Com duas indicações ao OSCAR:
Roteiro Original e Animação
“Ousar é perder o equilíbrio momentaneamente. Não ousar é perder-se.”
Soren Kierkegaard
A recém-lançada animação Divertida Mente, da Pixar, conseguiu unir numa única produção uma“atmosfera lúdica”, descontraída, comum a filmes do gênero e, de quebra, inseriu uma temática bem atual, densa e de forte teor filosófico-psicológico: o longo e doloroso – mas enriquecedor – processo de amadurecimento de uma criança que, paulatinamente, entra na adolescência e se vê diante de uma explosão de emoções, típicas para a fase.
O filme mostra, dentre outras coisas, que crescer pode ser uma jornada turbulenta. A personagem Riley é a prova disso! “Ela é retirada de sua vida no meio-oeste americano quando seu pai arruma um novo emprego em São Francisco. Como todas as pessoas, Riley é guiada pelas emoções – Alegria (Amy Poehler), Medo (Bill Hader), Raiva (Lewis Black), Nojinho (Mindy Kaling) e Tristeza (Phyllis Smith)”. Essas emoções vivem no centro de controle dentro da mente de Riley, de onde lhe ajudam com conselhos em sua vida cotidiana. “Conforme Riley e suas emoções se esforçam para se adaptar à nova vida em São Francisco, começa uma agitação no centro de controle. Embora Alegria, a principal e mais importante emoção da garota, tente se manter positiva, as emoções entram em conflito sobre qual a melhor maneira de viver em uma nova cidade, casa e escola”.
A animação aborda alguns dos temas-chave para a psicologia, desde a sua gênese filosófica (como a combinação dos quatro temperamentos da personalidade, de Galeno), passando pelo fato de que os vínculos emocionais na primeira infância são parte essencial da natureza humana (que impactam na formação da personalidade de Riley), além de enfocar comportamentos moldados por reforços positivos e negativos (Skinner) e, por fim, desembocando na dinâmica biopsicosocial, onde aspectos biológicos, psicológicos e sociais se mesclam para definir esta enigmática energia (ainda longe de ser compreendida integralmente, objeto inclusive de “disputas” epistêmicas) que, dentre outros nomes, é chamada de psique.
No início do filme, há uma clara ênfase aos aspectos biológicos em detrimento dos demais enfoques (mas, não se enganem, de forma geral o diretor irá “passear” por todos eles), e o dualismo cartesiano dá a tônica, com a clara separação entre corpo e mente, fundamental para que se desenvolvesse a pujante ciência do comportamento humano.
Sobre os quatro temperamentos da personalidade, defendido por Galeno (melancólico, fleumático, colérico e sanguíneo) se derivam as emoções básicas presentes na produção da Pixar. Estas emoções “disputam” entre si a dinâmica de interações de Riley e a prevalência de uma ou outra (ou a combinação de várias delas) é o que definiria as “memórias-raiz” que teriam impacto direto na formação da personalidade da pequena.
No “centro do controle”, estas emoções acompanham o desenrolar de cada intercâmbio e a composição das memórias; à noite, durante o sono, observam a consolidação de dadas memórias, num frenético movimento de armazenamento e/ou descarte das experiências e composições imagéticas. “Se algum dos humores se desenvolve demais, o tipo correspondente de personalidade passa a dominar. Uma pessoa sanguínea é afetuosa, alegre, otimista e confiante, mas também pode ser egoísta. Alguém fleumático é quieto, gentil, tranquilo e racional, mas também pode ser lento e tímido. A personalidade colérica é irritadiça e, por fim, o melancólico é acompanhado pela tristeza, cuidado excessivo e o medo, mas desenvolve uma introspecção criativa” (com adaptações – Ed. Globo, 2014, pág. 19). Qual seria, então, a predominância de Riley, num filme que ora apela para a tábula rasa aristotélica, ora enfoca na “vontade” kantiana como fator determinante para a superação dos conflitos? As respostas podem gerar novas perguntas, num ciclo interminável.
É possível observar, nestas interações apresentadas na animação, que os padrões repetitivos e os condicionamentos – bem como os reforços positivos ou negativos decorrentes deles – são os grandes responsáveis pela memorização mais eficaz e, consequentemente, a repetição ou não de tais padrões como algo que, finalmente, “se incorpora” no modo de encarar o mundo.
Ícone desta abordagem, B. F. Skinner defendeu que “o comportamento é aprendido primordialmente a partir dos resultados das ações”. Assim, um organismo atua sobre o seu ambiente e recebe um estímulo que reforça um comportamento operante. “Para distinguir esta situação daquela que envolve o condicionamento clássico, Skinner cunhou o termo ‘condicionamento operante’”, sendo que a maior diferença entre os dois é que, neste último, há a representação de um processo de duas mãos, “no sentido de que a ação, ou o comportamento, atua sobre o ambiente tanto quanto o ambiente define o comportamento” (- Ed. Globo, 2014, pág. 82).
Riley, então, experimenta uma longa infância feliz, cheia de reforços positivos, onde a Alegria mantém a liderança absoluta no “centro de controle mental”. Neste período, como defenderia Skinner em sua tese, “programas de reforço positivo eram capazes de configurar comportamentos com mais eficiência” (pág. 83), numa constante retroalimentação onde a Alegria se fortalecia dia após dia.
