A Menina no País das Maravilhas: conflitos entre a realidade e a imaginação

Phoebe (Elle Fanning) é uma menina de nove anos de idade e que em nada se parece com seus colegas de classe, ao menos não é isso que eles acham, nem mesmo ela. Phoebe quebra regras adotando um comportamento peculiar e incompreensível pelas outras crianças, professores e para família. E nessa vida complicada de se manter igual aos outros, ela prefere viver em um país de Maravilhas, onde não há regras e suas palavras podem sair sem serem ridicularizadas ou reprimidas.

Existe uma gama de assuntos que merece atenção, que pode ser exploradopor estudantes e profissionais da psicologia, por educadores e pela classe médica. A princípio, observa-se o ambiente escolar. Ao contrário do País das Maravilhas (que a menina idolatra) a escola é o pior lugar para se estar, devido às inúmeras regras que têm que ser seguidas. Phoebe é uma criança questionadora e a primeira regra da instituição é: “As perguntas devem ser feitas só quando for a hora certa de fazer perguntas”. O que ela não entende, e nem obtém a resposta, é: quando é a hora certa de fazer perguntas? A partir daí surgem outros questionamentos que também não são respondidos. Este é o pontapé inicial para uma série de perguntas, que também seguem sem respostas.

A seguir é apresentado o retrato da família de Phoebe: os pais passam pouco tempo com as filhas devido ao trabalho.O filme explora, também, a dificuldade dos pais, sobrecarregados com seus trabalhos, que não conseguem administrar o tempo para dedicar-se a criação das filhas. A mãe, Hillary (Felicity Huffman), está trabalhando na história de Alice no País das Maravilhas (será que se pode fazer uma ligação com a vontade imensa de Phoebe em atuar na peça?), mas sente dificuldade em terminar sua tese devido as tarefas domiciliares, e a falta do pai Peter (Bill Pullman), que pouco ajuda na criação das crianças.

Hillary, no entanto, é a primeira a perceber que o comportamento de Phoebe está piorando e se culpa por isso, sente que devido ao seu trabalho (cansaço, stress, pressão) e por passar pouco tempo com as filhas, tenha, de alguma forma, afetado o comportamento de Phoebe, fazendo com que sua situação piorasse.

A filha mais nova reclama constantemente que não “suporta mais” ter que fazer tudo que a irmã quer, pede ou espera. Com esse discurso, conclui-se que Olivia (Bailee Madison) se sente excluída e sozinha, ou, como ela mesmo descreve: “eu sinto angustia”, por não receber a mesma atenção que a irmã e por ter que ficar resolvendo os “problemas” em que Phoebe se mete. É de uma personalidade forte, inteligente e precoce. Demonstra a todo o tempo o quanto se acha excluída dos assuntos.

Então o filme apresenta Phoebe diante da decisão de se inscrever ou não na peça que será produzida pela escola. Além disso, a menina precisa seguir com seu ritual de não pisar na “fenda” das cerâmicas, caso contrário a “espinha” da sua mãe quebra.

É apresentado um momento na escola em que todas as crianças brincam de “pega pega”,no entanto, Phoebe se recusa a participar da atividade e, quando se sente ameaçada, cospe em uma das colegas e profere palavras inapropriadas. Os pais são convidados a comparecerem à escola devido ao comportamento da filha, quando então são questionados se há algo acontecendo em casa. A parte daí surgem as dúvidas dos pais: será que estamos fazendo o certo? Decidida, Hillary busca maneiras de suprir a carência das filhas, dedicando um tempo a mais com elas.

Phoebe finalmente decide participar da peça, mas acaba se atrasando porque, segundo ela, “precisa lavar as mãos muitas vezes”, no entanto, esse acontecimento não a impede de realizar o teste.

“Se você quer muito uma coisa, precisa rezar ou fazer alguma coisa que você odeia” esse é o conselho que Phoebe recebe do amigo Jamie Madison (Ian Coletti), que também apresenta um comportamento diferente dos demais (segundo a escola). Jamie prefere brincar de boneca, casinha e escolhe ser a Rainha de Copas, assim é chamado pelos colegas de “bixinha”. Ao ouvir isso, Phoebe passa a dedicar-se a um novo ritual: contar quadradinhos na calçada, girar três vezes, subir as escadas pulando até cansar (ficar tonta e cair). As falas que repete dos outros, os deboches e os palavrões também aumentam de frequência, a mesma maneira que a pressão por conseguir o papel aumenta.

De início, com as características que o filme passa nas primeiras cenas, acredita-se que Phoebe provavelmente tenha Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), que se caracteriza pela presença de obsessões, que podem ser definidas como eventos mentais: pensamentos, ideias, impulsos e imagens, sendo vivenciados como invasivos e incômodos.

