram-se no livro “Pensamento Produtivo”, publicado em 1945, dois anos após sua morte por ataque cardíaco.

Referências:

BROZEK, Josef e MASSIMI, Marina. Historiografia da Psicologia Moderna – A versão brasileira. São Paulo: Edições Loyola, 1998.

KÖHLER, Wolfgang. A Inteligência dos Antropóides, trechos traduzidos pelo Professor Paulo Francisco Slomp – Universidade Federal do Rio Grande Do Sulfaculdade de Educação Departamento de Estudos Básicos (Debas)Edu01011 Psicologia da Educação I – slomp@ufrgs.br -http://www.ufrgs.br/faced/slomp

___. A Psicologia da Gestalt nos dias atuais, trechos traduzidos pelo Professor Paulo Francisco Slomp- Universidade Federal do Rio Grande Do Sulfaculdade de Educação Departamento de Estudos Básicos (Debas)Edu01011 Psicologia da Educação I – slomp@ufrgs.br -http://www.ufrgs.br/faced/slomp

GOODWIN, C. James. História da Psicologia Moderna; tradução Marta Ross; – 4° ed. – São Paulo: Cultrix, 2010.

ENGELMANN, Arno. A Psicologia da Gestalt e a Ciência Empírica Contemporânea. In: Psicologia:Teoria e Pesquisa, Jan-Abr 2002, Vol. 18 n. 1, pp. 001-016, Universidade de São Paulo.

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O papel da narrativa na Humanização

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“Se não tem ação, não tem princípio”. Essa frase foi usada por Roseni Pinheiro1 quando, nos trabalhos do Seminário Norte de Humanização, discorria sobre o princípio da Integralidade.

No processo de sermos e-ou nos tornarmos humanos, de forma integral, lidamos diretamente com a forma como as pessoas contam suas histórias, pessoais e coletivas. A integralidade está intimamente ligada à narrativa uma vez que essa é um formato de relato histórico que posiciona sujeitos em torno de objetos, descrevendo ações e adjetivando tanto essas últimas quanto os sujeitos e os objetos. As qualificações podem ainda, por sua vez, ser intensificadas adverbialmente. A linguagem exercida pela língua tem, desse modo, papel importante na formação subjetiva uma vez que, no aprendizado da língua, não apenas repetimos fonemas e os associamos às grafias, mas também ela própria serve de substrato para que a criança construa a sua maneira de se socializar e também a sua maneira de olhar para a própria história e ao meio em que vive bem como a orientar sua narrativa de vida. Isso quer dizer que a maneira como falamos sobre nossa vida tem seu quinhão na gênese do pensamento, da memória e da criatividade. Dessa maneira é importante estudarmos o papel da narrativa de vida na constituição subjetiva.

A Educação Popular trabalha diretamente com a questão da narrativa. A partir da descrição e da narrativa (um tipo de descrição dos fatos) do cotidiano das pessoas, Paulo Freire revolucionou a prática de ensino, em especial a de alfabetização. A prática da Educação Popular é no sentido de educação de base de maneira que as pessoas de um determinado território apropriem-se da forma de falar sobre suas vidas. Tal apropriação é visualizável a partir do momento que tais narrativas passam a costurar afetos, técnicas e saberes; é visualizável quando tal educação opera protagonismo, ou seja, quando no trabalhar há emancipação do homem uma vez que o trabalho, na Educação Popular, anda juntamente com a educação, pois transforma o homem ao invés de o alienar. A narrativa torna-se, nesse contexto, um instrumento para a disseminação de uma cultura, para a disseminação do cantar, do dançar, do sentir. A narrativa da própria história e das próprias experiências é um meio para a humanização.

