“Existem momentos na vida da gente, em que as palavras perdem o sentido ou parecem inúteis, e por mais que a gente pense numa forma de empregá-las elas parecem não servir. Então, a gente não diz, apenas sente.”
Sigmund Freud
Parece que, para algumas pessoas, é necessário passar por uma desconstrução conceitual, para que possam alcançar uma proximidade de algo que esteja mais conectado a um sentir-se vivo. E, por esse tipo de processo ou, da perda daquilo que se tem como visível, daquilo que o olhar capturou, é que se poderia usufruir de um necessário processo de individuação.
Assim como outros filmes da diretora Naomi Kawase, “Esplendor” é repleto de imagens muito sensíveis e repleta de muitos sois, conseguindo levar o espectador a imaginação sem trechos de muitas conversas entre seus personagens. De modo irônico ou proposital a diretora consegue mostrar o significado do sentido, subjetivação e ressignificação do simbólico e da linguagem para o espectador, que é exatamente tudo o que os personagens cegos de sua obra vivenciam no filme através de audiodescrição.
Perder aquilo que se diz “mais amar” poderia ser então uma possibilidade de reorganização interior. Reestabelecer uma ordem perdida, uma ordem primária, que se daria antes de qualquer tipo de criação e nomenclatura de imagens. Um período anterior ao excedente destas que passaram a se reproduzir de forma incessante, sem equilíbrio algum e, o que é pior, controladas por algo que está fora.
O filme mostra Misako, uma jovem audiodescritora responsável por traduzir os filmes para deficientes visuais, incluindo o fotografo Masaya Nakamori que possui visão parcial e entra em conflito com Misako. A partir daí, os dois passam a se aproximar e a jovem enfrenta traumas de seu passado após se deparar com fotografias na casa de Nakamori, o que fará com que ela assim como ele tenha que ressignificar a constelação significante presente em sua vida, enquanto paralelamente o fotógrafo tem de criar estratégias de enfrentamento para o novo cenário, que inclui a cegueira.
Trata-se de um daqueles filmes em que somos absorvidos pela tela branca que, aos poucos, vai se transformando, se distorcendo por meio de luzes coloridas, na representação de figuras e fissuras, próprias de uma vida humana. Nakamori, seu personagem principal, um fotógrafo que está perdendo a visão, nos incomoda. Provavelmente pelo fato de que não concebemos a ideia de ficarmos por muito tempo sem um parâmetro imagético exterior, mesmo que de forma confusa.
Jacques Lacan propõe que como somos sujeitos de linguagem toda estrutura de ser está sempre aberta a possibilidades. Outras, de subjetivação, desde que o individuo entre em processo de abertura para o Outro. A construção do Eu segundo Lacan, ocorre à imagem do semelhante e primeiramente da imagem que é devolvida pelo espelho, sendo este o meu eu. A partir desta compreensão pensamos que tudo o que outrora um sujeito como ele foi, ele foi devido a linguagem empregada pelas instituições de poder, o meio social vigente, as pessoas que lhe rodeavam, o trabalho, a família, o desejo do semelhante, as constituições dos dispositivos mais próximos à ele de modo geral. Mudando de modo radical a sua condição biológica (no caso, a visão), um processo volumoso para o qual se volta esse indivíduo que também se modifica, transformando o seu Eu em um Outro. Um Outro do qual ele não tem certeza de quem será e como será. O que sem sombra de dúvidas gera muitas crises no indivíduo.
Apenas o fato de saber que o personagem é um fotógrafo e que está perdendo sua visão poderá nos levar a uma série de digressões, pois com sua vertiginosa perda da visão ele é lançado em um cenário do vazio, da ausência das cores. Foi por meio de uma vida passada em torno de imagens, reais ou idealizadas, e, tendo seu trabalho carregado de reconhecimento, que ele e os outros passaram o localizar-se no mundo. As imagens parecem que se tornaram absolutas em sua forma de entender e de construir os significados.
Algo que chama muita atenção nas narrativas do filme, é que na vida de Nakamori o seu trabalho de fotógrafo foi o seu objeto de investimento (o gozo), podendo ser notado quando diz que a sua câmera é o seu coração e pelas diversas fotografias espalhadas por sua casa. Nessa perspectiva, pensando em Lacan que trabalha com uma visão também antropológica, podemos pensar que Nakamori vem tornando-se então um indivíduo em crise de identidade devido à impossibilidade de fotografar – logo um sujeito desinvestido. Sujeito que advém em sua separação simbólica do Outro. Um Outro que até pouco tempo atrás, enquanto tinha toda a sua visão, era ele mesmo.
No entanto, a grande tacada genial do filme dar-se por mostrar o quanto nós humanos produzimos nossa identidade por reflexo. Sendo através deste reflexo, que sei quem sou, e em um jogo narcisista, vamos nos constituindo a partir de fora. Nakamori a todo instante mostra-se bastante resistente às interpretações de Misako e chega a ser ríspido com ela, retirando-se dos encontros de audiodescrições do qual participava. As cenas que se sucedem adiante levam o espectador a sentir/imaginar que ele vê a importância da descrição paciente e serena que Misako lhe proporcionava, tornando-o mais aberto ao seu encontro com ela.
Nakamori segue um caminho para a construção das relações com a jovem, passando então a ficar aberto a uma nova estrutura de sujeito, esvaziando-se do seu antigo discurso de “aquela câmera é o meu coração” através de um ato simbólico que é retratada em meio a uma bela paisagem frente ao mar no qual joga a sua câmera para muito longe e em seguida beija Misako. A cena fazendo paralelo a visão Lacaniana até lembra sua velha afirmação feita aos seus discípulos de que inconsciente se revela nos vazios dos discursos.
O drama passa em uma atmosfera de sombras e de tons de uma luz própria do crepúsculo vespertino. Nuances de alaranjado dão uma cor às despedidas. Mas, ao mesmo tempo tudo vai se construindo como uma promessa, algo que pode ser engendrado naquele espaço entre a luz e a escuridão. Talvez seja exatamente o que representa a personagem de Misako, a mulher jovem que narra filmes para pessoas cegas. Mas, suas palavras parecem não dizer muito em um mundo em que imagens são construídas totalmente descompromissadas com as referências externas. É como se, para aqueles cegos, essas referências visuais fossem dadas de dentro, o que poderia justificar as falhas sentidas nas suas descrições auditivas. O que parece “visível” nessa história, que trata de cegueira, é esse descompasso entre a imagem visível e sua narrativa. Pois aqui, no mundo dos videntes, parece que construímos uma série de simulacros para distorcer imagens, em função de uma adequação a definições preconcebidas, ou idealizadas.
Enfim, esse filme parece representar um processo de passagem estranho, pois se dá como o contrário daquilo que é experimentado fisicamente pelo seu personagem principal, que sofre a difícil perda de seu pretenso controle e poder do olhar. No entanto, é como que em uma outra instância, ele se permitisse ver algo que até então era evitado, como um ir em direção da luz, o que nos leva a observar com mais atenção ao título original do filme que está em francês, Vers la lumière, que pode ser traduzido como “para a luz”. Eis aí um filme em que com os personagens podemos nos experimentar em um campo sensitivo mais amplo, além de nos possibilitar a beleza da poética de suas imagens.
FICHA TÉCNICA:
Diretor: Naomi Kawase
Elenco: Ayame Misaki, Masatoshi Nagase, Tatsuya Fuji;
Gênero: Romance/Drama
Ano: 2017