O Grego é Heresia

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Erasmo, tido como herói de batalha nos contextos de reforma e contrarreforma; O mesmo tem marca fortíssima para o surgimento do protestantismo. Erasmo era admirador fiel de Jerônimo. Este foi tido como santo por Erasmo, por morrer virgem, não ingerir carne ou bebidas alcoólicas, dormir no chão, usar trajes cilícios e se mutilar três vezes ao dia. Seu amigo, Quentin Metsys chegou a pintar um retrato de Erasmo que nos remete ao famoso retrato de Jerônimo, por Van Eyck, para representar o quanto Erasmo era devoto á seu herói, sendo retratado na mesma posição (p. 132). Foi esta adoração que o levou a aprender grego, para que pudesse entender de forma direta os escritos de seu ídolo. E ao se deparar com as diferenças que as traduções traziam com o que Jerônimo escrevera de fato, Erasmo se dedicou a retraduzir corrigindo todos os equívocos que os textos traziam.

Porém esta ação de Erasmo o fez ser conhecido como “agressor herético” a Jerônimo (p. 134), pois Erasmo se voltou para um livro tido como livro santo pela igreja e pela sociedade da época, A Vulgata, causando uma crise social. Este livro regia todas as normas e leis da época, bem como os serviços religiosos, representando o poder do Latim na Idade Média.

Levantamentos como o preço da autoridade da igreja e a veracidade da Palavra de Deus nortearam os sentimentos diante da crítica de Erasmo, pois este havia colocado a ordem da sociedade em jogo (p. 135). As pessoas temiam que as alterações da Vulgata ameaçassem a instituição da igreja, assim como ocorreu. “A igreja foi violentamente desmembrada por esse movimento intelectual. ”

Fonte: goo.gl/wAm5ss

As mudanças que Erasmo propôs dividiu a sociedade e um massacre foi iniciado, como o caso de Hermann van Flekwyk que foi morto na fogueira acusado de “mamar nos peitos venenosos de Erasmo” (p.136), e a erudição de Erasmo se tornou caso de vida ou morte. Neste momento o Grego havia se tornado um alicerce de aprendizado e de cultura, uma das maiores conquistas da Renascença. Mas foi no Concílio de Trento, em 1546, que a Vulgata foi declarada como “autentica” e fora proibido a rejeição da mesma, neste momento toda a inflamação sobre a versão de Erasmo foi apagada (p. 137). Nasce neste momento um sentimento de nojo de tudo que fosse de cunho grego, fora orientado até as crianças que se afastassem do grego. Ele se tornou sinônimo de origem de heresias. E Erasmo passou a enfrentar muitos adversários de forma direta.

Após as críticas de Lee a primeira edição da versão de Erasmo, uma cópia do livro de Lee foi mergulhada em fezes e exposta no meio de uma sala de leitura pública. John Meier mostra a Erasmo a real preocupação da igreja quanto a exatidão da letra diante da manutenção da autoridade. Esta discussão entre Erasmo e Meier expressou exatamente o sentimento das discussões entre reformadores e conservadores. Um preocupado com a verdade e a erudição e o outro com tradição e autoridade, respectivamente. Nasce neste momento também um grupo chamado “Os Troianos” que reprimia toda e qualquer expressão de estudo e aprendizado dos clássicos, ridicularizando quem o estivesse praticando, mas foram repudiados por More, em nome do rei Henrique VIII, como “facções estúpidas (p.139).

Logo, em 1559, Elizabeth I e Eduardo VI, que foram instruídos por Ascham, acadêmico de Cambridge muito influenciado por Erasmo e pela causa humanista, em uma rigorosa educação em grego, levaram a Inglaterra ao protestantismo. Porém criticados por Erasmo quanto a tradução da Bíblia para o inglês. Esta critica se deu por uma preocupação exacerbada pela tradução que poderia gerar conflitos de sinônimos e mudaria princípios religiosos como a disputa por “amor” e “caridade” (p.140). Entretanto o uso do inglês foi radical em apoio a Reforma. E por fim T. S. Eliot se preocupa com a importância de se estudar grego e latim para entender as raízes e a sobrevivência da civilização cristã, usando a compreensão dos clássicos para o entendimento da tradição ocidental (p.141).

REFERÊNCIA:

GOLDHILL, Simon. Amor, Sexo e Tragédia. Ed 1, Editora Jorge Zahar, 2007.

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Estamirize-se! (Estamira e Esquizoanálise)

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1, 2 Intervenção no real radar…

Cheiro forte, restos, descuidos, Sol agredindo uma pele envelhecida, inúmeras armadilhas, risos descontidos, brados ao trovão(rá), neologismos, música

Produzir uma torção nos aforismos de uma conjunção de linhas desviantes de forças chamada Estamira Gomes de Sousa.

Desfigurar uma imagem e produzir um duplo completamente dessemelhante, decerto aquém da multiplicidade de cores que circulam esta singular existência

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Retirado de: cadaumtemasua.com.br

Bradando sua inquestionável onisciência, Estamira experimentou jogar mentiras na cara daqueles que produzem silenciamento ao que ultrapassa a curva da razão: espertos-ao-contrário!

Ela não é comum (a não ser o seu formato-carne, sanguíneo, par), ela é Estamira, a visão de cada um!

