Boyhood: e o que se pode saber sobre alguém?

O fim da estória
Eu nunca sei quando as estórias acabam.
Por isso sempre fico preso entre uma e outra, ou entre nenhuma e nenhuma outra;
entre um recomeço sem fim e um fim sem termino.
Talvez por ser mais espectador,
ou coadjuvante do que protagonista da minha vida,
tenha essa enfermidade de não dar conta de quando baixa o pano.

As luzes apagam, o público sai,
os colegas limpam a maquiagem e eu continuo lá:
Com a fala na cabeça, o texto decorado, aguardando a deixa.

A deixa que nunca vem.
Sempre tive medo das coisas e das pessoas.
Um pavor e uma falta de fé.

Talvez por isso eu tenha criado minha própria companhia teatral, onde sou diretor;
contra-regra; atores e público.

Eu enceno só para mim uma tragicomédia.
A realidade me faz tão mal e me deixa tão fraco que fico,
no fundo do palco, muitas vezes, a sussurrar o texto a mim mesmo.

Às vezes não ouço.
Quase sempre não ouço, porque sussurro baixo e minha voz é trêmula…
O público não entende a peça, logo, não aplaude.
Eu, furioso, demito a todos: ao autor; ao diretor; aos atores…
Expulso o público do teatro e ateio fogo a tudo.
E ali dentro fico eu, junto às cortinas e aos holofotes, incandescentes;
queimando, queimando, queimando…

(Alejandro da Costa Carriles)

Um filme impossível

Boyhood é um filme norte-americano de 2016 dirigido por Richard Linklater e protagonizado por Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Lorelei Linklater e Ethan Hawke. O longa foi filmado ao longo de 12 anos, acompanhando o cotidiano de Mason Evans, interpretado por Coltrane, dos seis aos dezoito anos de idade, em uma mimese entre ator e personagem para compor a proposta narrativa da obra.

O estudo de personagem é uma das formas de trabalho no cinema. O roteiro de Boyhood, também escrito pelo diretor, tem como objetivo fazer este estudo, selecionando momentos da vida de um garoto até o início de sua vida adulta. O núcleo familiar de Mason, o qual acompanhamos durante o filme, oferece ao público algumas das principais camadas do personagem, além de vivências, amizades e relacionamentos, reincidentemente rompidos ou iniciados devido à conturbada vida de mudanças enfrentada pelo protagonista ao longo das quase três horas da projeção.

A empreitada cinematográfica de Linklater nos aproxima, também, da forma de representação da vida cotidiana em escala mínima, comum na veia literária, de igual modo ambiciosa e de difícil execução. Um bom exemplo deste esforço, e com um quê de inacabamento, é a obra realizada por Jean-Paul Sartre em seu O Idiota da Família com suas milhares de páginas. Outras obras como Ulisses de James Joyce ou as personagens de Dostoievski e Kafka também se enquadram neste objetivo de esmiuçar a rotina, ações e pensamentos, de tipos comuns presentes em suas prosas.

Tanto no estudo de personagem na sétima arte, ou então em romances e contos que buscam explorar o humano em sua dualidade interior-exterior, há indivíduo como foco, óbice e clareamento de tal ambição perscrutadora. O sujeito é um infinito em seu ser e estar, aglomerado de pulsões e emoções, experiências e lembranças, esquecimentos e marcas arraigadas à trajetória de uma vida, um universo de possibilidades, em essência e contingência e, independente da forma escolhida para exposição, representá-lo nesta riqueza labiríntica torna-se uma inquietação artística.

Um exemplo destas idas e vindas da composição do sujeito são seus momentos de cisalhamento ou conexão com o meio que o circunda. Em certo momento de nossas vidas percebemos que o sentido das coisas ganha uma espessura diferente, sendo transformadas em sua essência, muitas vezes sem alterar sua forma aparente. O mundo é o que dele fazemos, porque o que está fora de nós o é em si.