A Política Nacional de Humanização (PNH) é a principal política que coloca em cena a humanização. Tal tema parece necessitar de uma abordagem pedagógica, mas também uma abordagem na área da saúde, uma vez que é na criação dos laços sociais que a PNH exerce seu efeito práxico; com a capilarização ela adentra nas relações, analisando as instituições e ativa fluxos instituintes. A Educação Popular é um manancial instituinte, controlado, em grande parte, à base de fármacos. O TDAH é o que mais liga a escola à área da saúde, ou seja, o que mais liga as áreas da Educação e da Saúde são problemas e não parcerias – as relações entre esses setores são mais disciplinares do que em rede.

Nesse sentido, ficam as perguntas: Como estabelecer a intersecção entre a PNH e a Educação Popular? Ou melhor, quais práticas são possíveis para a “humanização” na educação, escolar ou não? E, mais especificamente, que práticas são possíveis usando a narrativa de vida? De que maneira a narrativa pode ser explorada de maneira a construir uma Educação Popular em Saúde?

A abertura da narrativa com a arte parece ser uma característica essencial para repensarmos o seu uso nas práticas sociais.

Nota: 

1 Coordenadora do LAPPIS e professora adjunta do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do RJ.

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Mary Whiton Calkins

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No dia 08 do mês de março, comemora-se o Dia Internacional da mulher. A história sobre esse dia é surpreendente e bela. Não há meios para eu saber o que é “ser mulher”, pois mulher não sou, mesmo que reconheça de mulheres coisas que há em mim, aberturas e fechamentos, desenhos e partituras, amadurecimento e infertilidade, felicidades e tristezas, sentidos e incompreensões. Então, certamente esse devir “ser mulher” passa por minhas sensações, percepções e apercepções que se fossem. E isso não quer dizer que o que acho que seja “ser mulher” seja de fato o que realmente é o “SER MULHER”, pelo contrário, afirmo que o que acho não me permite afirmar que o sei, e se acho é por querer achar, afinal trata-se de um “Ser” realmente interessante, sensual, atraente e habilidosa, e se os devires trevosos da humanidade lhes atravessa, como o devir calculista, vingativo e controlador, não o faz menos nos homens ou qualquer outro gênero humano. Os atravessamentos são da ontologia da humanidade, que logicamente se faz juntamente com a ontologia da mulher, mas não a possui por inteiro, ou seja, o que compõe a essência da MULHER transcende a essência da HUMANIDADE, uma vez que a essência da HUMANIDADE não se faz só do “SER MULHER”, mas, também, por uma infinidade de formas de ser. Contudo, o todo, a essência da HUMANIDADE, não é a mesma coisa que a soma das partes, não somente pelo fato de ELE (o todo) ter mais do que a soma das partes, mas também pelo fato de as partes não estarem em apenas um todo.

Mesmo assim, é unânime nos historiadores da Psicologia, ou seja representa um todo, a consideração de que a história da Psicologia Moderna, quando refere-se aos seus primórdios, negligencia a mulher tanto pela importância dada na propulsão da psicologia quanto pela real submissão a leis elaboradas somente por homens, como no caso da Europa do fim do século XIX e começo do século XX, momentos no qual as mulheres organizavam-se em busca de melhores condições de trabalho e universalidade de direitos, como no caso do voto.

O dia 28 de fevereiro de 1909 foi comemorado como o Dia Internacional da Mulher pela ação do Partido Socialista da América. O dia 19 de março de 1911 foi comemorado como o Dia Internacional da Mulher em quatro países europeus por ação da Internacional Socialista, decorrente da proposta da alemã Clara Zetkin.

Clara Zetkin, http://sociologosplebeyos.com/2012/07/09/hace-155-anos-nacia-clara-zetkin-la-gran-organizadora-de-las-mujeres-obreras-y-socialistas/

 

E o incêndio que tanto é designado como fundador do Dia Internacional da Mulher ocorreu seis dias depois, no dia 25 de março, portanto. Foi considerado o pior dos incêndios de Nova York até os atentados do dia 11 de setembro, que nunca foi considerado o Dia das Mulheres. O ano de 1975 foi o Internacional da Mulher e as Nações Unidas resolveram celebrar o 8 de março como o dia Internacional das Mulheres e em 1977, a Assembléia Geral proclamou o dia para o Direito das Mulheres e Paz Internacional no qual o Secretário Geral das Nações Unidas pronuncia-se, no 8 de março. O lema desse ano foi “Uma promessa é uma promessa: este é o momento de agir para acabar com a violência contra as mulheres”.