Ela não “foi”, pois a morte é o começo de tudo! Ela “é” e sempre “será”, pois existe/existirá como força de afirmação esquizopoiética de existências que não se prostram diante dos microfascismos de uma máquina capitalística de produção de trocadilos

Trocadilos como manifestação de toda forma de aprisionamento, subjugação, controle e violência (Trocadilo-homem, trocadilo-religião, trocadilo-ciência)

Sua lúcida loucura agenciou a criação da onipotência de uma mulher que tinha tudo para esgueirar-se numa vida sofrida, calada, negada, anulada

Torceu suas certezas e produziu linhas de fuga que a permitiram suportar uma realidade devastada por diversos trocadilos

Apontou o controle remoto que ordena os corpos, coadunando nas entrelinhas com as palavras de Artaud ao declarar guerra aos órgãos

Povoada por diversos astros positivos, fez-se a beira do mundo, posto que está em todos os lugares, sobretudo no que vai além da borda, o que trans-borda: o além dos além (lugar onde nossa razão nos impede de ir)

Sua fala é eminentemente política, pois seu delírio poético produz desvios nas verdades sobre DEUS, o homem, a Psiquiatria, a loucura, o lixo, sobre você no que concerne a resistência dos biopoderes produzidos em diversas línguas e nos atravessam cotidianamente

Num eloquente agenciamento coletivo de enunciação, de d’enunciação da opressão e violência, do status quo e das verdades absolutas, devolte tratos antes tragados a contragosto!

Estamira sentiu na pele os manicômios, físicos e mentais que atravessam os médicos-deuses, os remédios-dopantes e até a família.

Estamira desafia DEUS para resistir ao revir do seu devir reativo.

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Retirado de: menos1lixo.virgula.uol.com.br

Exclama o potencial microrrevolucionário do devir minoritário, quebrando molaridades e zombando das falas instituídas.

“A doutora passou remédio pra raiva” Risos!

Num transbordo “além dos além“, povoado de forças desconhecidas, vive a atualização das virtualidades reais num imaginário que tem, existe e é!

Delirar para Estamira talvez seja inventar o esquecimento, experimentar o intempestivo presente no Transbordo-do-Fora, o qual nós seres humanos comuns não temos condições, em virtude da nossa insana razão

É preciso experimentar a lúcida loucura de Estamira para subverter a homogeneização do retorno do mesmo, da cela do passado, do fato, feito, fadado ao fim da vida

Estamirizar é diferir, divergir, esfregar nas caras a existência e permanência de um trocadilo que é o próprio microfascismo que está em nós

Estamira não é uma mulher, Estamira é uma força!

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Retrocesso nas políticas públicas de saúde – (En)Cena entrevista Sílvio Yasui

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Foto: Reprodução do Facebook

Professor da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Silvio Yasui tem doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz, e é um dos profissionais brasileiros que mais se destacam na atenção psicossocial. Psicólogo formado na década de 70, Yasui tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Saúde Mental, atuando principalmente nos seguintes temas: saúde mental, reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, oficinas terapêuticas e Política Nacional de Humanização.

Em entrevista exclusiva ao (En)Cena, Silvio Yasui disse que a indicação de Valencius Wurch Duarte Filho, que tem uma postura pró-manicômio, para administrar a Área Técnica de Saúde Mental do Ministério da Saúde (MS) é um contracenso, pois não corresponde aos esforços que vem sendo feitos na área nos últimos 30 anos. “Como colocar alguém que não compactua com essa política (de humanização e atenção psicossocial) para responder pelo setor?”, questiona Yasui.

O profissional também faz um panorama das políticas de Saúde Mental no Brasil e rebate as acusações do ministro da Saúde de que o movimento anti-Valencius é de caráter meramente ideológico: se assim o fosse, “a Política de Saúde Mental do Brasil não seria reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como referência mundial de reforma dos sistemas de saúde mental”. Além disso, Silvio Yasui diz que os atuais desafios nas políticas de Saúde Mental, por serem grandiosos, são promissores.

Por fim, Yasui sentencia ao dizer que, atualmente, “o projeto da Reforma Psiquiátrica está em risco” no Brasil, mas os profissionais atentos a este movimento e a sociedade em geral já estão se mobilizando politicamente para tentar barrar eventuais retrocessos. Confira estes e outros assuntos na entrevista a seguir.

(En)Cena – Qual o panorama, hoje, das políticas públicas nacionais no campo da “Saúde Mental”?

Sílvio Yasui – A política de saúde mental que vem sendo construída há mais de trinta anos apresenta muitos problemas e impasses que são consequência de sua grandeza e complexidade. Sua grandeza está no fato de estar presente em todos os municípios mais importantes do país, com uma rede de serviços que se amplia a cada dia.

E a sua complexidade evidencia-se, pois, a política propõe uma organização das ações nos âmbitos da prevenção e promoção da saúde; no cuidado com uma ampla e diversa rede de ações, na reabilitação e inclusão social, com uma gama de ofertas e experiências que vem se acumulando ao longo dos anos.

Isso faz com que os desafios estejam à altura do que propomos transformar. Temos dificuldades e gargalos no financiamento que é sempre inferior as necessidades; temos de enfrentar a questão de uma atenção mais efetiva e rápida aos momentos de crise; também ao um cuidado a questão das dependências que seja ampla, abrangente e diversa; os modos de cuidar da infância e adolescência ainda carecem de um avanço, especialmente no que se refere a articulação com outras redes; precisamos encarar urgentemente o desafio de fazer projetos de trabalho e geração de renda que de fato gerem renda aos usuários.

Enfim, ampliamos, com a política de saúde mental, a oferta dos cuidados em muitos âmbitos. Desta ampliação surgem, por consequência, os desafios.

Mas é importante frisar que eu vejo estes desafios como bastantes promissores pois colocam na agenda de nossa política de saúde mental um precioso momento de reflexão e mudança.

(En)Cena – Como o senhor vê a indicação de Valencius Wurch Duarte Filho, que claramente tem uma postura pró-manicômio, para administrar a Área Técnica de Saúde Mental do MS?

Sílvio Yasui – Considerando o que expus acima, vejo com uma grande preocupação. Pois o momento exige da gestão da política uma percepção muito clara dos imensos desafios que esta mesma política gerou. Alguém que nunca participou disso e, muito pelo contrário, posicionou-se contrário, não tem, a meu ver, condições de ser gestor desta política.

