Um recorte da luta por direitos dos deficientes
O documentário Crip Camp: Revolução Pela Inclusão, retrata as vivências no inovador acampamento para pessoas com deficiência nos anos 70, bem como aborda posteriormente a batalha política por reconhecimento de igualdade e pelos direitos sociais e civis dessas pessoas. Influenciado pelo movimento hippie, o Camp Jened era uma colônia de férias, ao norte do estado americano de Nova Iorque, sendo considerada o fator motivacional para, mais tarde, um grupo de jovens com deficiência se mobilizarem em torno da causa que lutava pelos direitos de igualdade em uma sociedade que desconsiderava a inclusão. Tal mobilização mais tarde se tornaria um movimento de grande impacto nos Estados Unidos, o 504 Sit-in, que exigia a regulamentação de uma importante seção da lei norte-americana, concernente aos direitos das pessoas com deficiências.
A princípio, o documentário explora a rotina do acampamento, onde parecia não haver diferença entre os monitores e os campistas. Ali havia cadeirantes, jovens com paralisia cerebral e espinha bífida, entre outras condições. Contudo, tais condições eram meros detalhes onde todos estavam unidos pela semelhança entre si. Ali, compartilhando suas experiências, os jovens relatam suas inseguranças e sobre a realidade fora daquele lugar carregada de rejeição e exclusão. Mas a experiência vai muito além das conversas sobre a vida, a ponto de compreender uma vivência surreal de acolhimento e aceitação.
Na colônia de férias, onde eles vivem o que não é costumeiro, sentem como se a deficiência não fosse uma limitação ou algo que os diferem dos demais, pois todos têm isso em comum. Com as atividades que eles desenvolvem, o que aprendem e até mesmo as relações amorosas os fazem se sentir iguais, diferentemente de como se sentem fora do acampamento.
Para contextualizar a época desses eventos descritos, em contrapartida é abordado no documentário instituições de “cuidados especiais” para pessoas com deficiência, onde o modelo segregacionista de cuidados era a prática de saúde adotada. Essas estruturas asilares aplicavam práticas desumanas de cuidados. Os internos viviam em meio a sujeira, recebiam uma má alimentação, dormiam em lugares que não favoreciam o bem-estar físico, eram muitas as atrocidades cometidas em seu interior que violavam os direitos humanos.
O documentário apresenta questões históricas vivenciadas por essas pessoas, como a exemplo iniciando na idade média, por alguns séculos elas eram tidas como aberrações, ou “criaturas” que estivessem sob alguma forma de castigo celestial, podendo ser retratadas em filmes e etc. como tais. Sendo assim começou o afastamento por parte da sociedade dessas pessoas, pondo-as em instituições fechadas ou até mesmo em sua maioria, sanatórios. O que ocorria há até pouco tempo atrás como relatado no próprio documentário, que estes quando em atividades na cidade eram tidos como problemáticos para os “normais”.
Contudo, ao considerar o ambiente inclusivo do Camp Jened, onde todos são eles próprios, sem os estereótipos e rótulos, fica clara que, no que tange às deficiências, o problema não era com as pessoas com deficiência, mas o problema era com os que não tinham nenhuma deficiência. No acampamento, eles brincavam, cantavam, namoravam, eram irreverentes e faziam jus ao espírito da contracultura de sua época, vivendo à sua maneira de uma forma inspiradora e motivacional.
McGill (2020), analisando a experiência do Camp Jened salienta a irreverência e o ativismo no brilho do verão, cujo radicalismo moldou várias gerações. Quanto à irreverência, isso é explícito nas filmagens da época, onde os jovens não têm nenhuma inibição quanto a falar de temas tidos como tabus, tal qual a sexualidade e o corpo humano. Isso pode chocar aqueles que não esperam tal comportamento dessas pessoas, devido à suas deficiências. Contudo, o documentário deixa implícita a lição de que eles, por serem jovens, por serem humanos, têm as mesmas necessidades que os demais, as quais variam apenas em sua intensidade e as circunstâncias pessoais.