Falando no 11 de setembro, não deixa de ser surpreendente a história da atriz Gwyneth Paltrow que encontrou-se com Lara Lundstrom num cruzamento em que essa quase foi atropelada por aquela, momento no qual as duas se entreolharam com tempo e modo suficientes para que, numa reação em cadeia, Lara perdesse o trem que lhe levaria ao World Trade Center, antes das 8h:46min, momento no qual o primeiro avião se arrebentava no prédio. Dez anos depois, Lara mandou uma carta a Gwyneth, contando como foi significativa aquela pausa…curiosamente, Gwyneth voltava da aula de Yoga. Duas mulheres conseguem contar uma história bonita sobre o dia 11 de setembro. Isso faz parte da ontologia feminina.

Sendo assim, mesmo que eu ache que todos os dias são de todas as pessoas, sei também que as desgraceiras de nossa história humana, como as situações em que se geraram os protestos das mulheres, devem também ser compartilhadas, dosadas e modificadas, resgatando, para tanto, a história das coisas, a vida nas histórias e as histórias de vida. E, sendo assim ainda, que comemoremos sim um Dia Internacional da Mulher, mas também acabemos cotidianamente com os microfascismos que atenta contra a liberdade, de todos nós. Sendo assim, finalmente, que esse personagem seja mulher, não somente pelo dia 08 nem somente pelo mês de março, mas para ressaltar a modificação que a história da Psicologia vem sofrendo, reposicionando o lugar da mulher nessa história. E se reposicionamentos históricos ocorrem é devido à limitação das formas hegemônicas de se olhar para o processo social; os discursos devem sempre mudar, pois as relações que fazemos intergeracionalmente vão mutando, por análise combinatória, as posições sociais e a dinâmica de poder ao longo da história. Mutante mudando.

Os discursos caducam, voltam, renascem, crescem, reproduzem-se e morrem. Mas, se sempre foi verdade que no mundo que fazemos coletivamente precisa ser mais belo e justo, sem as mulheres esse mundo definitivamente não é possível. Pelo contrário, o meio em que vivemos mostra um homem que preserva mal…morre e mata em filas, nas ruas, assassinados (por nós mesmos), queimados, bombanucleados, escravizados, suicidas, desesperados, depressivos, desafetados, acidentados e esfomeados….a nossa vantagem evolutiva, não é sermos inteligentes, mas, antes, muitos…o descarte não oferece risco para a nossa espécie…estamos preocupados em crescer e não em nascer e se há, nesse mundo, um ser que saiba realmente o que é um nascimento esse ser é a mulher.

Se falarmos no nascimento da Psicologia, por nascimento ser, necessariamente envolve uma mulher, talvez chamada Maria, talvez Maria chamada. Isso nos leva a personagens como:

 

Mary Whiton Calkins (1863 – 1930), http://www.s9.com/Biography/Calkins-Mary-Whiton

 

Mary Calkins estudou na Universidade de Harvard. Em sua época, mulheres não podiam estudar nas universidades e Mary Calkins foi convidada por Willian James, famoso na história da Psicologia e por seu livro Princípios de Psicologia (1890). Calkins nunca foi considerada estudante de Harvard…para a burocracia da universidade ela era nomeada “convidada”. Posteriormente recebeu reconhecimento de Phd por outra universidade, mas negou o pedido, uma vez que achava justo receber da universidade em que estudara. Calkins morreu em 1930, de câncer, sem o seu título acadêmico.

