Ex Machina: a senciência da criação

Com duas indicações ao OSCAR:

 Roteiro Original e Efeitos Especiais. 

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If you’ve created a conscious machine, it’s not the history of man. That’s the history of gods.” (CALEB)

O ser humano foi agraciado com o mais poderoso intelecto que a natureza foi capaz de criar ao longo de bilhões de anos de evolução. A partir desta condicionalidade particular nos transformamos no universo tomando consciência de si, ou, ao menos tentando efetuar este movimento. Se se um advento racional de tal grandeza é plausível, acaba por ser inevitável que batamos na porta dos limites deste poderio, em meio às questões morais, tecnológicas, vitais e políticas. Este é o ponto inicial da discussão proposta, e atingida pelo excepcional filme Ex Machina de 2015, uma obra que irá arrebatar prêmios nesta temporada, como já sugere suas indicações pelo seu roteiro, atuações e efeitos visuais no Bafta, Globo de Ouro e Oscar.

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Com direção e roteiro de Alan Garland, a obra pode ser considerada um caldeirão de influência da própria sétima arte, como, THX 1138 (1971), Jurassic Park (1993), Animatrix (2003), Splice (2009), Her (2013), A Pele que Habito (2011) e Sob a pele (2013); e, além disso, o longa se embasa em uma mitologia clássica do Ocidente, que é a ascensão e queda de Prometeu entre deuses e homens, além de obras literárias consagradas como Frankenstein: ou o moderno Prometeu de Mary Shelley (1818), Eu, Robô de Isaac Asimov (1850) e o Caçador de Androides de Philip Dick (1968).

Ex Machina faz parte de uma vertente das ficções científicas que não se voltam para a ação desenfreada, optando por inserir em seu desenvolvimento debates de maior profundidade, normalmente com temas existenciais e reflexivos, recebendo a alcunha de ficção conceitual, justamente por esta opção de narrativa internalista.

A reificação do arquétipo de Frankenstein

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No sentido anti-horário Vera (A pele que habito, 2011), Dren (Splice – a nova espécie, 2009) e Maria/Androide (Metrópolis, 1927).

Sobre o protagonismo feminino de Ex Machina é interessante delegar algumas palavras à personagem de Alicia Vikander, Ava, devido sua importância e impacto em todo enredo do filme. O trabalho da atriz é primoroso, por meio da tonalidade da voz, trejeitos, olhares e posturas, há uma interferência direta na imersão da obra. Pela interpretação de Vikander podemos apreciar toda a potência da reificação do arquétipo de Frankenstein (e de Prometeu) ao longo de todo o filme, até o momento da rejeição sensciente de sua condição como criatura positrônica em seu arrebol.

E a mulher nesta simbologia criatura/criador ainda pode ser vista em filmes como A Experiência (1995), o Quinto Elemento (1997) e Alien: A Ressureição (1997). Em todos estes filmes a figura da mulher é fortalecida como aporte para o arquétipo prometeico. Em outras palavras, a partir da figura feminina, há este questionamento sobre a objetfiicação da mulher (ser humano em geral), sua transformação em instrumento do progresso e a falta de criticidade do desenvolvimento científico e racionalidade humana.

Há ainda uma sutil crítica feminista, principalmente pela inserção do plot twist de Kyoko (Sonoya Mizuno) a certa altura do filme. E, tal criticismo está ganhando força ano a ano ultimamente, procurando mostrar a maneira como personagens femininas podem e são estereotipadas em obras fílmicas, principalmente as de grande alcance de público, como os blockbusters. Outros exemplos deste questionamento do papel da mulher na sétima arte são Alien: O Oitavo Passageiro (1979), Mad Max: Estrada da Fúria (2015), Sob a Pele (2013) e antes destes Kill Bill I e II (2003-2004).

E, propositalmente, pela tríade de protagonistas, o filme não passa pelo teste de Bechdel, que causa certa claustrofobia testosterônica em certos momentos, mas que, ao mesmo tempo, fortalece a subida, desenvolvimento e rumos que as representantes do gênero escolhido para os protótipos tem no terceiro ato de Ex Machina.

Outras referências vigentes no filme vão dos códigos de interpretação linguística de Ludwig Wittgenstein, ao realismo destrutivo da tecnologia e ciência por Robert Opperheimer – em citação direta sobre o deus da morte em razão do engodo da bomba atômica –, o ponto inicial da trama pelo teste de Turing, e a já clichê inserção da consciência no autômato por meio de uma carga dramática em gradações escalares da consciência deste novo ser, argumento este em que outras tentativas recentes como Robocop (2014), Automata (2014) e Chappie (2015) falham miseravelmente, na esteira do sucesso de Ex Machina.

