O livro “44 Cartas do mundo líquido moderno” (44 Letters from the Liquid Modern World) do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, é, na verdade, um compêndio de textos que o autor escreveu no decorrer de dois anos para uma revista italiana chamada “La Repubblica delle Donne”. Cada texto era considerado uma carta que abrangia temas culturais, políticos e cotidianos daquilo que Bauman chama de mundo líquido, atual e moderno. As cartas eram enviadas quinzenalmente e reverberaram quanto aos comentários e respostas ao autor. Tanto que a partir disso surgiu a necessidade de compilar tais cartas no que viria a ser o presente livro.
44 Cartas do mundo líquido moderno foi traduzido e publicado no Brasil a partir de 2011, mas já era febre em outros lugares, a começar pela Itália. A revista La Repubblica delle Done é uma revista semanal voltada para o público feminino. As cartas foram escritas entre 2008 e 2009 e foram minimamente editadas para a publicação do livro.
Capa do livro publicado pela editora Zahar (2011), no Brasil.
Um primeiro ponto interessante sobre a origem desse livro está ligado aos temas que a referente revista aponta e para quem aponta. É costumeiro que as vitrines ou expositores de lojas e bancas estejam enfestadas de revistas para o público feminino onde a capa figura imagens corpóreas sensuais e luxuosas. O recado da maioria das revistas dirigidas a esse público centra-se em dietas milagrosas (com uma receita hiper calórica no fundo da mesma revista), exercícios físicos, dicas de moda e estética, resenhas de novela, “truques” de comportamento e conquista, e por aí vai.
La Repubblica delle Donenão é diferente. Quer dizer, ela também abrange todos esses temas ditos acima, inclusive suas capas são de modelos muito bonitas e bem vestidas, mas acontece que ao mesmo tempo ela aborda assuntos subjetivos que não tem receita pronta, tampouco testes de rotulação. É um jogo bacana: de um lado lhe são mostradas as tendências que o mundo vai seguir no próximo inverno, de outro lado é ponderadaa questão de você (querer) seguir ou não a uma tendência. Afinal, o mundo moderno é fluentemente líquido e mutável e ninguém engessa ninguém sequer por uma estação, pois o que se pode observar hoje em dia é uma multiplicação infinita de tudo aquilo que se opera sobre a subjetividade, onde alguns aspectos vão se pulverizando (quando não fazem mais sentido), mas outros são construídos por outras lógicas, principalmente mercadológicas.
Uma das capas da revista La Repubblique delle Done
Bauman, polêmico e autêntico que é, não poderia deixar de apimentar suas cartas às leitoras (preciso considerar que não só mulheres leem essa revista), incitando-as a pensar sobre as enxurradas de informações que chegam a todo instante, dificultando a digestão dessas informações.
O intuito desse texto – já que trata-se de um “Em Cartaz” – não é o de analisar os diversos processos subjetivos embutidos e transmutáveis nos temas de uma revista feminina. Além dessa ser uma pretensão imensurável, os assuntos das 44 cartas não são dirigidos só para as mulheres mas sim para o mundo (talvez esse seja o maior motivo das cartas terem virado um livro). O objetivo desse texto é prático: apresentar o resumo de uma parte obra, onde terá mais citações do Bauman do que inferências minhas e serão apresentadas – a princípio – temas de algumas das 44 cartas, enquanto outras cartas serão discutidas em outro texto dessa seção e serão publicadas conseguintemente.
Dessa forma, nessas primeiras cartas, o autor analisa a indústria e os dispositivos de informação (não só pelo fato de se recorrer à eles para se falar deles). Ele chama isso de “autoestradas de informação”. Humberto Gessinger[i] chama de “highway da superinformação”[ii], mas é tudo a mesma coisa.
A pergunta inicial do livro é mais ou menos nesse sentido: De que forma estamos sendo afetados pelos dispositivos que nos conectam imediatamente a todo e qualquer canto remoto do planeta e tudo isso através de pequenos aparelhos que podemos carregar e utilizar quando quisermos e (de)onde quisermos? Em proporções e abrangências estupendas, o que isso vem a significar na configuração das relações e das comunicações? Bauman analisa que:
“(…) o pesadelo da informação insuficiente que fez nossos pais sofrerem foi substituído pelo pesadelo ainda mais terrível da enxurrada de informações que ameaça nos afogar, nos impede de nadar ou mergulhar (coisas diferentes de flutuar ou surfar). Como filtrar as notícias que importam no meio de tanto lixo inútil e irrelevante? Como captar as mensagens significativas entre o alarido sem nexo? Na balbúrdia de opiniões e sugestões contraditórias, parece que nos falta uma máquina de debulhar para separar o joio do trigo na montanha de mentiras, ilusões, refugo e lixo” (BAUMAN, 2011, p. 8 e 9).