Por serem produtos mentais, as compulsões/obsessões podem surgir a partir de qualquer evento substrato da mente, podendo serideias, preocupações, imagens, memórias, músicas, filmes, cenas, palavras, momentos. Sendo assim, as compulsões podem ser definidas como comportamentos ou atos mentais que se repetem inúmeras vezes, realizados como uma forma de diminuir as tensões, incômodo, ansiedade ou para evitar que algo que é temido venha ocorrer (MERCADANTE; CAMPOS, 2000).

Ainda segundo Mercadante e Campos (2000), as obsessões de contaminação, medo de ferir-se ou ferir os outros, sexuais, repetição, checagem e rituais de tocar em objetos ou pessoas são mais comuns em crianças e adolescentes.

Uma questão importante para a avaliação de crianças com TOC é a semelhança entre os sintomas obsessivo-compulsivos (SOC) e os comportamentos repetitivos característicos de algumas fases do desenvolvimento, tais como os rituais e as superstições. Dos dois aos quatro anos de idade, as crianças apresentam intensificação dos comportamentos repetitivos (Mercadante; Campos, 2000, pag. s/p).

Vale ressaltar que, rituais e superstições são comuns durante o desenvolvimento infantil. Surgem geralmente com o objetivo de auxiliar no desempenho e dar uma sensação de controle ao que se refere a imprevisibilidade dos eventos.

Além disso, esses rituais não interferem no funcionamento da criança e não tem frequência ou intensidade dos SOC, porém, como se tratam de comportamentos repetitivos, podem ser confundidos com os SOC, por isso é importante reconhecer quando as superstições, bem como os rituais, tornam-se patológicos e quando as crianças necessitam de ajuda. Deve-se levar em conta: a faixa etária, duração diária dos comportamentos, intensidade e se interferem nas suas atividades e no seu desenvolvimento.

Para que um indivíduo seja diagnosticado com TOC é necessário que os comportamentos obsessivos causem interferência ou limitação nas suas atividades rotineiras, que consumam seu tempo e que causem sofrimento tanto para o paciente quanto para as pessoas que fazem parte do ciclo social (MERCADANTE; CAMPOS, 2000).

Então é possível que Phoebe tenha TOC, pois lava as mãos ao ponto de feri-las, realiza as contagens de blocos e giros e que se caso for interrompida deve começar novamente (o que a deixa muito angustiada), movimenta os dedos de maneira coordenada (ritual para conseguir o papel), sobee desce escadas pulando, não pisa na fenda dos azulejos para não ferir a mãe. Tais comportamentos causam incômodo na criança e nas pessoas que lhe cercam, interferem seus estudos e causa ferimentos físicos.

Mas enquanto as frases sem nexos, as palavras inapropriadas, as repetições vocais que Phoebe também apresenta do início ao fim do filme? Trata-se da Síndrome de Gilles de La Tourette, geralmente é manifestada na infância podendo abranger estágios crônicos. De acordo com o DSM-IV a síndrome se caracteriza por “tiques”, ou seja, movimentos ou vocalizações súbitos, rápidos e recorrentes, que correm frequentemente da mesma maneira, podendo se manifestar em qualquer parte ou conjunto de partes do corpo, apresenta-se também na forma de vocalização.  (HOUNIE; PETRIBÚ, 1999).

A síndrome de Tourette, também conhecida como Síndrome de La Tourette (SGT ou ST), é um distúrbio neuropsiquiátrico que caracteriza-se por múltiplos tiques, motores ou vocais, que perdura por mais de um ano e normalmente instala-se na  infância (…) Também  existem os tiques vocais, que abrangem ruídos não articulados, como tossir, fungar ou limpar a garganta e missão parcial ou total de palavras. Em menos da metade dos casos, observam-se a coprolalia e copropraxia, que é a utilização involuntária de palavras e gestos obscenos, respectivamente; a expressão de insultos, a repetição de um som, palavra ou frase referida por outra pessoa, que recebe o nome de ecolalia (MELDAU, s/p, s/d).

Para que o indivíduo receba o diagnóstico de Síndrome de Tourette é preciso a presença de tiques motores múltiplos, um ou mais vocais durante a síndrome, ocorrência dos tiques diversas vezes ao longo do dia por mais de um ano, início na infância ou adolescência, incômodo ou angústia provocados pelos tiques, incapacidade de autocontrole.