Escreveu uma centena de artigos de psicologia e filosofia. Foi a primeira mulher a assumir a cadeira de presidência da Associação de Psicologia Americana e da Associação de Filosofia Americana. Estudou a memória e criou a base para o a psicologia cognitivista. Estudou, quando cursou o doutorado em Harvard, a associação de ideias, desenvolvendo o que, futuramente, foi chamado de “aprendizagem por associação de pares” e da importância desse método no desenvolvimento da memória.

Desenvolveu estudos em torno do conceito de self, compreendendo o homem a partir de sua vida social. Questionou e desconstruiu a concepção de que a mulher possui inteligência inferior à do homem.

A primeira mulher a ter reconhecido o título de Phd foi  Margaret Floy Washburn.



http://www.uc.edu/News/NR.aspx?ID=9334

 

Washburn estudou no laboratório de Edward Bradford Titchener (1867-1927), o britânico que foi para os Estados Unidos, desenvolver a Psicologia estudada na Alemanha. Estudou os efeitos das imagens visuais sobre a sensibilidade tátil, em 1894. Foi um dos poucos trabalhos não desenvolvidos em Leipzig que conseguiu publicação na revista “Estudos Filosóficos” desenvolvida por Wundt.

Tanto Mary Calkins quanto Margaret ousaram em seu tempo e com seus gestos produziram fissuras importantes na história do saber humano e na gestão coletiva. Ambas nunca se casaram.

O sítio http://mulher.pol.org.br/ apresenta, de forma singular, a história das muitas mulheres que compõem a psicologia brasileira. Iniciativa revolucionária, num território como o Brasil em que a Psicologia ainda não deu cria ao seu próprio paradigma uma vez que nossa história pouco tem sido contada. Está para nascer.

 

Referências:

BROZEK, Josef e MASSIMI, Marina. Historiografia da Psicologia Moderna – A versão brasileira. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1998.

GOODWIN, C. James. História da Psicologia Moderna; tradução Marta Ross; – 4° ed. – São Paulo: Cultrix, 2010.

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Théodule-Armand Ribot

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O texto que segue é o terceiro da série “Personagens da Psicologia Moderna”. O primeiro retratou um pouco da vida e das contribuições à Psicologia de Edwin Boring (1886 – 1968), considerado um dos primeiros historiadores de e da Psicologia, com a sua importante contribuição chamada “História da Psicologia Experimental”, de 1929. O segundo retratou sobre o multifuncional (médico, físico, psicólogo e alpinista) Hermann Helmholtz (1821 – 1894), estudioso dos impulsos nervosos.

Esse texto expõe fatos e peculiaridade do psicólogo francês chamado Théodule-Armand Ribot, nascido em 8 de dezembro de 1839 e falecido em 9 de dezembro de 1916. O interesse por Ribot nasceu da leitura do texto “Psicopatologia, exotismo e diversidade: ensaio de antropologia da Psicopatologia”, do psicólogo Adriano Holanda, atualmente professor na Universidade Federal do Paraná e estudioso da “Fenomenologia, Fenomenologia Husserliana, Psicoterapia, Abordagens Fenomenológicas e Existenciais, Psicologia da Religião, História da Psicologia e Pesquisa Fenomenológica” (texto fornecido pelo autor na página do currículo lattes).

disponível em : http://carlossalvarado.edublogs.org/2012/07/11/studying-the-life-and-work-of-frederic-w-h-myers/

 

Em seu artigo, Adriano afirma que, em meio às divergências quanto ao nascimento dos estudos de Psicopatologia, há autores que designam Théodule Ribot como fundador da Psicopatologia. Juntamente com Ribot, dividem a medalha de fundadores da Psicopatologia, dentre outros, os médicos:

– Jean-Étienne Esquirol = com a publicação do Traité des Maladies Mentales, de 1838;

http://en.wikipedia.org/wiki/Jean-%C3%89tienne_Dominique_Esquirol

 

