FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault; tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1977.
O parricida Jean Pierre Rivière tem seu caso publicado originalmente nos Annales d’hygiène publique et de Médecine Légale em 1836 como a junção das peças judiciárias do processo, as perícias médico legais e seu memorial. O jovem “de vinte anos, 5 pés de altura, cabelos e sobrancelhas negros, suíças negras e ralas, testa estreita, nariz médio, boca média, queixo redondo, rosto oval e cheio, tez morena e olhar oblíquo”1 que, em 1835, mata sua mãe, seu irmão e sua irmã virou tema de um grupo de pesquisa interessado na história das relações entre psiquiatria e justiça penal.
A obra “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão” é resultado de um trabalho coletivo entre estudantes do Colllège de France, coordenado por Michel Foucault. Esse grupo de dez alunos expõe questionamentos intrigantes e atemporais.
O texto vincula o leitor à contextualização dos fatos, mostrando na apresentação os motivos da publicação, a relevância e repercussão do caso no período histórico e adverte a “singularidade para a época e para a nossa também” (XI, Apresentação). A sequência de homicídios impacta a civilidade francesa do século XIX, principalmente quando perpetuada por um jovem camponês, considerado ativista cristão, que justifica seus bárbaros atos por uma perspectiva “divina”.
Fomentados pela mídia local, alguns médicos afirmavam a existência da alienação mental hereditária na família do réu, fato que incidiria numa execução com fins de tratamento ao alienado. Os magistrados, por sua vez, tendem ao entendimento de que Pierre seria imputável, logo a urgência de encaminhá-lo a um tribunal do júri. Afinal, como atribuir inimputabilidade já que o indivíduo encontrava-se lúcido no momento dos homicídios e ainda demonstra notável consciência e frieza ao descrever e justificar sua barbárie familiar?
O texto é dividido em dois capítulos. Capítulo primeiro, “O Dossiê”, contendo seis seções: O Crime e a Prisão; A Instrução; O Memorial; Pareceres Médico- Legais; O Processo ; Prisão e Morte, em um total de 180 páginas. Capítulo segundo, “Notas”, é composto por sete seções, algumas feitas em conjunto: O Animal, o Louco, a Morte; Os Assassinos que se conta; As Circunstâncias Atenuantes; Regicida- Parricida; As Vidas Paralelas de Pierre Rivière; Os Médicos e os Juízes; As Intermitências da Razão, que completa as 294 páginas. O foco narrativo é em terceira pessoa, sendo um narrador observador, o que justifica a perspicácia da equipe em datar os documentos e organizá-los de forma aparentemente cronológica para que os leitores tomassem ciência conforme os fatos iam acontecendo.
Foucault, coordenador da obra, parte do pressuposto da análise das relações entre a psiquiatria e a justiça penal, daí a justificativa de conter no Dossiê, capítulo I, o processo, o memorial e os pareceres médico-legais. A evolução do direito não permitiria que se aplicasse a norma positivada, apenas, tomando grau de importância imprescindível os laudos médicos que, de formas diferentes, segundo o conhecimento e especialidade de cada um, justificam as atitudes de Pierre como resultado de sua alienação mental. Esse tensionamento entre os discursos alienista e jurista provoca mudanças na percepção da execução do réu. Inicialmente condenado à morte como parricida e fratricida, fora perdoado e convertida a pena em prisão perpétua (p. 180).
O fato de esclarecermos de antemão o desfecho da obra – prisão perpétua de Pierre – não deve desmotivar o leitor a imergir na obra coordenada por Foucault. O estilo da escrita cientifica da época, a eterna luta territorial entre os discursos médico-orgânicos e jurídico sociais tornam a leitura uma aula de história das idéias: “Rivière é originário de uma família onde a alienação mental é hereditária” (L. Vastel); as análises do transtorno familiar que o réu presenciou durante toda sua infância e adolescência, que já haviam sido levados ao judiciário em outras ocasiões (p. 84); a relação de desconforto da parte de seu pai, que várias vezes cita o anseio de suicidar-se para alcançar o fim da infelicidade por ter como esposa – ainda nas palavras de L. Vastel Caen – uma mulher de gênio obstinado, imperioso, impertinente, que o fazia mal constantemente, porém não era dona de suas ações. Seu tio, irmão de sua mãe apresenta sinais de loucura durante toda a vida, bem como dois primos e sua mãe, como já mencionado, e ainda tem-se a hereditariedade como um dos efeitos mor na produção da loucura, segundo os laudos-médicos.
Dentre o grande inventário de características assinaladas pela loucura na família do réu, observa-se o horror pelas mulheres, o desprezo pelas atitudes de mãe que maltratava o marido, seu pai, e sua própria mãe, avó de Rivière. Com intuito de livrar seu pai do sofrimento contínuo, inspirado por Deus, como escrito em seu memorial, agindo em seu nome, como expõe em seus depoimentos, decide a morte de sua mãe e com ela a de sua irmã, que sempre tomara partido da mesma. Todavia, para que seu pai gozasse da liberdade plena, era também necessário livrá-lo de seu pequeno irmão que Pierre tanto amava. Dessa forma seu pai chegaria a aplaudir a morte de seu libertador, Rivière, quando a este fosse aplicada a lei.
Enfim, esses são apenas pequenos fragmentos temáticos atravessados pela obra. Para um desdobramento mais detalhado sugerimos a leitura atenta e completa dessa produção fundamental para pessoas sedentas de conhecimento.
1 FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: Um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault; tradução de Denize Lezan de Almeida. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1977.p 11