A busca pela cura e o sofrimento de um novo trauma

Este texto apresenta uma breve análise do primeiro episódio da série documental Em nome de Deus, do Globoplay, que traz relatos de sete mulheres que foram abusadas sexualmente pelo médium João de Deus. Informo que o texto contém gatilhos sobre violência sexual, violência psicológica e estupro, caso você não se sinta confortável com esses assuntos, talvez não seja uma boa ideia continuar a leitura ou assistir aos episódios. Além de tudo, contém spoiler sobre o primeiro episódio.

João Teixeira de Faria é o nome de registro de João de Deus, ou John of God, que teve a prisão decretada dia 14 de dezembro de 2018 (GLOBO NEWS, 2018). O episódio começa contando a história da Casa Dom Inácio de Loyola, em Abadiânia no estado de Goiás. A casa Dom Inácio era o local onde João de Deus recebia fiéis do mundo todo, cerca de 3 mil pessoas passavam na casa por dia. As pessoas vinham do mundo todo em busca de cura espiritual, psicológica ou física, eram doenças terminais, transtornos psicológicos, e quem já havia procurado todo tipo de tratamento.

Os fiéis que se atravessavam o Brasil e o mundo até a cidadezinha de Abadiânia, levavam consigo apenas esperança e a fé de que através de João de Deus iriam receber a cura para as suas enfermidades e a paz para suas almas. Pessoas trajando branco, com os pés descalços e em silêncio ocupavam todos os cantos do lugar, o choro era contido e os gemidos ecoavam no volume mínimo, nas mãos terços, bíblias, crucifixos e imagens de entidades religiosas.

Crédito: Alexandre Severo

De acordo com Terrin (1998), as religiões não possuem valor ou serventia se não puderem curar doenças ou fornecer compreensão holística sobre elas. A motivação da cura era o combustível que alimentava a força dessas pessoas que enfrentavam grandes distancias para chegarem na Casa Dom Inácio.

As paredes brancas com azul da casa contrastavam com as roupas brancas dos fiéis, pelas paredes placas em português, inglês e espanhol pediam silêncio e diziam que o silêncio é oração. No meio da multidão surgia a figura emblemática e messiânica de João de Deus, um homem de origem pobre que dizia ser instrumento espiritual que tinha a missão de levar a cura de Deus aqueles que precisavam dela.

As pessoas se espremiam em filas para o atendimento coordenadas por funcionários da casa, entre eles tradutores que facilitavam a comunicação de estrangeiros. Pelas paredes da casa havia quadros religiosos, em alguns cômodos existiam pilhas de cadeiras de rodas que foram usadas por fiéis que conseguiram a cura e lançaram a cadeira na pilha para simbolizar o poder das mãos de João de Deus.

Fonte: UOL

Instrumentos cirúrgicos estavam distribuídos em bandejas, e eram utilizados para a realização de cirurgias espirituais. João não possuía formação em medicina, tampouco qualquer outro curso, mas através do exercício da sua espiritualidade dizia receber espíritos de médicos do mundo espiritual que usam o seu corpo para fazer cirurgias.

Lemos (2002) descreve que a relação entre a religião e a saúde consistem na utilização e imposição das mãos, benzeduras, rezas e rituais de cura. E na casa Dom Inácio a utilização das mãos do médium para a realização da cirurgia era primordial para que fosse possível alcançar a cura.

Porém, na casa também era muito comum e forte a prática da oração, utilização de águas bentas, e Reimer (2008) aponta essas práticas como parte importante dentro da estruturação das religiões que oferecem a cura. Essas e outras práticas não se originaram na casa Dom Inácio, mas possuem um percurso histórico-cultural que atravessa séculos.

Existia uma hierarquia dos funcionários da casa, aqueles que seguravam a bandeja de instrumentos estavam alguns passos acima de outros. As cirurgias eram realizadas na frente de todos, cortes e retiradas de tumores eram feitos sem a presença de sangue e sem qualquer censura. Boquiabertos e invadidos pela fé, fiéis testemunhavam as cirurgias e todo o processo de cura.

A relação da religião com a cura é antiga, Berlinguer (1988) traz a história dos primeiros hospitais que nasceram em mosteiros. Dessa forma, vemos que a religião e a cura estão interligadas desde a construção da sociedade.

Fonte: Folha Z

João de Deus era visto como uma figura de grande poder, seus olhos azuis e sua pele branca refletiam à luz dos céus sob ele, que para muitos dos fiéis era a reencarnação de Jesus Cristo. A fala mansa e as palavras diretas de João atravessavam aqueles que o procuravam, ele era idolatrado e adorado. João esbanjava humildade, não cobrava nada de seus fiéis, embora recebesse muitos presentes e ofertas voluntárias. Era um homem humilde e santo, a figura perfeita para aqueles que estavam em desespero.

Pessoas em sofrimento e desesperadas se apegam ao incerto, entregam-se àqueles que possam sanar suas dores e aliviar os seus problemas. Esse apego a figura salvadora ou curadora de João de Deus fez com ele construísse um império, tornando-se um dos maiores nomes no Brasil e no mundo.

João de Deus viajou o mundo todo e espalhou sua proposta de cura, recebeu viajantes de diversas parte do mundo e viveu quatro décadas ileso de quaisquer punições ou retaliações. Tudo isso possui influência de frequentadores da casa que tinham poder, tais como políticos, celebridades e autoridades policiais. Esse casulo de proteção ao redor de João de Deus intimidou suas vítimas.