 

– Wilhelm Griesinger = com a publicação do livro Patologia e Terapêutica das Enfermidades Psíquicas, em 1845.

http://neurologie.med-network.de/geschichte/griesinger.html

 

Parece que quase todas as tentativas de se datar e especificar os iniciadores dos saberes geram polêmicas e confusões. De qualquer maneira, Ribot teve um papel importante para o desenvolvimento da Psicopatologia. Influenciou o psicólogo Georges Dumas a inaugurar a primeira cátedra de Psicopatologia em 1905. (Holanda, 2001).

O sociólogo francês Laurent Mucchielli relata que a abertura do curso de Psicologia por Ribot, em 1885, na Univesidade de Sorbonne, juntamente com o de Ciência Social, criado por Émile Durkheim, em 1887, foi de grande importância para o desenvolvimento das ciências humanas, na França e na Europa. Contreras (2010) afirma que Ribot é considerado por diversos autores franceses como a figura mais importante da Psicologia daquele país, concentrando em suas ações a independência da psicologia com relação à metafísica, desenvolvendo não só o curso criado em 1885 como também um laboratório de psicologia experimental e a Revue philosophique.

Wilson Frezzatti Junior (2012), professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, discorre com detalhes sobre a importância da Revue Philosophique fundada e desenvolvida por Ribot. Ele afirma que a revista foi fundada em 1876 e que congregava adeptos e críticos da psicologia experimental, antimetafísica. Semestralmente, publicava artigos acerca de experimentos em psicologia e revisões de outros periódicos. Frezzatti Junior afirma ainda que esse periódico promoveu um aprofundamento sobre a obra do filósofo Friedrich Nietzsche. Nas palavras dele:

Os textos que tratam diretamente do pensamento de Nietzsche aparecem entre os volumes 34 (1892) e 123 (1937), sendo um total de cinqüenta e um, incluindo o necrológio (1900) e um pequeno texto de 1863 do próprio filósofo alemão, traduzido por Geneviève Bianquis (1937). Há apenas seis artigos, e o restante é composto por resenhas ou notas bibliográficas. Entretanto, é justamente nesses últimos que ocorre o debate propriamente francês sobre a filosofia nietzschiana. (Frezzatti Junior, 2012).

A contribuição de Ribot à psicologia, em especial pela revista que fundou e coordenou, talvez tenha repercussão até hoje, não somente na França como também no Brasil. A filosofia francesa influencia, cada vez mais, a prática da psicologia brasileira (especialmente aos atuantes na Reforma Psiquiátrica e os humanistas em suas várias escolas). Tal influência se dá em especial por autores como Foucault, Deleuze e Guattari, todos eles professores no Collège de France, local no qual Ribot, em 1888, iniciou a cátedra de Psicologia experimental e comparada, evento considerado por Frezzatti Junior como indicativo de sucesso do periódico do próprio Ribot. Se pensarmos que Foucault, Deleuze e Guatarri fundamentam suas discussões na filosofia de Nietsche e que a filosofia de Nietzsche foi degustada e ruminada pelos esforços de Ribot, podemos afirmar que, mesmo que indiretamente, os esforços de Ribot reverberam atualmente na psicologia brasileira.

Contreras (2010), buscando referências na década de 20, que analisavam o periódico de Ribot, mostra críticas a favor da revista, situando-a como a mais prestigiada da Europa. Ribot organizou, juntamente com Charcot, em 1889, o Primeiro Congresso Internacional de Psicologia e, em 1900, o IV Congresso Internacional de Psicologia. Os congressos internacionais de psicologia passaram a ser organizados pela União Internacional de Psicologia Científica, em 1951 que completou a versão XXX do Congresso, em 2012, em Cape Town, na África do Sul. O próximo Congresso Internacional será em 2016, em Yokohama, no Japão. (informações disponíveis no sítio da própria União –http://www.iupsys.net/index.php/about/history).