A indiferença da realidade muitas vezes é a fonte de questionamentos a respeito do sentido da vida mas, por outro lado, pode servir como fomento para a descoberta contínua de novos propósitos e porquês. Este processo de desvelamento ocorre de maneira cadenciada, como ocorre durante o crescimento do garoto que acompanhamos em Boyhood. Na entrada de sua vida adolescente, Mason, tem um diálogo com seu pai a respeito desta ressignificação do que está ao redor, seja no desnudamento das fantasias ou na sobreposição de novos significados de nossas experiências e vivências diárias:

Mason: Dad, there’s no real magic in the world, right?
Dad: What do you mean?
Mason: You know, like elves and stuff. People just made that up.
Dad: Oh, I don’t know. I mean, what makes you think that elves are any more magical than something like a whale? Yoy know what I mean? What if I told you a story about how underneath the ocean, there was this giant sea mammal that used sonar and sang songs and it was so big that its heart was the size of a car and you could crawl through the arteries? I mean, you’d think that was pretty magical, right?

De certa maneira, o conto oceânico mencionado pelo pai de Mason ecoa na própria realização da obra que assistimos. O Sujeito, em seu íntimo, é tanto um colosso quanto um abismo, e olhá-lo no seu cimo ou encarar suas profundezas, é inquietante, maravilhoso e assustador. Esta impossibilidade da obra que assistimos transparece nas falas dos próprios personagens e, em especial, Mason. São vários os momentos em que as pessoas ao seu redor tentam entendê-lo, descrevê-lo, alocá-lo em um determinado tipo de comportamento ou reação emocional. E, ao pensarmos no pêndulo da arte para a realidade, assim somos e fazemos, a todo momento. Pensar, fazer uso de certo tipo linguagem e interagir socialmente é colocar em cena, fora de si, juízos, tanto para com os outros, como para nós mesmos.

Mason: I just feel like there are so many things that I could be doing and probably want to be doing that I’m just not.
Sheena: Why aren’t you?
Mason: I mean, I guess, it’s just being afraid of what people would think. You know, judgement.
Sheena: Yeah. I guess it’s really easy to say, like I don’t care what anyone else thinks. But everyone does, you know. Deep down.
Mason: I find myself so furious at all these people that I am in contact with just for controlling me or whatever but you know they are not even aware they are doing it.
Sheena: Yeah. So, in this perfect world where no one is controlling you. What’s different? What changes?
Mason: Everything. I mean, I just wanna be able to do anything I want, because it makes me feel alive. As opposed to giving me the appearance of normality.
Sheena: Whatever that means.
Mason: I don’t think it means much.    

Descrever a totalidade da vida de outrem, tentar entende-la, pode encontrar a rota do pretenciosismo descritivo ou de uma insanidade artística. Boyhood depara-se com um balanço nesta equação, muito provavelmente pelas limitações narrativas, neste contexto específico, da linguagem cinematográfica. Os saltos temporais e espaciais precisam ser ágeis, e a interpretação do protagonista que acompanhamos também necessita ecoar nestes recortes da representação fílmica, desafios consideráveis aos quais se propõem o roteiro e direção do longa.

Pela vida de Mason nos vemos em tela, em cada pequena escolha diária, aos diálogos densos em seu descomedimento verbal ou alijamento de significantes, por ausência das palavras em transcrever no som a emoção em seu real tom e intensidade, cabendo ao olhar, trejeito ou interação indireta  carga psicológica para uma determinda vivência. Somos o protagonista e espectador do palco-mundo que habitamos. Os atos e cenas são compostos pelos textos e contextos que, juntos, dão à textura singular da caminhada existencial. Os estares sobrepõem-se ao seres nesta representação, que é descontínua, feita e refeita pelo talhar da ipseidade, esta também fluida e em constante reificação, porque estar no tempo e o ocupar o espaço é escapar-se subjetivamente da objetividade das coisas, e de nossas racionalizações e suas abstrações.