Mudança como fator de instabilidade
Mas para “embaralhar” a trama (e a mescla de enfoques teóricos), o diretor Pete Docter faz a transição da mente enraizada na infância para a instável adolescência. Além disso, de quebra, um processo de mudança de cidade trás a tona um novo panorama, onde a Alegria perde a sua liderança para a Tristeza e a dúvida. Acabara-se de se instalar, então, o Medo. “Sintomaticamente, um acidente na central interna de comando lança a Alegria e a Tristeza para fora dali, deixando a Raiva, o Medo e o Nojinho no controle. Ou seja, bem-vindos ao mundo instável da adolescência. […] Mantém-se a história num bom ritmo alternando as desventuras de Riley neste novo cotidiano, os conflitos com os pais e a confusão em sua mente, com a Alegria e a Tristeza vivendo uma epopeia para voltar à central de comando, atravessando locais como a Terra da Imaginação e o Pensamento Abstrato”.
E é neste momento, de encontros e desencontros, e de grandes descobertas, que salta aos olhos as interações biopsicosociais. Riley, então, apresenta-se como fruto de um “mix” de “diálogos” que envolvem fatores biológicos, psicológicos e, claro, as trocas sociais, num movimento em que, em tese, nenhum desses fatores tem maior peso que o outro, mas disputam igual espaço, onde se torna impossível tangenciar a compreensão integral do ser sem que uma das partes tenha que ser levada em conta. Desta forma, as construções subjetivas interagem e “interpenetram” incessantemente com os fatores biológicos e sociais – e vice e versa.
E especificamente no filme, a adolescência, então, apresenta-se como um outro nascimento, onde os fatores biológicos, as estruturas internas de memória e repetição (ou aversão) e os laços afetivo-sociais dão o tom. Neste ínterim, “a consciência de si e do ambiente intensifica-se muito, tudo é sentido de maneira mais aguda, onde se busca a sensação por si mesma” (- Ed. Globo, 2014, pág. 47). Como diria o psicólogo/psicanalista Stanley Hall (responsável pelo lastro teórico para várias pesquisas contemporâneas), esta é uma fase em que o adolescente fica suscetível a intempéries e à depressão, requerendo, portanto, especial atenção. É daí que surge a conhecida “curva de desesperança”, “cujo início é os onze anos de idade, atinge o pico aos quinze e, a partir daí, começa a cair de modo regular até os 23 anos”.
Vale ressaltar que as causas de depressão (entre jovens), fortes alterações de humor e grande inquietação apresentadas por Hall também têm eco na atual visão biopsicosocial e soam familiares para parte dos estudiosos contemporâneos. Elas se baseiam, predominantemente, num eventual sentido de rejeição e, claro, em alterações biológicas importantes. Esta autoconsciência do adolescente, em frenética formação, levaria à “autocrítica e à censura de si e dos outros […]”, num ritmo em que as “as habilidades de raciocínio avançadas dos adolescentes permitem que eles ‘leiam nas entrelinhas’, mas, ao mesmo tempo, ampliam a sensibilidade com que enfrentam as situações”, estando portanto vulneráveis a responder às provocações/demandas de forma explosiva. Até que se chegue à temperança aristotélica e, por fim, à maturidade, ainda há um looooooooongo caminho a ser percorrido.
Divertida Mente entrete e educa as crianças, e abre um leque de compreensão para os adultos. O filme mostra quão intricadas são as dinâmicas de formação/consolidação da personalidade, além de reforçar o papel do entendimento acerca das trocas sociais e, por fim, revela o valor de perceber e superar as emoções conflitantes. Não é fácil crescer! Assumir o controle da mente, das próprias emoções, requer tempo e diligência. Nas palavras do existencialista Kierkegaard (1813-1855), do desejo de ser “um outro” diferente, há uma angústia básica decorrente das primeiras tentativas e erros.
Nesta busca de reconhecer-se (firma-se no mundo), a sobrepujação da aflição só viria, portanto, na superação mesma do entendimento do que é o eu. Assim, “ser quem se é realmente é na verdade o contrário do desespero”. E o tempo inteiro, inconscientemente, presume-se, a jovem busca esta experiência. No caminho, deixa um lastro de dúvidas, tormentas e conflitos. Mas é justamente neste momento onde a pulsão pela vida se mostra de forma mais emblemática e tocante, num jogo poético e – paradoxalmente – alucinante. Há um celeiro de mudanças, sonhos e utopias. Por fim, como ainda pontua o dinamarquês Kierkegaard, neste processo de conquistar a si mesmo, surge o descobrir-se a si mesmo, “assim como é, sem máscaras”. O percurso é doloroso, mas libertador. Que o digam os jovens.
Mais filmes indicados ao OSCAR 2016: http://encenasaudemental.com/serie-oscar-2016
REFERÊNCIAS:
Animação Divertida Mente retrata com criatividade a explosão da adolescência. Acesso em 01/08/2015;
Divertida Mente fala sobre o desafio de amadurecer. Acesso em 02/08/2015;
O Livro da Psicologia (Vários autores) / [tradução Clara M. Hermeto e Ana Luisa Martins]. – São Paulo: Globo, 2012;
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário Filosófico. São Paulo: WMF, 2011;
O Livro da Filosofia (Vários autores) / [tradução Douglas Kim]. – São Paulo: Globo, 2011;
PEREZ, Daniel Omar. Amor e a procura de si. Disponível na Revista Filosofia Ciência & Vida – Ano VIII, no 99, de outubro/2014.
NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007.
FICHA TÉCNICA
DIVERTIDA MENTE
Nome Original: Inside Out
Direção: Ronnie del Carmen, Pete Docter
Origem: EUA
Ano de produção: 2015
Gênero: Animação
Duração: 102 min
Classificação: Livre