Contreras, estudando a produção textual de Ribot, diz que o psicólogo francês estudava as enfermidades da personalidade, da vontade, da memória e da atenção. Encarava o reflexo como o princípio da tendência que a consciência tem de se expressar em movimento, em ato. Buscava na fisiologia, como muitos de sua época, a crítica à metafísica que, para Ribot, desvirtuava a psicologia do rumo que deveria tomar para desenvolver-se. Analisa com detalhes a relação do francês com Nietzsche, revelando a carta que o alemão enviou a Paul Rée (o outro filósofo alemão do triângulo amoroso com Lou Salomé e Nietzsche). Na carta, Nietzsche elogia Ribot e sua revista.

 


Lou Andreas-Salomé, Paul Rée e Friedrich Nietzsche (1882) – disponível emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Paul_R%C3%A9e

 

Gisele Toassa, em sua tese chamada “Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórico-cultural” reconhece a influência de Ribot na construção teórica de Vigotski (http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/pt-br.php).

Ana Maria Jacó Vilela, juntamente com Arthur Arruda Leal Ferreira e Francisco Teixeira Portugal, no livro que organizaram chamado “História da Psicologia: rumos e percursos” referem-se a Ribot, no capítulo 8, como o psicólogo francês que questionou a metafísica e desenvolveu uma nova psicologia baseada na escola associacionista  de John Stuart Mill e Francis Galton e na escola alemã. Mostram que Ribot foi professor de Pierre Janet e de Alfred Binet, o criador do primeiro teste de inteligência na Psicologia.

As obras de Ribot são acessíveis através da Associação Americana de Psicologia e da União Internacional de Psicologia Científica. Os trabalhos de Gisele Toassa, Frezzatti Júnior e Welyton Paraíba da Silva Sousa e Maria Aurelina Machado de Oliveira são os que encontrei nas páginas brasileiras além do ótimo trabalho do espanhol Contreras. Creio que seja um autor importante para traduzirmos e estudarmos mais. Quiçá um projeto de pesquisa na Ulbra pode se aproximar de Theódule Ribot.

 

Referências:

CONTRERAS, Gonzalo Salas. Ribot, Janet y Binet: Pioneros de la Psicología Francesa Contemporánea, In: Eureke – revista de Investigação científica em Psicologia, Asunción (Paraguay) 7(2): pp.1-114, 2010.

FREZZATTI JUNIOR, Wilson Antonio. A recepção de Nietzsche na França: da Revue philosophique de la France et de l´ Étranger ao período entreguerras. In: Cadernos Nietsche, disponível em http://www.cadernosnietzsche.unifesp.br/pt/home/item/187-a-recep%C3%A7%C3%A3o-de-nietzsche-na-fran%C3%A7a-da-revue-philosophique-de-la-france-et-de-l%C2%B4-%C3%A9tranger-ao-per%C3%ADodo-entreguerras.

JACO-VILELA, Ana Maria. LEAL FERREIRA, Arthur Arruda. PORTUGAL, Francisco Teixeira (orgs). História da Psicologia: Rumos e Percursos. Segunda Edição, Rio de Janeiro, RJ, 2010.

MUCCHIELI, Laurent. O nascimento da sociologia na universidade francesa (1880-1914), CNRS – Revue d’Histoire des sciences humaines – Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 21, nº 41, p. 35-54. 2001.

TOASSA, Gisele. Emoções e vivências em Vigotski: investigação para uma perspectiva histórica-cultural. 2009. Tese (Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-19032009-100357/>. Acesso em: 2013-03-02.

Welyton Paraíba da silva Sousa e Maria Aurelina Machado de Oliveira. Teoria da personalidade: um breve resgate epistêmico desse campo do saber psicológico [www.dEsEnrEdoS.com.br – ISSN 2175-3903 – ano I – número 03 -teresina – piauí – novembro dezembro 2009].