Recentemente o cinema tem procurado representar essa poiesis do viver nos pequenos detalhes. Filmes como The Sunset Limited (2011) – neste caso com uma contraposição de como encarar o propósito da existência, ou total ausência deste –, Paterson (2016), Moonlight (2016), A ghost story (2017), Le Parc (2016), Redemoinho (2017) parecem ter dado nova força aos olhares das lentes cinematográficas à epifania do trivial e redescobrimento do cotidiano, trabalhado em décadas passados por nomes como Andrei Tarkovski, Michael Haneke, Yasujiro Ozu, Krysztof Kieslowski e Wim Wenders, em sua velha forma.

O diferencial em Boyhood, e das melhores obras de Linklater (especialmente a trilogia Before, auge de sua filmografia), está na força dos diálogos. É por meio da construção das linhas de interação linguística e, também, gestual e não-verbal, que seus personagens conseguem transmitir para o espectador suas emoções. A linguagem cinematográfica, que poderia se configurar como um limitador para a estória contada, se torna uma opção fértil para que possamos mergulhar naquele mundo, em aproximações ou afastamentos dos fatos e relatos de um anônimo.

A liberdade como sentença do existir

Ser humano é ter diante de si o infinito do existir na finitude da existência. Este paradoxo do absoluto com a efemeridade de uma vida nos inquieta, leva-nos a respostas que vão do riso desesperado, falatórios com excessivos de um lado, o silêncio como couraça ao alarido das emoções de outro, ao preenchimento dos vazios por coisas tidas mais do que pelos eventos vividos, na força dos laços, fraternais e amorosos, em seu surgimento, maturação, desgaste e rompimento.

Linklater já havia trabalhado com estas nuances em sua trilogia Before. O diretor conseguiu transmitir ao público o nascer, crescer, redescobrimento, abalos e desilusões em um relacionamento amoroso. E, em meio a esta jornada, somos levados à momentos tanto encantadores quanto angustiantes de como é difícil partilhar os mais simples detalhes da vida de outra pessoa. Dividir emoções torna-se tão complexo quanto os silêncios e dizeres, eu falta ou excessos, ambos. São estas trocas, o ausência delas, que materializam os objetivos narrativos de Linklater em seus melhores trabalhos, como é o caso de Mason em Boyhood.

O pleroma da vida é atingido em seu minimalismo. Na esteira do cotidiano, e sua facticidade, encontramos os traços representativos para as camadas de nossos significados. Desvelar o espetáculo, descortinar os subterfúgios deste detalhamento, normalmente, não é um caminho fácil, pois leva o indivíduo a visualizar a crueza da sua essência, sem metáforas, retóricas ou discursos reproduzidos, o que fica é o autorretrato dialético entre a formas e seus conteúdos dos aconteceres, quereres e estares.

Olivia, mãe de Mason, vivida por Patricia Arquette simboliza e resume toda esta carga de enfrentamento dos empecilhos do mundo real. Mãe solteira, frustrada por tentas, de diferente maneiras, reestabelecer um protótipo de núcleo familiar para seus filhos, assistiu seu ex-marido remodelar-se em uma figura masculina e paterna inexistente em seus tempos de união, marcada pelos pesos das restrições pessoais e profissionais causadas pelas escolhas e fardos do sobreviver, a cada dia, de um modo mais complexo.

Mom: [Mason is leaving for college] This is the worst day of my life.
Mason: What are you talking about?
Mom: [Starts crying] I knew this day was coming. I just… I didn’t know you were going to be so fucking happy to be leaving.
Mason: I mean it’s not that I’m that happy… what do you expect?
Mom: You know what I’m realising? My life is just going to go. Like that. This series of milestones. Getting married. Having kids. Getting divorced. The time that we thought you were dyslexic. When I taught you how to ride a bike. Getting divorced… again. Getting my masters degree. Finally getting the job I wanted. Sending Samantha off to college. Sending you off to college. You know what’s next? Huh? It’s my fucking funeral! Just go, and leave my picture!
Mason: Aren’t you jumping ahead by, like, 40 years or something?
Mom: I just thought there would be more.