(En)Cena – Que ação o senhor e outros ativistas brasileiros neste campo irão realizar para tentar se contrapor a este atual momento?

Sílvio Yasui – Isso é um alento. Desde que a notícia da indicação do Valencius tornou-se pública imediatamente iniciou um amplo movimento de resistência e contestação. Primeiro pelas redes sociais e depois ocupando as ruas, Assembleia Legislativas, Câmaras Municipais. Apoios internacionais começaram a chegar desde os primeiros momentos. Isso culminou na ocupação do andar no Ministério da Saúde, onde encontra-se a Coordenação de Saúde Mental, por participantes dos diferentes movimentos sociais que apoiam de modo irrestrito a Política de Saúde Mental. De minha parte, tenho contribuído ajudando a divulgar todas as movimentações nos diferentes locais do país, tenho realizado discussões com os alunos da universidade, colaborado na elaboração de moções de protesto, enfim, tudo o que está ao meu alcance fazer estou mobilizando forças para contrapor e tentar reverter esta situação.

(En)Cena – Nestes anos todos de ativismo, quais as suas principais ações na área de atenção psicossocial? Estas ações estão sob risco?

Sílvio Yasui – Poderia dizer que minha vida profissional desde o inicio está vinculada a área da atenção psicossocial. Desde o momento em que, estudante do segundo ano de psicologia entrei em um manicômio para um estágio voluntário, passando por meu ingresso na saúde pública, trabalhando no Projeto dos Lares Abrigados do Juqueri, depois como integrante da primeira equipe do primeiro Centro de Atenção Psicossocial, o CAPS Luís da Rocha Cerqueira. Depois como gestor regional de saúde mental em Assis, no interior de São Paulo. Depois como supervisor clínico-institucional de alguns CAPS. Tenho um mestrado e um doutorado com o tema da Reforma Psiquiátrica e, por fim, tenho dedicado os últimos 20 anos na formação de psicólogos para o campo da Atenção Psicossocial. Acho que o projeto da Reforma Psiquiátrica está em risco. Não há uma ou outra ação em risco. São as suas bases que podem sofrer ataques que poderão tornar este nosso projeto mais frágil.

(En)Cena – O principal argumento na indicação Wurch Duarte Filho contra as vozes antimanicomiais é que estas são mais ideológicas e menos científicas. Haveria, com isso, o uso de uma falácia para tentar constranger um movimento que, também, tem bases científicas?

Sílvio Yasui – A referência a ser o movimento da Reforma Psiquiátrica ideológica e pouco científica foi feita pelo ministro ao indicar o Valencius. Esta é uma posição conhecida da Associação Brasileira de Psiquiatria, que tenta desqualificar todo o avanço e o reconhecimento da política de saúde mental com este argumento frágil e falso. Fosse apenas um movimento ideológico e pouco cientifica a Política de Saúde Mental do Brasil não seria reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pela Organização Panamericana de Saúde (OPAS) como referência mundial de reforma dos sistemas de saúde mental. E nem teríamos tantos artigos publicados em revistas qualificadas nacionais e internacionais, nem tantos livros e coletâneas. Não teríamos tantos grupos de pesquisas nos principais programas de Pós-Graduação de Saúde Coletiva, Psicologia, Medicina, Enfermagem, Serviço Social, Filosofia dentre outros, todos validados e credenciados pelo CNPq.

É interessante que, apesar desta posição, o ministro indica uma pessoa que não tem uma única publicação em seu Curriculum Lattes. Quem é pouco científico e ideológico então?

(En)Cena – Como a comunidade internacional de psicólogos vem encarando esta nomeação de Wurch?

Sílvio Yasui – A posição de uma boa parte da comunidade internacional da saúde mental, e não apenas da psicologia, é contrária a esta indicação. Por exemplo, Benedeto Saraceno, ex-diretor de Saúde Mental da OMS já se posicionou publicamente contra e conclamou outras lideranças a fazerem o mesmo. Em um evento internacional em Trieste na Itália, pesquisadores de diferentes países produziram uma nota de repúdio a nomeação do Valencius solicitando a sua imediata revogação. Como somos um país com uma política de saúde mental exemplar, as manifestações chegaram de muitos lugares.

(En)Cena – A temática da saúde mental anda lado a lado com a defesa dos Direitos Humanos. Estamos atravessando tempos obscuros, com o atual cenário político nacional? Em que medida as práticas coercitivas e com menos ênfase no aspecto humanista impactam as políticas públicas para o setor?

Sílvio Yasui – São tempos de maior expressão do conservadorismo em muitos campos. De certo modo já sabíamos, quando elegeu-se o Congresso mais conservador desde o golpe militar de 1964. A conta desta composição está sendo apresentada para a sociedade. Não é apenas um movimento do neoliberalismo. Em minha opinião, trata-se de uma exacerbação de um fascismo macro e micro-político muito, mas muito preocupante. O fascismo ignora a existência das diferenças e da diversidade. Só entende o que é supostamente e narcisicamente igual a si mesmo. Cabe a verdadeira sociedade que não está representada no Congresso que é hegemonicamente branco, masculino, heterossexual e empresário, contrapor-se a este movimento, mais além do conservadorismo, fascista. As políticas públicas nascem da construção de valores sociais tais como a solidariedade, a generosidade e o respeito às diferenças. Valores que são estranhos ao modo de ser do conservador. Neste sentido, temo que, se nada fizermos, as políticas públicas poderão se transformar em políticas da exclusão e da violência, como neste exato momento, setores populares estão sofrendo. Há um extermínio promovido pelo aparato repressivo estatal de eliminação de jovens negros e pobres.

(En)Cena – Quais os desafios futuros – e mesmo emergentes – para a rede de atenção psicossocial, levando-se em conta que tais estruturas são, antes de tudo, fruto de diálogo e de múltiplos posicionamentos?