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Hermann Von Helmholtz: apercepções e alpinismo

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É interessante como Immanuel Kant é abordado na história da Psicologia. Ele não será o nosso personagem de hoje, mas merece, ainda por se fazer, uma pesquisa mais detalhada e artigos a respeito. Em torno dele gira uma polêmica crucial à história da Psicologia. Ferreira (2010), no expressivo e brasileiro livro “História da Psicologia: rumos e percursos”, intitula o capítulo 4 da seguinte maneira: A psicologia no recurso aos vetos kantianos. Para o autor, Kant afirmava, peremptoriamente, que a Psicologia não era, em sua época, uma ciência uma vez que não cumpria três condições:

1- Possuir um elemento fundamental, como a química;

2- Possuir um método em que se separa o sujeito do objeto, diferente, portanto, do método introspectivo da Psicologia e;

3- Criar uma matemática avançada para conseguir explicar a consciência.

Goodwin (2010), em seu livro também expressivo para o estudo da história da Psicologia, é também da posição que a Psicologia não possui lugar no mundo da ciência pensado por Kant.

Já Fulgêncio (2006) intitula seu artigo assim: “O lugar da Psicologia empírica no sistema de Kant” e defende a tese de que a psicologia empírica tem o mesmo lugar, na ciência, que a física empírica dentro do sistema proposto por Kant acerca das coisas que são possíveis de se conhecer.

Mas, o personagem de hoje não é Kant e nem quero tão pouco resolver o problema acima, é de tamanho maior que esse texto. A questão é que a história da Psicologia, como contada por Ferreira (2010), desenrola-se tendo em vista os vetos kantianos. Os três vetos são superados, quase que paradigmaticamente, por três personagens: o biólogo alemão Johannes Peter Müller, o físico e médico alemão Hermann von Helmholtz e o físico e filósofo Gustav Fechner, também alemão. Dos três, é Hermann von Helmholtz o personagem desse texto.

Filho (1995) é uma referência que iniciei para conhecer o alemão Helmholtz.  De acordo com esse autor, o alemão nasceu em 1821. Seu pai foi professor de literatura e filosofia. Cresceu em meio às discussões filosóficas entre Imanuel Hermann Fichte e seu pai, Gottlieb Fichte, dois proeminentes filósofos da Alemanha. Foi cursar medicina, em Berlin, em 1838. Foi excelente cirurgião e física com ideias inovadoras.

Estudou fisiologia com Johannes Peter Müller. De seu mestre discordou acerca da indivisível “força vital”, elemento que, juntamente com os químicos e os físicos, compõe os sistemas fisiológicos. A discordância entre Müller e Helmholtz traduziu a discordância que existiu, durante o século XIX, entre os vitalistas e os materialistas.

Desenvolveu não só a medicina, mas também a física e a psicologia. Na física, desenvolveu as bases sobre a lei de conservação de energia em sistemas mostrando que as contrações musculares geram calor. O seu trabalho de maior expressão foi sobre a velocidade dos impulsos nervosos. Seu amigo Du Bois Reymond já havia demonstrado a passagem de impulso elétrico na contração muscular. Helmholtz isolou um nervo motor e um músculo associado ao nervo da perna de um sapo e concluiu que, em média, a depender da distância entre o nervo e o músculo, a velocidade do impulso era de 95Km/h, colocando em xeque a ideia de vontade e de “Força vital”, conceito que tinha uma base teológica.

Inventou o “oftalmoscópio”, que permite o exame direto da retina. Estudou a percepção de cores e sobre a captação auditiva. Em suas dissecações, descobriu que o trajeto da luz até os seus receptores era recheada de camadas de vasos de sangue e fibras nervosas, dentre outras “falhas” no mecanismo do instrumento óptico.