O mesmo autor, que tem a característica de jogar a isca e esperar que o leitor a mordisque para em seguida puxar a corda do anzol, instiga-nos a pensar em respostas quando ele mesmo apresenta as suas em páginas seguintes. Em sua maneira peculiar de escrever, Bauman recorta retalhos para depois costurá-los juntamente com os leitores. Com isso, ele aponta que a enxurrada de informações e a dificuldade em discerni-las decai no que Marcelo Camelo chamou de “Bloco do Eu sozinho” (segundo álbum da banda Los Hermanos), o que significa dizer que as pessoas estão cada vez mais sozinhas em meio à multidão e que tudo o que fazem ao se relacionarem através dos aparelhos de comunicação e sites de relacionamentos é tentar fugir da solidão de estar só, ou melhor, de estar consigo mesmo.
Bauman é claro ao dizer que as pessoas estão “desaprendendo” a estarem sozinhas. Ele diz:
“A essa altura, ela (a pessoa) deve ter se esquecido de como uma pessoa vive, pensa, faz coisas, ri ou chora na companhia de si mesma, sem a presença de outros. Melhor dizendo, ela nunca teve a oportunidade de aprender essa arte. O fato é que somente em sua incapacidade de praticar essa arte é que ela não está sozinha” (BAUMAN, 2011, p.13).
No livro, a influência dos meios de interação (se bem que “interação” possa não ser a palavra certa a se usar nesse caso) é comparada ao estado de prazer (ou suspensão de desprazer) que uma substância psicoativa pode proporcionar. Bauman chama os aparelhos de comunicação de drogas poderosas que viciam as pessoas em enviar e receber recados em intervalos mínimos. O rápido manuseio e domínio dos aparelhos têm virado uma necessidade quase vital. A impossibilidade de acessar os aparelhos que conectam as pessoas com o mundo tem trazido aos viciados um estado de abstinência predominado pela angústia, pela sensação de isolamento e solidão ou, em outras palavras, pelo esvaziamento do ego.
Bauman diz que
“(…) os aparelhos eletrônicos respondem a uma necessidade que não criaram; o máximo que fizeram foi torna-la mais aguda e evidente, por colocarem ao alcance de todos, e de modo sedutor, os meios de satisfazê-la sem exigir qualquer esforço maior que apertar algumas teclas” (BAUMAN, 2011, p. 14).
A análise do livro debruça parcialmente sobre os dois principais sites atuais de relacionamento: os populares Facebook e Twitter. Além disso, discute também sobre a eminência desenfreada do sexo virtual. Questionar sobre as reverberações dos dois sites na vida dos usuários é um trabalho complexo e infindo. Quando se fala sobre como o Facebook revolucionou o mundo, estamos falando, de certo, de apenas uma parte dessa revolução (pois deixamos de lado nesse texto a discussão sobre outros mecanismos e outros sites revolucionários como o Google e o Wikipédia, por exemplo). Provavelmente falamos da parte que nos faz mais sentido ou a que nos salta aos olhos (isso quando ainda não estamos impetuosamente apaixonados pelo Facebook ou peloTwitter).
Zygmunt Bauman – sociólogo polonês
Bauman em sua carta sobre “Como fazem os pássaros” esclarece-nos sobre o significado de “Twitter”, que do Inglês para o Português significa “gorjear”. Segundo o autor, o gorjeio serve para duas coisas: manter contato e evitar que outros pássaros invadam seu espaço ou território. Transportado para o intuito do Twitter, o site serve basicamente para que você manifeste o que está fazendo de forma rápida, sucinta e fácil de digerir (o que pode ser perigoso!). Você manifesta seu recado em apenas 140 caracteres e aprende uma forma pragmática de – as vezes – dizer coisas que não podem passar pelo pragmatismo, como num simples filtro simplificador.
Da mesma forma, os ícones passíveis de compartilhamento no Facebook tem servido para que uma pessoa diga algo do tipo: “isso me representa” e “isso compõe quem sou”, mesmo que as afirmativas sejam abruptamente controversas; não importa. Não me aprofundarei na questão da necessidade de pertencimento que é muitas vezes sanada ilusoriamente ao dizermos que gostamos de algo ou pertencemos a tal grupo. Parece que o que importa é “saber contar aos demais o que estamos fazendo – neste momento ou em qualquer outro; o que importa é ser visto”. E nessa história entra, sim, pelas palavras de Bauman, a substituição do contato face a face pelo contato tela a tela, a perda de intimidade, da profundidade e da durabilidade da relação e dos laços humanos. O autor é declaradamente partidário e vê de forma pessimista a nossa impossibilidade em segurar a onda que carrega tudo vorazmente (e sem dó).
Para Bauman uma das máximas dos nossos tempos está em “Sou visto, logo existo”, pois em se tratando de objetivos, como quando falamos do intuito doTwitter há poucas linhas atrás, há o grande objetivo de “ser seguido”. E assim as pessoas vão se comportando e se mostrando de forma que faça com que aumente mais e mais o número de seguidores até que elas se tornem, por fim, famosas. E a fama se dá por ela mesma, ou seja, é a fama pela fama e nada mais.