Sílvio Yasui – Fortalecer-se não só como uma política de saúde, mas como um processo civilizador que aposta em uma nova sociabilidade. Na construção de relações sociais permeadas por valores como os que sinalizei acima.

(En)Cena – O que os estudantes e profissionais de Psicologia vêm fazendo para evitar que antigas práticas, com a ênfase manicomial, voltem a rondar o cotidiano profissional?

Sílvio Yasui – O que eles fazem é um pouco reflexo do que nós docentes proporcionamos como ofertas de formação. Se apenas ofertamos estágios em instituições totais e asilares, como os estudantes irão conhecer outros modos e outros serviços? Neste sentido, acho que é uma responsabilidade dos órgãos formadores e dos docentes, ampliar o campo de ofertas de estágios, projetos de extensão universitária dentre outros, para que os alunos possam vivenciar outros modos de atuar a psicologia. Aqui na Unesp de Assis, por exemplo, temos projetos de extensão em CAPS e na Atenção Básica, PET- Saúde, estágios obrigatórios em serviços substitutivos, disciplinas que abordam o tema das políticas públicas, da atenção psicossocial. Isso contribui de modo decisivo para uma formação do aluno de psicologia mas atenta e congruente com os movimentos da reforma sanitária e psiquiátrica.

(En)Cena – O país corre o risco de dar uma virada para o lado da “higienização” de tipos humanos que não considera adequados? Isso, de alguma maneira, pode ser considerado uma forma de eugenia, já praticada por governos autoritários ao redor do mundo?

Sílvio Yasui – Isso, de certo modo, já está acontecendo. Por exemplo, quando algumas cidades adotam estratégias de internação involuntária em massa para os usuários e dependentes de crack que habitam as ruas das grandes cidades, isso é uma clara evidência de uma política de higienização das cidades. A questão a ser temida, é esta prática tornar-se um modo prevalente e hegemônico, e ser adotado como uma política ministerial.

(En)Cena – O que fazer diante de um ministro que já demonstrou tratar com desdém a demanda dos ativistas? Neste processo, será necessário fazer um maior esforço e engajamento político, como expressão de cidadania? Como isso ocorrerá, diante do atual enfraquecimento das esquerdas políticas?

Sílvio Yasui – O cenário político que produziu a troca de ministros, em especial o da saúde, saindo um sanitarista histórico que era o Ministro Arthur Chioro e assumindo o deputado Federal Marcelo Castro, sem nenhuma vinculação com o movimento sanitário, permanece o mesmo. O que significa dizer que há questões políticas mais amplas que envolvem a sustentação e a governabilidade. Neste sentido, acho que é o momento dos movimentos sociais, dos diferentes partidos políticos da esquerda, enfim, de todos os que estejam implicados na construção de uma sociedade mais justa, humana e solidária a produzir uma grande onda de contestação não apenas ao Ministro, mas a este movimento conservador que produzirá efeitos perniciosos às conquistas sociais, duramente construídas e conquistadas nos últimos anos.

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Carta de Palmas

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IV Encontro Do Colegiado De Coordenadores De Saúde Mental Da Região Norte

“Do coração da floresta ao coração do Brasil. Juntos no fortalecimento da saúde mental da Região Norte”

Em 19 de Dezembro de 2011, navegando as águas do Rio Negro, coordenadoras e trabalhadoras de Saúde Mental do Amazonas, Roraima, e Tocantins se reuniram para discutirem a situação da Saúde Mental em seus Estados de origem e organizarem o III Fórum Amazônico de Saúde Mental. Este Fórum aconteceu em Maio de 2012 com a presença dos coordenadores e trabalhadores de Saúde Mental, dos 07 Estados e capitais da Região Norte e Técnicos do Ministério da Saúde.

Neste memorável evento, foi oficialmente instituído o primeiro Colegiado de Saúde Mental Regional do país, como proposição do Ministério da Saúde. Este Colegiado foi composto por coordenadores de saúde mental estaduais e municipais das capitais e principais cidades dos Estados, representantes dos Pólos Indígenas, com apoio técnico do Ministério da Saúde.

No segundo semestre de 2012, em Rio Branco–AC, ocorreu o II Encontro do Colegiado de Saúde Mental da região norte, onde foram traçadas diretrizes frente aos desafios que esta região apresenta no âmbito da gestão, da educação permanente e da atenção à saúde indígena.

Em outubro de 2013, na cidade de Belém do Pará, aconteceu o III Encontro deste colegiado, antecedido pelo Fórum regional de Saúde Mental da Criança e do Adolescente. Mais uma vez, o colegiado cumpriu seu papel, discutindo as questões pertinentes ao fortalecimento da RAPS, especialmente frente a ameaça real do retrocesso institucional que as medidas judiciais tem imposto aos Estados e Municípios quanto ao  recolhimento compulsório e cuidado aos  usuários com necessidades de saúde decorrentes do uso de álcool, crack e outras drogas, num flagrante desrespeito aos direitos e a  dignidade humana, bem como aos princípios do SUS.

Desde sua instituição, este colegiado cumpre seu papel de pensar sobre os desafios e especificidades da região norte, como os da acessibilidade aos territórios, do protagonismo dos usuários e familiares, da participação popular, do controle social, da necessidade de estabelecimento de uma política de recursos humanos que atenda às peculiaridades da Saúde Mental, carreada por uma estratégia de Educação Permanente mais próxima de nossa cultura, do financiamento diferenciado que dê conta dos altos custos dos serviços, do trabalho de pesquisa que priorize o uso de nossa cultura, flora e cuidados tradicionais para a saúde mental dos nossos usuários, e propor ações estratégicas para a implementação e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial na Região Norte, atentando para as especificidades amazônicas,  com o olhar diferenciado às comunidades tradicionais, compreendendo as suas diversidades culturais, defendendo a liberdade no cuidado e a integridade  da pessoa humana, em todos os componentes da RAPS.