A advogada Camila Ribeiro conta a sua história de sofrimento com o transtorno do pânico, e relatou sua incessante busca por diagnósticos, profissionais e tratamentos que a ajudassem. Sua família concordou com a ida dela para Abadiânia em busca da cura, porém ela foi abusada sexualmente por João de Deus durante a sua consulta mediúnica com ele.

Camila relata dor, sofrimento e medo sobre o abuso que ela sofreu.

Fonte: Globoplay

A fisioterapeuta Marina Brito relata ter ouvido falar sobre João de Deus a partir de uma de suas pacientes, que estava realizando o tratamento espiritual. Naquela época ela estava tentando engravidar, e não possuía nenhum problema biológico de saúde que a impedisse, porém não conseguia engravidar.

Ela viajou em busca do seu milagre, relata não ter pesquisado sobre o médium, tampouco se existiam relatos negativos sobre ele. Ela disse que foi de coração aberto e com muita esperança para encontrá-lo. Marina foi uma das mais de 500 vítimas de João de Deus, foi abusada sexualmente e recebeu ameaças.

Fonte: Globoplay

As vítimas tinham em comum a esperança do milagre e da cura, depositaram toda a sua confiança e força na visita até a casa Dom Inácio, mas voltaram de lá amedrontadas, confusas, violentadas e descredibilizadas. Elas estavam frágeis e vulneráveis, foram vítimas fáceis. A manipulação do abuso através da possibilidade da cura violou essas mulheres.

A publicitária Luana Schnorr foi atrás de João de Deus buscando a cura para a sua irmã que sofria de diabetes. Como as outras vítimas mostradas, Luana agarrava-se na esperança de que receberia a sua graça e que sua irmã ficaria livre da enfermidade. Mas como as outras mulheres mostradas, foi mais uma vítima de abuso sexual.

Reprodução: Globoplay

O padrão exercido por João Teixeira de Faria era o mesmo: quando no meio da multidão ele perguntava sobre o que elas buscavam ali, em seguida dizia para que o esperassem terminar de atender a todos e que fossem até a sua sala, ou salinha. Isso gerava o sentimento de que elas eram importantes e especiais, e que seriam atendidas separadamente, garantindo assim, mais chances de alcançarem suas graças desejadas.

Entretanto, dentro dessa sala os abusos aconteciam. As vítimas eram tocadas, ou eram obrigadas a tocar na genitália dele. Ele tocava o corpo delas e em alguns casos penetrou às vítimas. Nenhuma das ações cometidas por ele eram consensuais, houve o abuso sexual e estupro em alguns casos.

Deborah Kalume é atriz e buscou a ajuda de João de Deus para seu esposo, que estava em coma há alguns anos depois de um acidente de carro. Deborah relata já ter procurado diversos tipos de tratamento e auxílios religiosos, e que nada havia dado certo, por isso então ela decidiu tentar a última alternativa que era o João de Deus.

Ela foi vítima de abuso sexual no maior momento de vulnerabilidade de sua vida, foi usada e violada pelo médium. Deborah conta que quando o abuso estava acontecendo, ela não conseguia acreditar e assimilar que aquilo estava acontecendo. Aquela era a sua última esperança e acabou sendo seu maior motivo de sofrimento.

Fonte: Globoplay

As mulheres abusadas conseguiram reunir forças para expor seus rostos e dar cara às denúncias a partir do primeiro relato público feito pela coreógrafa holandesa, Zahira Lieneke Mous, que expôs o abuso sofrido através do seu perfil pessoal no Facebook.

Fonte: Globoplay

A produção do programa Conversa com Bial através da jornalista Camila Appel entrou em contato com Zahira na tentativa de que ela pudesse expor na televisão a violência sofrida, e a partir disso que outras mulheres pudessem denunciar também. Zahira concedeu a entrevista e contou sobre o abuso que sofreu. A semelhança nas histórias dessas mulheres é chocante, pois existem os mesmos elementos, apesar de que elas não se conhecem, e moram em lugares diferentes.

Zahira foi a primeira cara da exposição contra João de Deus ao relatar o abuso sexual que ele cometeu. A partir disso, hoje mais de 500 mulheres conseguiram expor também, e João Teixeira de Faria encontra-se preso.

FICHA TÉCNICA

encurtador.com.br/aCDNW

EM NOME DE DEUS

Argumento e criação: Pedro Bial
Roteiro: Camila Appel e Ricardo Calil
Produção musical: Dé Palmeira
Direção de fotografia: Gian Carlo Bellotti e Dudu Levy
Produção: Anelise Franco
Direção de conteúdo: Fellipe Awi
Direção: Gian Carlo Bellotti, Monica Almeida e Ricardo Calil
Produção Executiva: Erick Brêtas e Mariano Boni
(A série documental está disponível para assinantes Globoplay).

Referências:

BERLINGUER, Giovanni. A doença. Trad. Virgínia Gawryszewski. São Paulo: CEBES-Hucitec, 1988.

LEMOS, Carolina Teles. Religião e saúde: a busca de uma vida com sentido. Fragmentos de Cultura, Goiânia, Pontifícia Universidade Católica, v. 12, n. 3, p. 17- 57, 2002.

REIMER, Ivoni Richter. Milagre das mãos: curas e exorcismos de Jesus em seu contexto histórico-cultural. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2008.

TERRIN, Aldo Natale. O sagrado off limits: a experiência religiosa e suas expressões. São Paulo: Loyola, 1998.