Isso penetra em dois campos discutidos pelo sociólogo: o da privacidade e o da publicidade. O primeiro refere-se à capacidade de uma pessoa ou de um grupo em controlar a exposição e a disponibilidade de informações ao seu respeito, enquanto que a publicidade refere-se justamente ao contrário: a tornar público o que era privado e a expor o que estava de alguma forma escondido. Nisso, a máxima do “o quê ou quem eu sou?” é respondida pelos juízes que decidem e impõe respostas, fazendo com que o sujeito seja aquilo que os outros dizem que ele é. Essa é, para Bauman, outra consequência das relações virtuais que, no entanto, não se configura como perda de identidade e sim como uma transmutação inconsistente do que se é por si mesmo, sem o outro.
Para Bauman, os sites de relacionamento, especialmente o Twitter, representam os “substitutos da igualdade para os destituídos”. As pessoas ganham uma “fama virtual” e vivem de forma a aumentá-la e sustentá-la pelo maior tempo que conseguirem.
Em se tratando de sexo virtual, o autor usa as palavras de uma escritora – Emily Dubberley – para definí-lo:
“(…) obter sexo hoje é como encomendar uma pizza… Agora você pode conectar-se à internet e encomendar genitália. Não há mais necessidade de flertar ou fazer corte, não é preciso empenhar todas as energias para obter a aprovação do parceiro, nem mover mundos e fundos para merecer e conquistar o consentimento do outro (…) (BAUMAN apud DUBBERLEY[iii], 2011, p.31).
Para Bauman, em detrimento da conveniência, da velocidade e da garantia contra as consequências, alguma coisa – muito importante – se perdeu. Como Humberto Gessinger diz em sua música “Terceira do Plural”, há uma satisfação garantida, mas uma obsolescência programada para tudo, pois as coisas (e pessoas) podem ser rapidamente substituídas! Bauman afirma que o que se ganhou em quantidade perdeu-se em qualidade devido à superficialidade com levamos as relações. Hoje, a medida do valor das coisas é o sacrifício necessário para obtê-las.
Outro questionamento referente ao rumo que as relações humanas vem tomando aborda a afirmativa de que estar ausente não mais significa estar fora de alcance. Bauman discute sobre os significados escondidos nos atos, pois é como se o fato d’alguém deixar de responder a um e-mail ou atender a um telefonema significasse, irredutivelmente, negligência, indiferença condenável e ofensiva, afronta, dentre outras falhas subjetivas que expressam descaso e má vontade. Assim, da mesma forma que há meios instantâneos de promover a conexão entre as pessoas, há – pelos mesmos meios – como promover a desconexão. Tudo isso pautado pela noção de conveniência e proteção. Os contratos humanos são, portanto, reconfigurados (e os valores também).
A cada dia, muros simbólicos vêm sendo criados e os afetos vão se transformando, isso quando ainda não se é discutida a temáticado vínculo virtual. Talvez algumas noções e alguns conceitos (bem como as formas como estamos nos relacionando) não podem ainda ser respondidas na efervescência dessas reconfigurações. Pode ser que quando estivermos nos relacionando de uma forma predominantemente diferente da que estamos hoje, possamos inferir algum sentido sobre isso. Para tanto, supomos alguns caminhos. E se de hoje pudermos fazer algumas perguntas, elas podem estar voltadas para a maneira como se pode produzir saúde em meio à um mundo fluido e mutável(se é que não é disso que a saúde precisa para firmar-se).
Compreensivelmente, as colocações de Bauman podem já parecer remotas (a depender de quando alguém as lerá), mas se de tudo elas conseguirem fazer com que alguém tome parte do seu tempo para refleti-las, o tempo que o autor despendeu para fundamentá-las já foi muito bem aproveitado. Aliás, acho essa uma boa maneira de se utilizar a virtualidade: para disseminar ideias e promover debates sobre a nossa forma de ser e estar no mundo. Encerro esse primeiro texto com as palavras do Saramago, usadas pelo autor:
“O que de tudo não compreende (…) é que, ao se desenvolverem as tecnologias de comunicação em autêntica progressão geométrica, de melhoria em melhoria, a outra comunicação, aquela propriamente dita, a verdadeira, de mim para ti, de nós para eles, continue a ser essa confusão cruzada de becos sem saída, tão decepcionante com suas avenidas ilusórias, tão dissimulada no que expressa quanto no que dissimula.” (BAUMAN apud SARAMAGO[iv], 2011, p. 47).
Notas:
[i]Cantor da banda Engenheiros do Hawaii (já extinta)
[ii]Referido na música A Promessa.
[iii]Livro: Brief Encounters: The Women’s Guide to Casual Sex.
[iv]Livro: O homem duplicado.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2011.
Para acessar o livro em PDF, clique aqui: (http://www.zahar.com.br/sites/default/files/arquivos//t1388.pdf)