Muitos são os desafios bem delineados desde o primeiro encontro no Amazonas e outros surgem no meio do caminho. Alguns, procurando respostas prontas e muitas definições contrárias aos princípios éticos e políticos da reforma psiquiátrica, e como estratégia, entendemos que cabe a nós, militantes do Movimento da Luta Antimanicomial, usuários, familiares e  trabalhadores do SUS/Saúde Mental, a responsabilidade de nos organizarmos para a consolidação e o fortalecimento da Política Nacional de Saúde Mental na Região Norte do País, corroborando com todas as regiões brasileiras numa unidade pátria, para que esta tão combatida política se estabeleça de fato, como Política de Estado.

Reconhecemos que em todo o norte, temos ainda muitas fragilidades: CAPS que ainda não conseguem atender crises e por isso são desacreditados pela comunidade, equipes fragilizadas, falta de apoio e entendimento da política nacional por parte de muitos gestores, recursos financeiros escassos, e até retrocedemos ao cedermos às pressões da justiça com as internações compulsórias de usuários nas comunidades terapêuticas e clinicas de  recuperação privadas sem antes termos o direito de cuidá-los em nossos serviços, estamos longe de conseguirmos atender com dignidade os povos tradicionais e indígenas da região norte e o acolhimento às pessoas privadas de liberdade e em medidas de segurança nos equipamentos de saúde mental ainda é um tabu para todos.

Mas, tivemos avanços em todos os Estados: Fechamos hospitais psiquiátricos e alguns ambulatórios medicalizantes, abrimos serviços novos, fizemos interlocução com os gestores através das pactuações em CIR/CIB e dos conselhos de saúde, nos aproximamos da Atenção Básica através do caminhos do cuidado,  viajamos por este país em duplas no percurso formativo, formamos técnicos especialistas, produzimos vida mesmo em meio a aridez dos processos políticos[1].

Desde o dia 04 de novembro de 2014, o Tocantins teve a honra de receber os participantes do IV Encontro do Colegiado de Saúde Mental da Região Norte (Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, Tocantins, Capitais e DSEIS)[2] e o VIII Encontro do Colegiado Gestor de Saúde Mental do Tocantins no ano de 2014.

Durante o evento, refletimos sobre os desafios, avanços e apontamos novos rumos para o fortalecimento das relações entre as Redes de Atenção à Saúde e a Rede Intersetorial nos territórios, visando o cuidado em Saúde Mental.

Os temas percorridos foram acerca de: Gestão e Planejamento da RAPS para a Região Norte, Complexidades Amazônicas, Fator Amazônico na Saúde Mental, Educação Permanente (caminhos do cuidado, Percursos Formativos, CAPS Escola, projetos de pesquisa), “Programa Crack, é possível vencer”, Saúde Mental e Saúde no Sistema Prisional, Saúde Mental em contextos Indígenas.

Participaram do evento, trabalhadores e gestores das Redes de Atenção à Saúde com o foco na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que validaram através desta Carta de Palmas, os

seguintes encaminhamentos norteadores da RAPS em toda a região norte brasileira nos próximos anos, a saber:

  • Revisar os valores de repasses de incentivo e custeio dos componentes da RAPS pelo Ministério da Saúde e o aplicar o estabelecimento de normatização para o Cofinanciamento dos Estados e Municípios.
  • Compor um grupo de trabalho com atores locais (gestores, trabalhadores, usuários e sociedade civil) e Ministério da Saúde para estudo a respeito do fator amazônico como indicativo de financiamento diferenciado da Saúde para a Região Norte;
  • Incorporar as diversas ferramentas de monitoramento e avaliação existentes no SUS no âmbito da Saúde Mental como estratégia de qualidade de serviço;
  • Qualificar os indicadores de pactuação utilizados nas Comissões (CIT, CIB, CIR) para avaliação da cobertura da Rede de Atenção Psicossocial.
  • Fortalecer o formato do apoio institucional do Ministério Saúde de forma integrada com outras redes nos territórios.
  • Fortalecer a função do apoiador da RAPS do Ministério da Saúde para a Região Norte.
  •  Instituir o Apoiador local do Ministério da Saúde, por Estado, que trabalhe o conteúdo da RAPS, nos moldes da Política Nacional de Humanização e da Rede Cegonha.
  • Favorecer a apropriação de instrumentos para fortalecimento da atenção básica, compreendida como ordenadora do cuidado no território, como por exemplo, a planificação (estratégia da atenção básica promovida pelo CONASS, que já vem sendo implementada no estado do Pará) – (Anexo I).
  • Construir estratégias de mobilização dos trabalhadores que estão participando do Percursos Formativos, Caminhos do Cuidado ou outros processos de qualificação no campo da saúde mental, álcool e outras drogas para participar do matriciamento conjunto da atenção básica.
  • Fomentar ações de intercâmbio – como o Percursos Formativos – entre os próprios serviços e redes da região Norte.
  •  Estender os Caminhos do Cuidado para os demais profissionais das equipes de atenção básica.
  • Assegurar que os serviços da RAPS sejam campo formador e campo de prática no contexto do ensino, da pesquisa e da extensão, reforçando a importância de que o fluxo normativo sobre pesquisa nos serviços da rede seja seguido.
  •  Ampliar o número de apoiadores do Projeto Redes/SENAD/MJ, para todos os municípios aderidos ao Programa Crack, é possível Vencer
  • Fortalecer o controle social como estratégia de sustentabilidade das Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas nos territórios.
  • Garantir que os Fóruns Intersetoriais de Saúde Mental, sejam disparados pelos Grupos Condutores Estaduais e Regionais da RAPS, em parceria com Coordenações Estaduais e Municipais de Saúde Mental, Coordenações de serviços da RAPS, Referências de Saúde Mental nas Regionais de Saúde, Articuladores de Rede da SENAD e apoiadores do Ministério da Saúde considerando sempre a participação e inclusão de usuários, familiares e trabalhadores dos serviços.
  • Assegurar a estratégia das Assembléias dos CAPS como dispositivos de fortalecimento dos Fóruns de Saúde Mental Intersetorial nos territórios, como previsto na PT 3088/2011.
  • Criar estratégias para minimizar os impactos negativos das constantes mudanças na gestão das Secretarias de Saúde no que se refere às pactuações locais, regionais e estaduais da Política de Saúde Mental, álcool e outras drogas.
  • Articular a execução de estratégias interfederativas nos territórios para regulação do acesso e fluxo dos usuários às Comunidades Terapêuticas financiadas com recursos públicos, articulando Saúde, Assistência Social, Direitos Humanos e Justiça, considerando o projeto terapêutico singular integrado à rede de cuidado intersetorial.
  •  Promover Encontro da Região Norte de Saúde, Sistema Prisional e SINASE para discutir as necessidades da região diante da questão da PNAISP e da EAP e da especificidade do cumprimento das medidas sócio-educativas. Com indicativo da Coordenação de Saúde Mental Estadual para realização no Pará em 2015.
  • Promover, por meio das áreas técnicas de saúde mental e saúde prisional, a qualificação das equipes que atuam dentro do sistema prisional, visando a articulação com os serviços de saúde da rede.
  • Criar espaços de discussão em conjunto com os gestores dos DSEIs e os gestores de saúde mental sobre atenção à crise e medicalização considerando aspectos etnográficos e o protagonismo das populações indígenas com as equipes de saúde mental nos territórios.
  • Garantir o acesso nos serviços de saúde mental para os indígenas que fazem uso de medicação controlada para reavaliação das necessidades de manter as prescrições e para a construção dos projetos terapêuticos singulares com a participação da família e da comunidade.
  • Fortalecer a rede de serviços de saúde nos territórios impactados negativamente por grandes empreendimentos, considerando a necessidade das populações indígenas e desenvolver projetos específicos para reduzir as vulnerabilidades de risco individual, social e comunitário de acordo com as realidades locais.
  • Estimular a construção de projetos de Formação e Educação permanente para as equipes de saúde indígena a partir das experiências dos projetos: “Caminhos do Cuidado” e “Percursos Formativos na RAPS”.
  • Priorizar o matriciamento entre às equipes multidisciplinares de saúde indígena que atuem dentro dos territórios;
  • Favorecer o acesso aos leitos integrais de saúde mental, álcool e outras drogas nos hospitais gerais para as populações indígenas pactuando a ordem de prioridade na regulação das vagas a partir da dimensão da equidade;
  • Promover o cuidado considerando aspectos interculturais especificamente os saberes e práticas da autoridade indígena em saúde (exemplo: Pajé)
  • Estimular um encontro interfederativo da Região Norte para discutir as necessidades relacionadas à saúde indígena e saúde mental.
  • Pactuar como indicativo, a realização do 5º Encontro do Colegiado de Saúde Mental da Região Norte na cidade de Macapá – AP em 2015.

Nossa tarefa é enorme e desafiadora e este já é o encontro da maturidade da coragem, e da determinação – “Se não nos deixam sonhar… não os deixaremos dormir”. – Eduardo Galeano

Palmas, 07 de novembro de 2014.


[1] Texto de abertura do IV ENCONTRO DO COLEGIADO DE SAUDE MENTAL DA REGIÃO NORTE, lido pela Coordenadora Estadual de Saúde Mental do Tocantins Ester Cabral

[2] Os representantes dos Estados do Acre e Rondônia não estiveram presentes no evento.

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51 – O meu problema

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Nota: O texto faz parte de uma oficina literária realizada no CAPS AD de Palmas/TO, onde os usuários do serviço são convidados a contar estórias – reais ou imaginárias – do seu cotidiano.

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Sonhos em forma de balões no CAPS-AD

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“Os doentes mentais são como beijaflores:
nunca pousam,
ficam sempre a dois metros do chão.”
Arthur Bispo Rosário

PREFÁCIO

Mais um dia na vida de um acadêmico de Psicologia em visita a um CAPS AD …

Esse parece ser o início mais provável para o diário de campo de um universitário.

E tem mesmo tudo para ser.

Melhor dizer: Tinha!

NOTA DE APRESENTAÇÃO

Como um CAPS comemora Dia Mundial da Saúde Mental?

Sinceramente eu não sei.

Mas no CAPS AD de Palmas – TO, o dia 10 de outubro não é tão diferente dos demais.

Lá a instituição tem o objetivo de proporcionar aos usuários do serviço algumas atividades diferenciadas, mas a rotina deles já é tão cheia de novidades e reviravoltas diárias, que a programação teve um impacto mais significativo para um grupo de acadêmicos de psicologia que ali estavam.

PRÓLOGO

Atividades como: Artesanato; Oficina de Literatura; Oficina de Arte; Oficina de Reciclagem; Oficina de Beleza; Massagem etc., eram algumas das atividades – dentre as várias – de menu que era oferecido os usuários, familiares e acadêmicos presentes.

Por mais que possa parecer o contrário, essas atividades não eram encaradas como algo novo para aqueles usuários. Que não se engane quem pense que houve desinteresse por parte deles, pelo contrário, eles e seus familiares estavam plenamente engajados em todas as oficinas, de acordo com os gostos e interesses particulares, sem nenhum descontentamento.

OS SONHOS EM BALÕES

Havia um grupo de acadêmicos de psicologia, que intimamente pouco se conheciam, mas traziam juntos toda a inexperiência da vivencia dentro de um serviço de atenção psicossocial.

A propósito, este é um velho desafio da acadêmica: promover aproximação entre ensino e serviço, ciência e comunidade.

Para esse grupo de acadêmico sim, tudo ali era novidade!

E não era de surpreender o espanto deles em ver nesse público uma harmonia por poucos grupos experimentada.