Desde 1951 até seu encerramento em 1977, o acampamento proporcionou lugar onde adolescentes com deficiências podiam atuar e sentir-se livres. Isso compreendia uma abordagem permissiva do comportamento, e também uma cultura política que abriu caminho para o ativismo futuro. Suas discussões mostram que eles eram cientes de suas dificuldades, e ainda mais cientes de seus direitos, os quais eram cerceados pelos preconceitos alheios e pela inadequação das edificações, na contramão da acessibilidade.
A fala dos campistas revela seus desafios. Jimmy Lebrecht queria ser parte do mundo, mas não via ninguém como ele nesse mundo, tentava se encaixar em um mundo que não foi construído para ele. Segundo ele, todos no acampamento viram que suas vidas poderiam ser melhores, e que não há nada para lutar se o indivíduo não sabe que algo a ser conquistado existe. Para Steve Hoffman, todos eles querem ficar sozinhos às vezes, pensar sozinhos, mas lhe negavam o direito à privacidade. Para Corbett O’Toole, o mundo não os queria por perto, queria-os mortos. A realidade era, “será que sobreviverei? Será que recuo? Será que luto para estar aqui?”. Ele dizia que alguém poderia chamar isso de raiva, mas ele via como impulso para estar disposto a prosperar, ou não conseguiria nada.
Para Judith Heumann, quem na infância contraiu poliomielite e, por consequente, a levou a precisar de cadeira de rodas, um dos verdadeiros problemas é que, ao crescer deficiente, a pessoa não é considerada nem homem, nem mulher, é pensada como alguém deficiente e até mesmo assexual. Heumann não acreditava sentir vergonha de sua deficiência, mas sentia mais exclusão. Para essa jovem, que anos mais tarde lideraria a luta internacional pelos direitos das pessoas com deficiência, se ela e as pessoas como ela não se respeitassem a si próprias, e não exigissem o que elas acreditam que deveria ser delas, não iriam conseguir.
A inspirador papel de Judith Heumann, com seu espírito de liderança que a acompanha desde a juventude, é um dos mais comovedores no documentário. Em uma cena, durante o acampamento, ela lidera e coordena seus companheiros acerca dos ingredientes para um almoço. Abaixo, fotografias de Heumann quando jovem e atualmente. Anos mais tarde seria uma das organizadoras de um ato que pressionaria Washington, e posteriormente se converteria em uma das principais ativistas pelos direitos das pessoas com deficiência, a nível mundial.
No acampamento, a experiência de aceitação por parte dos outros traz à tona uma verdade inspiradora, o fato de que a mudança é possível, de que os direitos podem ser desejados e, principalmente, é possível lutar por eles até as últimas consequências. Bastaria que eles estivessem unidos em prol das causas coletivas.
Apesar da liberdade proporcionada no acampamento, os próprios jovens reconhecem que aquela colônia de férias era uma utopia, que passaria tão logo acabasse o verão e eles voltassem para suas cidades. Razão pela qual houve choros na despedida, prestes a retornarem à agitação e impaciência na cidade grande.
Porém, a feliz vivência no acampamento mostrou-lhes que a realidade poderia ser diferente do que vinha sendo, e que deveriam lutar, ir atrás dos seus direitos porque, se ficassem resignados, ninguém iria fazer algo ao seu favor. Assim sendo, mais tarde houve um movimento que lutou pela aplicação da Lei de Reabilitação, mais precisamente a seção 504 da referida lei, que atesta que organizações que recebem recursos federais não podem discriminar uma pessoa por causa de sua deficiência.
Houve resistência por parte das autoridades, mas – após fortes manifestações, ocupação do prédio federal da Secretaria de Saúde, Educação e Bem-Estar Social, por duas semanas, além de greve de fome, aliado ao apoio de pessoas ligadas à causa LGBT, aos Panteras Negras e a uma igreja progressista – o secretário Joseph Califano regularizou a aplicação da seção 504. Hoje os EUA detêm a Lei dos Americanos com Deficiência, que garante aos americanos portadores de necessidades especiais a proteção dos seus direitos civis de ter um emprego, de ter acesso à educação, saúde, transporte e lazer.
