História da Loucura (1961) de Michel Foucault: a retomada de um livro-artefato para avançarmos frente os desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira
Ao recebermos o convite para contribuir com a série “Poder – Subjetividade – Saber: diálogos com Foucault”, especificamente sobre a primeira grande obra do autor, História da Loucura, pensamos em fazê-lo sem cair numa espécie de resenha de uma obra já tão comentada.
Enquanto livro-ferramenta, há várias formas de adentrar a obra, folheá-la e se envolver com as reflexões que o livro proporciona; ou dali tirar ferramentas-conceituais, analíticas e problematizações para transversalizar com outros campos discursivos e práticos.
Os usos de uma obra, como bem nos ensinou o filósofo, podem variar conforme as táticas ou estratégias de cada campo de problematizações com que estamos implicados. Neste caso, registramos que o nosso campo de implicação é a Reforma Psiquiátrica brasileira, em sua luta por uma sociedade sem manicômios.
Conforme consta nos ditos e escritos do próprio Foucault, e reflexões de vários comentadores de sua obra, no geral, Loucura e Desrazão. História da Loucura na Idade Clássica (1961) não toma para si uma história da verdade sobre a loucura, ou de sua constituição como objeto de um determinado campo de saber. É sobre a história do silenciamento da loucura, ou mais precisamente:daquilo que se dizia e fazia em planos diferentes do discurso médico em relação à loucura, o que interessava ao filósofo.
Assim, a obra História da Loucura trata sobre as experiências limites da loucura, expressa em vários campos (pintura, literatura, filosofia, no âmbito moral e legal, social, dentre outros) e épocas; trata de como as compreensões e representações destas experiências percorreram determinadas linhas de continuidade e descontinuidades até encontraras formas constitutivas do saber psiquiátrico, que em certa medida agencia-se com um plano de racionalidades,que também percorre e atravessa outros saberes e práticas, inclusive os demais saberespsi,formando um dispositivo que possibilita a moderna condição de inteligibilidade, dizibilidade e verificabilidade de como nos pensamos homens sãos, normais, e por contraste, nos diferenciamos do sujeito da loucura.
É com base nessa trilha argumentativa que o filósofo nos faz ver ao longo de determinados períodos históricos as camadas discursivas e suas condições de aparecimento de determinados saberes e práticas em torno da loucura. Aliás, como gostava de referir Foucault em muitas entrevistas que comentou sobre a obra, “laço entre razão e desrazão que autoriza a primeira a produzir um discurso de saberá respeito da segunda” (Revel, 2011, 66-67). Portanto, a obra trata sobre as modificações dos discursos sobre a loucura.
Mas não é pelo que consta na obra que gostaríamos de destacar a História da Loucura. Sempre quando perguntado sobre a recepção da sua primeira grande obra, o filósofo referia-se a ela com certo “pesar” em torno do silenciamento e recepção difícil por parte de alguns setores da academia e da crítica em geral.
Os psiquiatras, por outro lado, na figura de Henri Ey, não apenas não silenciaram, mas contra-atacaram Michel Foucault convidando-o para participar das Jornadas de Evolução Psiquiatra em Toulouse. O objetivo do convite era rebatê-lo sob argumento do discurso ideológico, com o qual, na opinião dos psiquiatras, o que o filósofo fez, com sua História da Loucura, foideclarar uma guerra ideológica contra a psiquiatria. Na opinião dos psiquiatras, o filósofo faz uso da história de maneira ideológica para tentar invalidar sua ciência fazendo da loucura um produto cultural. O que mais irritou tais senhores do saber foi o fato de Foucault ter colocado em questão a verdade e a pretensão natural e científica da Psiquiatria, além de sua respeitabilidade médica revelando práticas, muitas vezes, coercitivas (Eribon, 1990). Assim sendo, Foucault acabou declinando do convite, por entender que o debate sendo encaminhado a partir do plano ideológico reduzia em muito a discussão, e por isto foi acusado de “psiquiatricida” (Colucci, 2014).
Tais enfrentamentos, internos e externos à obra, em relação ao solo de verdade encarnado pelo discurso psiquiátrico, da norma, resultou na associação do filósofo ao movimento antipsiquiatria. Logo, História da Loucura ganhou espaço como obra-ícone nos movimentos de contestação em 1968, ao lado dos escritos dos antipsiquiatras Szasz e Bettelheim que trabalhavam nos Estados Unidos, Laing e Cooper na Grã-Bretanha e Basaglia na Itália; ou mais tardiamente, como diria Revel (2011), com o AntiÉdipo de Deleuze e Guattari, a partir de escritos e discursos que contestavam o vínculo do saber, do conhecimento, com práticas de assujeitamento.