Além disso, Phoebe apresenta:

§  Ecolalia: repetição não significativa da fala dos outros;

§  Palilalia: repetição das próprias palavras, sílabas e sons;

§  Coprolalia: além de repetir as frases ou sons alheios, sente-se obrigada a proferir palavras obscenas ou insultos, quando não é apresentado de forma vocal, é demonstrado como um tique motor, no caso de Phoebe: cuspir.

Mas o que se pode fazer em relação a isso? A Síndrome não tem cura, mesmo que exista, de fato, a possibilidade de remissão dos sintomas no decorrer do tempo. Quando Hillary escuta do psiquiatra sobre o diagnóstico de Phoebe, ela inicialmente nega que isso possa estar acontecendo, mas depois culpa-se ao acreditar que não éuma boa mãe. Além disso, a mãe se recusa a dar remédios e julga que todos os médicos acreditam que as crianças giram em torno de rótulos e medicações. Até onde Hillary está certa? Será que seria essa a única solução para os problemas de Phoebe?

Apesar de todo o transtorno causado entre ela e o psiquiatra no final da trama, compreende-se que existem outros meios de seguir com a vida, mesmo que alguém do nosso círculo apresente comportamentos especiais.

No início desta análise, levantou-se a hipótese de que Phoebe é portadora do Transtorno Obsessivo-Compulsivo. Para se tratar uma criança com TOC é necessário uma série de procedimentos, pois a criança terá seu crescimento influenciado pelo convívio com essa patologia, sendo assim é necessário o planejamento de condutas que viabilizem um desenvolvimento adequado. Primeiramente, faz-se os esclarecimentos em torno do transtorno, bem como a origem do quadro. Faz-se necessário o estabelecimento de um vínculo com a criança. A orientação familiar e o suporte para todos que fazem parte do cotidiano da criança também são elementos importantes durante o tratamento.

Segundo a literatura, a terapia cognitivo-comportamental vem apresentando melhora dos SOC e diminuição de risco de recaída após a retirada da medicação, uma vez que as medicações também são prescritas durante o tratamento. As drogas consideradas mais eficazes são os inibidores da receptação da serotonina, exemplos: clomipramina, fluvoxamina e setralina, no entanto essas drogas só devem ser administradas quando o quadro de TOC estiver muito grave (risco de suicídio e/ou depressão).

A professora de teatro também é peça fundamental durante o desenvolvimento de Phoebe e seu autoconhecimento. É durante os ensaios e os ensinamentos de Miss Dodger que a criança consegue manter-se concentrada e controlar seus impulsos.  Destaco também que Phoebe, devido ao seu transtorno, ao bullying provocado pelos colegas de classe, a castração por parte da escola (respeite as regras) e os conflitos familiares, sente-se livre e feliz dentro de sua imaginação (alucinações). Para ela, viver no país das maravilhas é o único jeito de obter felicidade plena, pois, assim como Alice, ela também precisa se resignificar a todo momento. À sua volta está um mundo estranho e é difícil  lidar com os problemas de ser diferente e, por ser assim, a peça é o que mais aproxima a realidade da imaginação.

Não se trata unicamente da Síndrome de Tourett e TOC, mas além desse universo, a atmosfera do filme também trabalha a maneira de como as pessoas escolhem seus papeis, e de como cada uma delas conseguem conduzir suas vidas sem que isso mude o que de fato elas são. O filme trabalha com clareza essas situações, e durante toda a história recebemos informações de como aquela família pôde aprender a conviver com toda a situação de Phoebe e o mais importante: como Phoebe poderia seguir em frente, com a consciência de que, apesar de ser diferente dos seus colegas, continua fazendo parte da mesma equipe.

“…em certo momento da sua vida você vai abrir os olhos e ver quem realmente você é. Especialmente por tudo que a tornou tão diferente de todos os horrivelmente Normais. (Miss Dodger)”

Referências:

CAMPOS, M.C.R ; MERCADANTE, M.T. Transtorno obsessivo-compulsivo. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.22  s.2 São Paulo Dec. 2000.

HOUNIE,A; PETRIBÚ, K. Síndrome de Tourete-revisão bibliográfica e relatos de casos. Rev. Bras. Psiquiatr. vol.21 n.1 São Paulo Jan./Mar. 1999.

MELDAU, D. C. Síndrome de Tourett. Disponivel em: http://www.infoescola.com/doencas/sindrome-de-tourette/. Acesso em 26 de Agosto de 2013.


FICHA TÉCNICA DO FILME

A MENINA NO PAÍS DAS MARAVILHAS

Título Original: Phoebe In Wonderland
Dirigido por: Daniel Barnz
Lançamento: 2009 (somente em DVD)
Duração: 1h36min
Elenco: Ellen Fanning, Felicity Huffman, Bill Pullman;
Gênero: Drama
Nacionalidade: EUA