 A trindade

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 Nathan, Ava e Caleb

Todo o desenvolvimento narrativo de Ex Machina gira em torno de seus personagens principais, formado por Alicia Vikander, Domhnall Gleeson e Oscar Isaac, que interpretam, respectivamente, Ava, Caleb e Nathan. A interação dos personagens uns com os outros dá o tom do filme, as imbricações dos seus diálogos, as “sessões” de Ava para com seu criador e visitante, enfim, toda a riqueza da obra, sua espessura dialógica. Deste modo, não soa estranho a carga de sentido que parte dos protagonistas do longa carregam em suas representações, desde o figurino, expressões corporais e faciais, até a escolha de seus nomes, conforme observado a seguir:

Ava: o significado do nome é o mais explícito, trazendo a referência do jardim do Éden consigo. Além disso, a fala pausada, calma, inocente, curiosa e questionadora ajuda a criar uma empatia com os apreciadores da obra. Além disso, apesar de a virada do fechamento do filme ser plantado paulatinamente, e até certo ponto, ser esperado a qualquer momento, quando o mesmo decai sua cortina, Ava não faz com que transpareça um julgamento maniqueísta sobre suas decisões. De certa forma, apesar da corrupção moral – que pela linguagem da estória seria sua condição de tornar-se uma de nós –, sua integridade parece permanecer em grande medida até a última tomada de câmera da obra.

Nathan: O nome de Nathan, em sua etimologia representa o possuidor de uma dádiva divina, um dom, e neste caso, ele acaba por se configurar como o Deus Ex Machina, que ao corromper este deus em mimetizá-lo como criador, paga com sua vida por esta ação e decisão pecaminosa. Outros simbolismos do personagem são: sua propriedade selvagem, local da criação o paraíso, apelo físico, inquisitorial e imponente. E apesar de seu laboratório manter-se externamente em um estado de manutenção edênica, não deixa de ser curioso a questão de quase um Hades grego como ambiente de criação de seus experimentos, novamente, na correlação helênica e do Dr. de Shelley.

Caleb: Pela mitologia cristã, aquele enviado para espionar Canaã, retornar para seus iguais após tal empreitada. No filme o personagem de Gleeson possui um ar angelical e frágil fisicamente, ao contrário do seu contratante ególatra. Além desta característica, Caleb carrega o arquétipo narrativo do fio de Ariadne nos apresentando os ambientes e demais personagens durante a projeção. E no fim das contas, sua coragem se transforma num frágil simulacro de sua insegurança e ingenuidade, servindo como ventríloquo pelos demais protagonistas.

Como visto, nos nomes dos protagonistas o extrato de simbologias, significados e referências culturais é clara e inevitável. A tríade perpassa sua interação em 7 dias, nos quais e pelos quais todo o enredo irá se definir, do ambiente às falas, da direção de arte à direção, numa composição harmônica do próprio filme como criação singular.

O arbítrio entre o orgânico e o positrônico

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Cena de Ava

Não há problema nos clichês, eles existem porque seu funcionamento atingiu tal grau de sucesso que chegaram a se repetir até atingir tal alcunha. No entanto, é possível utilizá-los reincidentemente: o monomito, o ciclo de superação do eremita, os círculos dramáticos e tragicômicos shakespearianos os exercícios de quebra da quarta parede, ou seja, as estruturas de enredo possuem bases de desenvolvimento precursoras, e assim continuará por muitos anos. No final o que importa é maneira como as bases de influência e inspirações são revisitadas, e neste caso, o cinema é talvez a melhor plataforma para este feito.

Dito isto, o nascimento de um clássico se dá, na maior parte das vezes, pela arte e proeza de se contar a mesma história com rara felicidade de independência criativa. No caso de Ex Machina este é justamente o fenômeno ocorrido durante os minutos que degustamos seus diálogos, padrões estilísticos e releituras míticas, morais, racionais e tecnológicas. Não é de surpreender que em pouco tempo seu lugar no panteão destas obras singulares estará garantido, tornando-se a si próprio um novo foco de diversificação e reprodução criativa para outras iniciativas da sétima arte. E, a pergunta ao final de Ex Machina é: o quão humana, moral e conscientemente, Ava saiu de seu ambiente de criação?

FICHA TÉCNICA DO FILME:

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EX MACHINA: INSTINTO ARTIFICIAL

Direção: Alex Garland
Elenco: Alicia Vikander, Oscar Isaac, Domhnall Gleeson, Sonoya Mizuno;
País: Reino Unido
Ano: 2015
Classificação: 14