História da Loucura coloca-nos então o hospital como paradigma das análises das relações de poder na sociedade no final de 1960 e nos anos 1970. O hospital psiquiátrico passou, na verdade, a ser alvo de críticas pelo movimento da psiquiatria institucional desde 1940, debate este que ganhou força no maio de 1968, e posteriormente seguiu após 1970 com o forte “debate políticoe social denunciando os internamentos abusivos, as condições de vidadesumanas no interior dos centros de tratamento, as consequências, a longo prazo, dos neurolépticos”, a suspensão de direitos, dentre outros (Bert e Artières, 2011).Porém, os elementos críticos em torno do hospital e suas nuances foram catalizados e convulsionados, com maior monta, semelhante a um “cataclisma”, a partir de a História da Loucura.
Nesse sentido, para o filósofo, “antipsiquiatria é tudo o que recoloca em questão o papel de um psiquiatra encarregado outrora de produzir a verdade da doença no espaço hospitalar” (Foucault, 2014, p. 69). Porém, antes de avançar nesse aspecto, para que possamos destacar alguns fragmentos da obra em questão, como aposta para reposicionarmos nosso Movimento de Reforma Psiquiátrica, cabe uma digressão.
Como referimos antes, apesar de História da Loucura ser uma obra em que a linha analítica se dá no campo da arqueologia, mas já ali, Foucault construía as bases do que mais tarde iria aprofundar em seus estudos genealógicos, a partir das relações de poder, mirando assim na pretensão do poder psiquiátrico e da própria figura do médico em ser o depositário da verdade; ou seja, de ter o domínio de uma verdade estabelecida a partir das evidências de uma ciência médica e de uma pretensa normalidade, que exigem um reconhecimento universal (Colucci, 2014).
Talvez um dos maiores legados de Foucault deixado por toda sua obra, e já presente em a História da Loucura, é exatamente o fato de que essa pretensão de saber sobre a verdade do outro, ou de ter acesso ao outro de maneira a desvelá-lo, é o quedeve ser questionado.Tal fato figura para nós como uma “bomba” no colo dos saberes psi, com os quais incluímos além da psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, outros diversos que lidam com o terreno das práticas psi. Afinal, até que ponto, mesmo sob a sombra do discurso da Reforma Psiquiátrica e da Atenção Psicossocial, estamos dispostos a abrir mão do lugar da vontade de verdade sobre o outro, seja para desvelá-lo em seus segredos, seus mistérios, sua doença e outras formas de viver;e caso não consiga, seja pelo menos para dizer,a partir do campo dos direitos, qual é o melhor local e forma para alojá-lo, para cuidá-lo e para tê-lo conosco ou com os seus?
A modernidade fundou um tipo de encontro-necessidade em que o saber/poder do médico (e todos os outros) tem algo a dizer sobre o status da doença do paciente. Sendo que este,busca aquele, submetendo-se a este jogo de poder,para aliviar suas dores e desatinos. Ou seja, tem-se aqui um jogo de posições fundante deste lugar de verdade que a psiquiatria representa: ao mesmo tempo que o louco é fixado em enunciados que o têm como despojado de poder e de saber sobre sua doença, resta-lhe a posição de subordinação e passividade frente àquele que sabe, o profissional.
Todos, independentemente de sermos manicomiais ou não, somos herdeiros desta tecnologia que nos constitui operadores de determinado saber/poder. Este talvez seja o maior legado que a História da Loucura nos trouxe. Assim entendemos que o núcleo central da obra traz à luz não apenas a necessidade de uma analítica dos planos discursivos acerca da loucura em diferentes épocas e campos; mas uma analítica do poder, como uma analítica sobre o sujeito e sua subjetivação.
Como nós, operadores dos serviços e da política de saúde mental, nos subjetivamos meio a essa tecnologia de saber/poder, entre aquele que pretensamente “sabe” algo e aquele que nada sabe, mas que ocupa a posição de passivo a espera daquele que “sabe” uma resposta?
Não caberia aqui pensarmos alguns elementos daquilo que o filósofo, mais à frente, chamará de ontologia do presente? Foucault já ensaiava em nos alertar com sua História da Loucura a pensarmos sobre o que estávamos a fazer de nós mesmos na atualidade?
Trazendo tais questionamentos para nossa atualidade: o que estamos fazendo de nós mesmos, em nosso presente como agentes, profissionais, operadores deste aguerrido movimento chamado Reforma Psiquiátrica?