O clímax das atividades do dia se deu com a participação dos acadêmicos, usuário, técnicos e familiares na dinâmica: “Um sonho no Balão”.

A dinâmica em grupo funcionava assim: um coordenador organizou todos os participantes em círculo. Em seguida, distribuiu um balão e um pedaço de papel onde todos deveriam escrever seu maior sonho. Este sonho deveria ser depositado dentro do balão que seria enchido e amarrado.

O objetivo do grupo era caminhar em círculo dentro do espaço preestabelecido pelo coordenador, jogando o balão para cima evitando que ele estourasse e que o sonho se esvaísse.

A primeira parte da atividade foi executada com algum esforço, e, por mais que neste momento alguns balões foram estourados, seus respectivos donos puderam recuperar seus sonhos enchendo um novo balão.

Terminado esse momento da atividade o grupo se reuniu para uma reflexão em torno da dinâmica.

Dentre os relatos colhidos, em geral, os usuários relataram a estrema dificuldade que foi ter que sustentar seus próprios sonhos no ar sem deixar eles caírem. Algumas vezes, eles precisavam da ajuda uns dos outros para prosseguir com a tarefa e não deixar seus sonhos se esvaírem.

Lembro-me de uma fala que dizia: “meu sonho sempre passa pelo sonho dos outros. Não posso prosseguir sozinho”.

O próximo passo foi cada um amarrar seu sonho no calcanhar e caminhar pelo espaço novamente, agora evitando que o balão fosse pisado e que o sonho estourasse junto com o balão.

Aqui deu-se a confusão. O próprio chão com pedras (as mesmas e velhas pedras no caminho) acabava estourando o balão.

Todos estavam preocupados em preservar seus sonhos. Os semblantes – sisudos – demonstravam um claro descontentamento quando seus balões estouravam.

Num determinado momento, em meio a tantos murmúrios de desagrado e insatisfação pelo sonho estourado, uma das participantes começou a resgatar do chão os pedaços de papeis que carregava os sonhos de cada um, como se catasse o sonho dos outros para si. Já outros participantes se isolavam.

OS SONHOS QUE RESTARAM

No final uns poucos sonhos restaram.

E seus donos orgulhosos sustentavam o balão como quem carregava um troféu. O sonho almejado que persistiu até o final.

A mensagem foi simples e clara: É difícil carregar seu sonho. Por menor que ele possa parecer, ele é seu tudo. Vale todos os esforços para mantê-los intactos. E, ainda assim, quando ele – por algum motivo – exaurir, não significa que tenha chegado o seu fim.

Mesmo que seja o instante final, você pode escolher um novo sonho, ou mesmo lançar mão doutro antigo, e persistir. Continuar.

A SUPRESA

Veio quando o coordenador da atividade não entendeu o motivo de os usuários do CAPS não sabotarem uns aos outros.

O esperado era que eles estourassem seus balões entre si.

Mas aconteceu o inesperado: os integrantes do grupo se ajudaram mutuamente, e juntos, preservaram seus sonhos.

Qualquer outro grupo se sabotaria, mas aquele grupo.

As perdas, dores, recaídas e desafios que aqueles usuários e seus familiares enfrentam dia a dia para enfrentar a dependência química os ensinaram – a duras perdas – que para conseguir alcançar seus objetivos, eles precisavam contar uns com os outros.

A coesão grupal daqueles usuários estava no esforço mutuo que eles fazem diariamente para manterem-se (eles e suas respectivas redes de apoio) livres da dependência química.

CAPÍTULO FINAL: UMA LIÇÃO DE VIDA

Aquele grupo dos loucos, desajustados, anormais, dependentes químicos, tinham muito mais a ensinar a nossa sociedade hipócrita, preconceituosa e amoral do que nosso orgulho nos permite aceitar.

Não havia nada de novo no que os usuários daquele serviço nos mostraram.

Amizade, gratidão, humildade, serenidade, companheirismo e respeito, são valores tão humanos como outro qualquer. Mas é que, quando expressados de modo tão sincero, tira da posição de conforto qualquer pessoa.

EPÍLOGO

Se nós permitirmos olhar além do que esperamos, veremos o inimaginável.

 


Fotos: Hudson Eygo

Nota: Todas as atividades foram realizadas no CAPS AD de Palmas/TO em 10 de outubro de 2014.

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História da Loucura (1961) de Michel Foucault

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História da Loucura (1961) de Michel Foucault: a retomada de um livro-artefato para avançarmos frente os desafios da Reforma Psiquiátrica Brasileira

Ao recebermos o convite para contribuir com a série “Poder – Subjetividade – Saber: diálogos com Foucault”, especificamente sobre a primeira grande obra do autor, História da Loucura, pensamos em fazê-lo sem cair numa espécie de resenha de uma obra já tão comentada.

Enquanto livro-ferramenta, há várias formas de adentrar a obra, folheá-la e se envolver com as reflexões que o livro proporciona; ou dali tirar ferramentas-conceituais, analíticas e problematizações para transversalizar com outros campos discursivos e práticos.

Os usos de uma obra, como bem nos ensinou o filósofo, podem variar conforme as táticas ou estratégias de cada campo de problematizações com que estamos implicados. Neste caso, registramos que o nosso campo de implicação é a Reforma Psiquiátrica brasileira, em sua luta por uma sociedade sem manicômios.

Conforme consta nos ditos e escritos do próprio Foucault, e reflexões de vários comentadores de sua obra, no geral, Loucura e Desrazão. História da Loucura na Idade Clássica (1961) não toma para si uma história da verdade sobre a loucura, ou de sua constituição como objeto de um determinado campo de saber. É sobre a história do silenciamento da loucura, ou mais precisamente:daquilo que se dizia e fazia em planos diferentes do discurso médico em relação à loucura, o que interessava ao filósofo.

