Além das diferenças: a busca pela dignidade no cuidado em “Intocáveis”

A importância do cuidado humanizado na prática do cuidador formal

    Esta é uma resenha crítica do filme Intocáveis (2011), que analisa a profundidade emocional e humana presente na relação entre cuidador e paciente, explorando a trajetória de amizade entre Philippe, um aristocrata tetraplégico, e Driss, seu irreverente cuidador. O texto abaixo vai destacar como o filme transcende as expectativas convencionais do papel do cuidador, mostrando que o verdadeiro cuidado vai além das técnicas médicas, e envolve empatia, humor e o reconhecimento da dignidade e individualidade de quem está sendo cuidado.

   Já pensou na complexidade do papel de alguém que diariamente lida com as necessidades mais íntimas e essenciais de outra pessoa? Esse profissional enfrenta uma rotina desafiadora, marcada por tarefas técnicas e, muitas vezes, repetitivas, que vão desde a administração de medicamentos até o auxílio nas atividades básicas de higiene e mobilidade. Todavia, o trabalho de um cuidador formal ou informal vai muito além das obrigações práticas. Ele está constantemente exposto a contextos de vulnerabilidade emocional, tanto do paciente, quanto da família do paciente, e dele próprio. Lidar com o sofrimento, a limitação física, e o peso emocional de ver alguém em uma situação debilitante exige muito mais do que conhecimento técnico – é algo sobre empatia, paciência e, principalmente, a capacidade de enxergar e valorizar a humanidade do outro.

   Neste cenário, o filme “Intocáveis” (2011), dirigido por Olivier Nakache e Éric Toledano, se apresenta para nós como uma narrativa envolvente que fala diretamente ao coração. Ele nos apresenta a história real de uma amizade improvável, mas profundamente transformadora, entre Philippe, um aristocrata que ficou tetraplégico após um acidente, e Driss, um jovem da periferia que, ao contrário de qualquer expectativa, se torna seu cuidador.

   Philippe, um homem culto e muito rico, encontra-se condicionado a uma cadeira de rodas e à tristeza que veio com a perda de sua autonomia. Afinal de contas, existem muitos mais desafios além da perda dos movimentos de alguém outrora fisicamente capaz, e no contexto de Philippe não é diferente. As demandas emocionais surgem de imediato e evidenciam a nova condição como limitante e desafiadora. Ele se sente desajustado, isolado e desiludido, até que Driss, um ex-presidiário sem qualquer experiência em cuidados de saúde, entra em sua vida. Driss é diferente, desconectado dos padrões e cheio de experiências aos quais moldaram sua forma de se comportar, e com seu jeito irreverente, é o oposto de tudo que Philippe está acostumado. Em dado momento, tantas diferenças soam como um problema – a incompatibilidade do meio é bem expressada diante dos costumes, rotina e hábitos dos dois. Entretanto, esse conjunto de diferenças se torna a base para uma amizade sincera e revitalizante para os dois.

   O que faz de Driss um cuidador especial não é sua habilidade técnica, considerando que ele nem a tinha, mas sua capacidade de enxergar Philippe como um ser humano completo, com desejos, medos e, acima de tudo, um espírito ainda vivo. Este é o papel do cuidador humanizado. Driss não trata Philippe como um doente ou um fardo; ele o trata como um amigo, alguém com quem pode rir, discutir e viver. A abordagem humanizada, cheia de empatia e humor, é o que permite a Philippe redescobrir a alegria de viver, mesmo dentro das limitações que a tetraplegia lhe impõe.

   Uma das cenas mais emblemáticas do filme ocorre quando Driss se recusa a levar Philippe em um carro adaptado, que em muito se parece um carro de carga para pessoas com deficiência. A cena é carregada de simbolismo e revela muito sobre a relação entre os dois personagens. Ao chegar ao veículo, Driss vê o carro de carga que está preparado para transportar Philippe. No entanto, em vez de aceitá-lo como uma solução prática, Driss enfaticamente se recusa a utilizá-lo, argumentando que Philippe merece ser tratado com dignidade e não como um objeto a ser movido de um lugar para outro. Ele decide, então, colocar Philippe em um elegante Maserati, um carro esportivo que, na visão de Driss, corresponde muito mais à personalidade e ao status de Philippe.

                                                                                                                             Fonte: Youtube

   Esse momento é carregado de significados por demonstrar a abordagem única e humanizada de Driss. Para ele, Philippe não é apenas um “paciente”, mas um ser humano completo, com desejos e direitos. Driss recusa-se a permitir que Philippe seja definido por sua deficiência ou tratado de forma inferior. Ao colocar Philippe em um carro esportivo, Driss desafia as expectativas convencionais sobre como alguém com uma deficiência deveria ser tratado e insiste em que seu amigo seja visto e tratado como qualquer outra pessoa, com direito a desfrutar dos prazeres da vida, incluindo a experiência de andar em um carro de luxo. A decisão de Driss reflete sua recusa em aceitar a limitação imposta pela sociedade sobre o que uma pessoa com deficiência pode ou não pode fazer. Ele não se contenta em apenas cumprir suas funções como cuidador, ao contrário, busca oferecer a Philippe uma vida rica e digna, plena de experiências significativas. Essa atitude reforça o tema central do filme sobre a importância de ver além das limitações físicas e reconhecer a individualidade e os desejos de cada pessoa.

   Ao longo do filme podemos ver ainda Driss desafiando Philippe a se perceber para além de sua condição física. Ele faz piadas, o leva para aventuras e, mais importante, se recusa a sentir pena dele, comportamento percebido por Phillippe como o grande diferencial entre ele e os outros cuidadores. Ao invés de ver apenas as limitações físicas de Philippe, Driss vê o homem que ele realmente é. Essa visão faz toda a diferença no processo de cuidado, por não se tratar apenas de manter o corpo de Philippe saudável, mas de nutrir seu espírito.

   “Intocáveis” é uma bela lição sobre a importância do cuidado que vai além do físico. Ele nos lembra que, mais do que qualquer técnica ou formação, o que realmente importa é a conexão humana, a capacidade de tratar o outro com dignidade, respeito e, acima de tudo, amizade. Essa relação entre cuidador e paciente pode ser transformadora para ambos, e o filme nos mostra isso de maneira tocante e genuína.

FICHA TÉCNICA DO FILME

INTOCÁVEIS

Título Original: Intouchables (Original)


Direção e Roteiro: Eric Toledano Olivier Nakache


Elenco: François Cluzet; Omar Sy; Alba Gaïa Kraghede Bellugi; Anne Le Ny; Antoine Laurent; Audrey Fleurot; Benjamin Baroche; Caroline Bourg; Christian Ameri; Clotilde Mollet; Cyril Mendy; Dominique Daguier; Dorothée Brière; Emilie Caen; François Bureloup; François Caron; Grégoire Oestermann; Hedi Bouchenafa; Ian Fenelon; Jean François Cayrey; Jérôme Pauwels; Joséphine de Meaux; Marie-Laure Descoureaux; Nicky Marbot; Sylvain Lazard; Thomas Solivéres.

Ano: 2011

Duração: 112 minutos

Classificação: 14 anos