Nos últimos anos encontramos na realidade brasileira enormes desafios para efetivar os princípios da reforma psiquiátrica em toda sua radicalidade. Avançamos na reversão do parque manicomial, substituindo-o por uma rede (ainda não) integrada de serviços, com foco nas ações extra-hospitalares e comunitárias, que pretendem articular a Estratégia Saúde da Família (ESF), a Estratégia de Atenção Psicossocial (EAPS) e outros níveis de atenção de maneira continuada. Para sustentarmos tal horizonte é necessário o empreendimento de dois outros movimentos que entendemos imprescindíveis à Saúde Mental. O primeiro se refere ao campo técnico-assistencial, que exige práticas pautadas no paradigma psicossocial. Ou seja, visa construir uma sólida base de sustentação prático-profissional, inclusive com apoio e suporte institucional, para adoção de ações acolhedoras e resolutivas com a perspectiva da garantia da continuidade do cuidado. Para tanto, faz-se necessário desinstitucionalizarmos o modo como operarmos nossas práticas ainda constituídas do lugar de saber/poder sobre o outro, bem como nos dessubjetivamos do modo como nos constituímos profissionais nesta relação. O segundo movimento trata do campo sociopolítico, que pede atuações macro e micropolíticas em conjunto com os movimentos sociais para consolidar a Política Nacional de Saúde Mental/PNSM. Mas como operar neste campo se nossas práticas profissionais não estão implicadas com tal horizonte?
O fato da Reforma Psiquiátrica ter se constituído no Brasil como um campo de muitas lutas e disputas políticas, dada sua potencialidade reivindicatória, torna-se espaço propício à análise do modo como os trabalhadores em geral têm engendrado sua “vontade política” (Foucault, 2010, p. 214). Ou seja, como temos nos movimentado, participado e interferido no processo reformista? E atuado em termos técnico-prático e ético-político, enquanto trabalhadores da saúde mental? Estamos satisfeitos com a rede psicossocial que temos? Com alguns direitos, mesmo que mínimos, conquistados? A troco de quê? Submetendo-nos a que nível de normalização?
Outrossim, destacamos que já em a História da Loucura o filósofo indica a necessidade de transversalizar a tríade analítica Saber – Poder – Subjetividade, como um ato ensaístico, de experimentação do seu pensamento,o qual mais tarde resultará em seus estudos do poder, da ética e de si.
Deste modo, o filósofo desta série, encaminha-nos com sua História da Loucura para o campo da ética, de modo a fazer-nos um convite à prudência e à problematização do nosso presente, em que temos nos transformado. Nesse aspecto, se quisermos avançar no debate em torno da loucura/doença mental precisamos ir além das denúncias e discussões que se fixam na centralidade da figura do hospital, reafirmando sua imagem de coerção, como se nos chamados espaços/serviços abertos estivéssemos isentos de tal tecnologia de poder.
Há uma mecânica que precisa ser evidenciada: a relação entre verdade e subjetividade que está em jogo no dispositivo psiquiátrico ou nos demais saberes e práticas psi também em jogo neste campo.
É no Curso “O Poder Psiquiátrico”que o filósofo irá aprofundar essa ideia. Assim, parte do entendimento de que o sujeito não é completamente passivo (Foucault, 2006). Nesse sentido, percebe na formação ativa do paciente, no palco de enfrentamento com o médico, relações que podem configurar-se por aquilo que chamará de contrapoderes, ou mais na frente, em outro curso, denominará: contracondultas (Foucault, 2008).
Não podemos esquecer que foi a partir do lugar de doente, considerando o fato de que o enfermo mental ao reconhecer no médico aquele que sabe sobre o seu mal, sobre sua doença, tal operação trouxe, contraditoriamente, à loucura para o campo dos direitos. Se sou doente, tenho direitos. A medicalização tornou o louco cidadão de direitos. “A restituição dos direitos foi possível a partir do momento em que o indivíduo passou a ser normalizado numa identidade de doente mental” (Colucci, 2014, p.289).
Aqui é o ponto que o legado de Foucault nos coloca em franco incômodo, fazendo com que possamos nos deslocar de nossas posições, certezas, para que possamos desacomodar nosso olhar e lugar deste terreno tão contraditório, complexo e heterogêneo que a Reforma Psiquiátrica. Como, na Saúde Mental, podemos nos dessubjetivar desse lugar em que a modernidade nos configurou entre o direito e a doença, a soberania jurídica e a normalização disciplinar, em torno da loucura?