Desenvolveu o conceito de “inferência consciente”. Conclui que a experiência afeta a percepção a partir da descoberta que, na retina, a imagem aumenta ao passo que uma pessoa se aproxima, mesmo que falamos que ela se aproxima e não cresce. A inferência inconsciente é o processo pelo qual se chega à conclusão.

Em 1860, desenvolveu sua teoria sobre o surgimento das representações psicológicas (as apercepções). De acordo com essa teoria, a experiência passada imprime um registro que formam premissas maiores de um silogismo. Tais premissas funcionam ordenando inconscientemente as informações oferecidas pelos sentidos o que resulta na representação psicológica. O método de análise necessário para se compreender tais premissas é chamado de “introspecção experimental”. Trata-se do caminho inverso ao caminho que as premissas construídas pelo registro da experiência passada fazem na produção das apercepções. A introspecção experimental é uma análise consciente adquirida por treino para se “reconhecer o aspecto mais bruto e selvagem de nossa experiência” (Ferreira, 2010, p.87) e o sujeito treinado só poderia, portanto, ser um fisiólogo, pois somente ele sabe “distinguir o joio da experiência passada do trigo das sensações” (Ferreira, 2010, p.87). Querendo ou não, essa compreensão está também no pensamento da psicologia experimental e da psicologia descritiva, que nascia, nesse mesmo tempo, nas aulas de Brentano.

Helmholt era alpinista. Usou uma metáfora sobre escalar montanhas e o pesquisar muito bonita:

Um alpinista que deseja escalar os Alpes: sem conhecer o caminho, ele sobe devagar e com grande esforço, sendo muitas vezes obrigado a retroceder porque vê seu progresso impedido. Ás vezes com ajuda do raciocínio; Às vezes por acaso, ele encontra indícios de uma trilha recém-aberta que o leva um pouco mais longe até que, finalmente, quando atinge seu objetivo, descobre para sua irritação uma esplêndida estrada, pela qual poderia haver subido se tivesse sido inteligente o bastante para encontrar o ponto de partida certo logo no início. Em minhas memórias, naturalmente não dou ao leitor o relato das minhas errâncias, mas sim o caminho batido, pelo qual ele pode chegar ao cume sem problemas. (Helholtz citado por Warren citado por Goodwin 2010, p.90).

O processo de passagens frases a serem analisadas a despeito do conjunto da obra é um mal da peste. Mas, enquanto não acesso fontes mais diretas, tenho apenas para dizer que a ideia exposta na citação me leva a associar à ideia de um método de trabalho que transcende a divisão do conhecimento entre o válido e o não válido, como se vivêssemos mais integrados na medida em que a fronteira entre as nossas formas de conhecer esse mundo são misturadas de forma que acabamos por ter uma só para os nossos diversos saberes e que se resume ao interesse e à bulinação com o tema. De qualquer maneira, as frases de Helmholtz me trazem bastantes esclarecimentos acerca da inter e da transdisciplinaridade e dos métodos criados na mistura do conhecimento técnico-acadêmico e artístico regionais. Além disso, nos remete também ao conceito de integralidade muito trabalhado pela Saúde Coletiva.

Referências:

FERREIRA, Arthur Arruda Leal. A psicologia no recurso aos vetos kantianos. In: História da Psicologia: rumos e percursos, organização Ana Maria Jacó-Vilela, Arthur Arruda Leal Ferreira, Francisco Teixeira Portugal. – Rio de Janeiro: Nau Ed. 2010.

FILHO, Osvaldo Melo Souza. A física de Helmholtz e suas bases filosóficas, In: Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n.13, p.53-64, 1995.

FUGÊNCIO, Leopoldo. O lugar da Psicologia Empírica no sistema de Kant. Kant e-prints. Campinas, Série 2, v. 1, n.1, p. 89-118, jan.-jun. 2006.

GOODWIN, C. James. História da Psicologia Moderna; tradução Marta Ross; – 4° ed. – São Paulo: Cultrix, 2010.

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