A impermanência do contingente existencial afeta Olivia, o ônus da busca pelo sentido ou propósito a superou. Não há uma destinação fabulosa à qual a personagem possa se voltar para encantar seu cotidiano. Ao contrário, há uma mulher que diante do esvaziamento do seu ninho, volta-se para si em busca de novas respostas para as perguntas que nunca cessam de chegar. Ou então, poderíamos vê-la sem os sufixos e adjetivos, uma mulher sendo apenas mulher, em sua rotina e dia-a-dia, com seus óbices e superações, como pendulares retornos eternos.

O diálogo sobre a fotografia é sintomático para nossos tempos. Esta surpresa a acomete ao perceber o seu desconhecimento sobre àqueles que a rodeou por tantos anos e, diante desta situação, se percebe como desconhecida à si mesma, ao encarar-se como inacabamento, mesmo com a experiência já acumulada em sua vida, causando uma espécie de anti-epifania. É difícil encararmos no congelamento de um retrato o quão rápido foi a passagem dos anos, a circunscrição da existência aflora e nos rendemos à nossa humana condição: “Mom: I’ve spent the first half of my life acquiring all this stuff and now I’ll spend the second half getting rid of it!”.

Mason, ao que tudo indica em alguns momentos do filme, demonstra tentar ao menos encontrar uma via alternativa para essa angústia vivida pela mãe. Se não se pode saber tudo do todo de alguém é possível, sobremaneira, desacelerar o tempo e dilatar o espaço à escala do detalhe do sentido, nos atos, pensamentos, emoções e trocas do dia-a-dia. Não há tamanho que defina a importância de um momento, porque cada repartição da vida é ela toda manifesta naquele bocado do viver, talvez esta seja a chave do propósito, a escala que nos (in)define em nossas singularidades:

Nicole: You know how everyone’s always saying seize the moment? I don’t know, I’m kinda thinking it’s the other way around. You know, like the moment seizes us.
Mason: Yeah. Yeah, I know. It’s constant – -the moment. It’s just… It’s like it’s always right now, you know?
Nicole: Yeah.

Boyhood é o que é porque além dos tempos do Tempo, nos coloca face a face com os espaços do Espaço, um filme cronotópico. Se o estudo de personagem, no cinema, teatro e literatura, mostra-se, por vezes, ligado à uma áurea de frustração e melancolia do não alcance de objetivos narrativos, na linguagem poética há, por outro lado, representações do trivial e cotidiano que vão além de suas causalidades, trazendo para e com as palavras, em lampejos da essência. Autores como Rainer Maria Rilke, Friedrich Holderlin, Thomas Stearns Eliot, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Manoel de Barros, João Cabral de Melo Neto, são bons exemplos desta transposição do detalhe de um olhar, objeto ou atitudes por meio das palavras, retirando o fato da experiência existencial de sua totalidade, tão espessa quanto caótica, em sua aparência

Assistir o filme de Richard Linklater é aceitar um convite à desaceleração, disposto ao ato de contemplar a si, o outro e o mundo. Viver é sentir, na pele e no espírito, as passagens da duração e as travessias da extensão, intricada amálgama do devir. A afonia dos sonhos e devaneios compõem as fotografias da memória, breves retenções da silenciosidade do ser, viagens por entre as camadas de toda uma trilha, percorrida no limite de um simples gesto ou na eternidade de um instante.

Difícil fotografar o silêncio.
Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada, a minha aldeia estava morta.
Não se via ou ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.
Eu estava saindo de uma festa,
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.
Tive outras visões naquela madrugada.
Preparei minha máquina de novo.
Tinha um perfume de jasmim no beiral do sobrado.
Fotografei o perfume.
Vi uma lesma pregada na existência mais do que na pedra.
Fotografei a existência dela.
Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo.
Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa.
Fotografei o sobre.
Foi difícil fotografar o sobre.
Por fim eu enxerguei a nuvem de calça.
Representou pra mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski – seu criador.
Fotografei a nuvem de calça e o poeta.
Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa
Mais justa para cobrir sua noiva.
A foto saiu legal.

(O fotógrafo, Manoel de Barros)

*Dedico este texto aos remanescentes dos nove, antigos e novos.

FICHA TÉCNICA:

Diretor: Richard Linklater
Elenco:
Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke, Lorelei Linklater;
Gênero: Drama
Ano: 
2014