Para finalizar, partiremos de quatro concepções de que o filósofo, em um texto recém publicado, tipifica a antipsiquiatria. Mas antes, um alerta: para o filósofo existem “tantos tipos de antipsiquiatria quanto há de possibilidades de modificar essa relação de poder que existe e que foi historicamente instaurada entre o psiquiatra, o doente e a produção da loucura na verdade” (Foucault, 2014, p.70).
Assim, Foucault chamará de antipsiquiatra, primeiramente, aquela prática que tenta reduzir ao máximo a produção da loucura em sua verdade, “para deixar de alguma maneira, face a face e no estado nu, o doente e o médico” (2014, p. 70) e dali, a partir de tal experiência fenomênica,extrair novos sentidos, compreensões e práticasa partir desse processo de alteridade radical, que é o encontro com a loucura.
Também chamará de antipsiquiatria, uma segunda forma, que em vez de agir para suprimir o momento da produção da loucura, tenta tornar tal produção mais intensa, ajustando as relações de poder entre médico e o doente, de modo a prevalecer tal relação, afastando-se de todas as outras (administrativa, política, institucional etc.), restando apenas o doente e o psiquiatra, enredados numa relação mais livre, contratual, para que as relações, desejos e poder também se criem entre eles. Deste modo, semelhante a experiência psicanalítica, o médico não mais intervém como instância de autoridade autônoma, avaliando do exterior do doente, mas de dentro, do entre, da relação, a partir do silêncio, das cadeias da linguagem, do manejo das relações de poder que aí circulam ou são produzidas, das posições subjetivas, da atividade inconsciente entre um e outro, do que ali se singulariza, para alcançar uma verdade (ou as verdades) que são do paciente ou das relações que este tece com o mundo e consigo, e não “a verdade (universal) da doença”.
Como terceira forma, chamará de antipsiquiatria a ação de tentar reduzir a zero a relação de poder com o doente, ou seja, de colocar em questão nosso etnocentrismo, nosso lugar de reconhecimento entre os iguais,de sujeito normal, são, que sabe sobre o outro. Colocar em questão tais posições everdades para deixar a loucura cumprir o seu caminho, para que ela, que anteriormente era tida como objeto, possa trazer as verdades sobre o como e para quê foi produzida;talvez, um caminho de deixar falar a loucura, de passar do lugar de objeto, mudo, para o de sujeito.
Mas seria uma quarta forma que mais chama a atenção do filósofo. Trata-se da antipsiquiatria que coloca em questão, que coloca às claras, todas as relações de poder, sem a ingenuidade/pretensão de chegar ao grau zero das relações de poder. Essa antipsiquiatria não nega o poder ou quer vencê-lo. É uma antipsiquiatria que sinaliza como as relações de poder operam, inclusive em nós, também incluídos nestas relações. Interessa, portanto, acompanharmos para intervirmos sobre como as relações de poder tramam a existência do doente e sua loucura, ao mesmo tempo em que tramam a nós mesmos como sabedores do doente e sua loucura. Isso requer um trabalho de luta e ação política que tenta atentamente desatar as diversas relações de poder que fabricam, que tecem nossa existência, produzem nossas subjetividades, e desenham as linhas e as condições em torno das possibilidades para que possamos nos pensar e conceber sujeitos.
Assim, o que está em jogo são as contracondutas que podemos operar em nossas relações, de si para consigo e para com o outro, espécie de estilística de nossa existência, para não ocuparmos determinados lugaresque reafirmam posições estabelecidas na trama do saber/poder, entre aquele que sabe sobre um outro, inclusive para garantir determinados direitos. Talvez este seja o “antídoto” necessário para retomarmos a potência de nos movimentarmos num terreno tão frágil ou precário entre os dois planos de que falávamos anteriormente e que pautam nossas relações com a loucura:o direito e a normalização. Somente a experimentação da prática poderá nos responder!
Porém, isso exige uma ação implicada numa ética da não dominação. Não do grau zero das relações de poder, pois onde há relação, há poderes. Implicarmo-nos com uma ética da não dominação, talvez seja o que o próprio Foucault propôs, parafraseado por Colucci (2014), ao referir sobre a necessidade de tecermos uma prática que possa expressar uma atitude profissional e militante na Saúde Mental, que derrote os microfascismos que nos habita. Esse é o cuidado para não figurarmos como os “novos” burocratas da Reforma. E assim, talvez, potencializar novas e “velhas” lutas Por uma sociedade sem manicômios!