Entre os envolvidos nesse movimento pela aplicação da lei, incluindo Judy Heumann, uma dos organizadores dos protestos – quem segura um cartaz na foto acima, e fala ao microfone na fotografia abaixo – havia pessoas que fizeram parte do Camp Jened.
Esse era o ápice de uma experiência iniciada no acampamento, a qual desde o primeiro momento envolvia união, validação das emoções e dos discursos, e resultou na coletiva demanda pelos direitos que o Estado, a todo custo, ignorava e buscava esquivar-se disso.
Assim sendo, a emocionante experiência daquela colônia de férias ensina como uma vivência compartilhada com um número reduzido de pessoas pode resultar em lutas contra um sistema indiferente à inclusão, o que leva mudança para milhões de cidadãos. Nesse caso, o governo da maior potência mundial viu-se encurralado e obrigado a cumprir com sua obrigação. Além disso, a experiência do surreal acampamento – que não deixou de ser um experimento social ousado – mostra que, muitas vezes, pessoas com deficiência são mais compreendidas entre os seus iguais, pessoas que passam por lutas semelhantes às suas. O Camp Jened ensina que o problema não é do que não consegue usufruir plenamente de um lugar ou serviço, mas do ambiente que não propicia um direito basilar. Por isso há um dito de que, se um lugar não é apto para todas as pessoas, tal lugar é deficiente.
Obviamente a dimensão política que, de alguma forma, germinara naquele acampamento é estupendamente maravilhosa, isso é bem ressaltado no documentário. Entretanto, a obra também prova como qualquer pessoa pode ter uma vida satisfatória, desde suas vivências sociais até sua íntima vida sexual. McGill (2020) cita que o documentário homenageia a irreverência que tornou a experiência do acampamento tão poderosa. É evidente que, assim como ocorria afora, o Camp Jened era uma amostra da contracultura, particularmente ousado em seu trato com a deficiência.
Retratada no documentário, Denise Sherer Jacobson, escritora com paralisia cerebral, conta como conheceu seu marido banqueiro no Camp Jened. Ela relata sua experiência de contrair gonorreia desde o seu primeiro encontro sexual, e como estava orgulhosa de si perante a reação perturbada do seu médico, pelo fato de ela ser sexualmente ativa. Jacobson, então, fez um mestrado em sexualidade humana. O documentário termina com ela, de volta ao local onde existiu o acampamento, a dizer “quase quero sair da minha cadeira de rodas e beijar a merda do chão”. Abaixo, uma fotografia de Denise, quando mais jovem, em cuja blusa se lê: “Por trás dessa camiseta está uma mulher sensual”.
FICHA TÉCNICA DO DOCUMENTÁRIO
Nome: Crip Camp: Revolução pela Inclusão
Nome Original: Crip Camp
Cor filmagem: Colorida
Origem: EUA
Ano de produção: 2020
Gênero: Documentário
Duração: 106 min
Classificação: 14 anos
Direção: Nicole Newnham, James Lebrecht
Referências
Alexa Fernando. 11 Memorable Quotes from Crip Camp. Disponível em: <https://accessnow.com/blog/memorable-quotes-from-crip-camp/ >. Acesso em 12 de maio de 2021.
Judith Heumann. Wikipedia. Disponível em: < https://es.wikipedia.org/wiki/Judith_Heumann >. Acesso em 12 de maio de 2021.
McGill, Hannah. Crip Camp review: irreverence and activism in the glow of summertime. Disponível em: < https://www2.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/reviews-recommendations/crip-camp-1970s-disability-rights-documentary>. Acesso em 12 de maio de 2021.
Crip Camp: A interview with Filmmaker Jim LeBrecht About Acessibility, Universal Design, and Spaces of Freedom. Disponível em: < https://archinect.com/features/article/150185908/crip-camp-an-interview-with-filmmaker-jim-lebrecht-about-accessibility-universal-design-and-spaces-of-freedom >. Acesso em 13 de maio de 2021.