Assim, a obra História da Loucura trata sobre as experiências limites da loucura, expressa em vários campos (pintura, literatura, filosofia, no âmbito moral e legal, social, dentre outros) e épocas; trata de como as compreensões e representações destas experiências percorreram determinadas linhas de continuidade e descontinuidades até encontraras formas constitutivas do saber psiquiátrico, que em certa medida agencia-se com um plano de racionalidades,que também percorre e atravessa outros saberes e práticas, inclusive os demais saberespsi,formando um dispositivo que possibilita a moderna condição de inteligibilidade, dizibilidade e verificabilidade de como nos pensamos homens sãos, normais, e por contraste, nos diferenciamos do sujeito da loucura.

É com base nessa trilha argumentativa que o filósofo nos faz ver ao longo de determinados períodos históricos as camadas discursivas e suas condições de aparecimento de determinados saberes e práticas em torno da loucura. Aliás, como gostava de referir Foucault em muitas entrevistas que comentou sobre a obra, “laço entre razão e desrazão que autoriza a primeira a produzir um discurso de saberá respeito da segunda” (Revel, 2011, 66-67). Portanto, a obra trata sobre as modificações dos discursos sobre a loucura.

Mas não é pelo que consta na obra que gostaríamos de destacar a História da Loucura. Sempre quando perguntado sobre a recepção da sua primeira grande obra, o filósofo referia-se a ela com certo “pesar” em torno do silenciamento e recepção difícil por parte de alguns setores da academia e da crítica em geral.

Os psiquiatras, por outro lado, na figura de Henri Ey, não apenas não silenciaram, mas contra-atacaram Michel Foucault convidando-o para participar das Jornadas de Evolução Psiquiatra em Toulouse. O objetivo do convite era rebatê-lo sob argumento do discurso ideológico, com o qual, na opinião dos psiquiatras, o que o filósofo fez, com sua História da Loucura, foideclarar uma guerra ideológica contra a psiquiatria. Na opinião dos psiquiatras, o filósofo faz uso da história de maneira ideológica para tentar invalidar sua ciência fazendo da loucura um produto cultural. O que mais irritou tais senhores do saber foi o fato de Foucault ter colocado em questão a verdade e a pretensão natural e científica da Psiquiatria, além de sua respeitabilidade médica revelando práticas, muitas vezes, coercitivas (Eribon, 1990). Assim sendo, Foucault acabou declinando do convite, por entender que o debate sendo encaminhado a partir do plano ideológico reduzia em muito a discussão, e por isto foi acusado de “psiquiatricida” (Colucci, 2014).

Tais enfrentamentos, internos e externos à obra, em relação ao solo de verdade encarnado pelo discurso psiquiátrico, da norma, resultou na associação do filósofo ao movimento antipsiquiatria. Logo, História da Loucura ganhou espaço como obra-ícone nos movimentos de contestação em 1968, ao lado dos escritos dos antipsiquiatras Szasz e Bettelheim que trabalhavam nos Estados Unidos, Laing e Cooper na Grã-Bretanha e Basaglia na Itália; ou mais tardiamente, como diria Revel (2011), com o AntiÉdipo de Deleuze e Guattari, a partir de escritos e discursos que contestavam o vínculo do saber, do conhecimento, com práticas de assujeitamento.

História da Loucura coloca-nos então o hospital como paradigma das análises das relações de poder na sociedade no final de 1960 e nos anos 1970. O hospital psiquiátrico passou, na verdade, a ser alvo de críticas pelo movimento da psiquiatria institucional desde 1940, debate este que ganhou força no maio de 1968, e posteriormente seguiu após 1970 com o forte “debate políticoe social denunciando os internamentos abusivos, as condições de vidadesumanas no interior dos centros de tratamento, as consequências, a longo prazo, dos neurolépticos”, a suspensão de direitos, dentre outros (Bert e Artières, 2011).Porém, os elementos críticos em torno do hospital e suas nuances foram catalizados e convulsionados, com maior monta, semelhante a um “cataclisma”, a partir de a História da Loucura.

Nesse sentido, para o filósofo, “antipsiquiatria é tudo o que recoloca em questão o papel de um psiquiatra encarregado outrora de produzir a verdade da doença no espaço hospitalar” (Foucault, 2014, p. 69). Porém, antes de avançar nesse aspecto, para que possamos destacar alguns fragmentos da obra em questão, como aposta para reposicionarmos nosso Movimento de Reforma Psiquiátrica, cabe uma digressão.

Como referimos antes, apesar de História da Loucura ser uma obra em que a linha analítica se dá no campo da arqueologia, mas já ali, Foucault construía as bases do que mais tarde iria aprofundar em seus estudos genealógicos, a partir das relações de poder, mirando assim na pretensão do poder psiquiátrico e da própria figura do médico em ser o depositário da verdade; ou seja, de ter o domínio de uma verdade estabelecida a partir das evidências de uma ciência médica e de uma pretensa normalidade, que exigem um reconhecimento universal (Colucci, 2014).

Talvez um dos maiores legados de Foucault deixado por toda sua obra, e já presente em a História da Loucura, é exatamente o fato de que essa pretensão de saber sobre a verdade do outro, ou de ter acesso ao outro de maneira a desvelá-lo, é o quedeve ser questionado.Tal fato figura para nós como uma “bomba” no colo dos saberes psi, com os quais incluímos além da psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, outros diversos que lidam com o terreno das práticas psi. Afinal, até que ponto, mesmo sob a sombra do discurso da Reforma Psiquiátrica e da Atenção Psicossocial, estamos dispostos a abrir mão do lugar da vontade de verdade sobre o outro, seja para desvelá-lo em seus segredos, seus mistérios, sua doença e outras formas de viver;e caso não consiga, seja pelo menos para dizer,a partir do campo dos direitos, qual é o melhor local e forma para alojá-lo, para cuidá-lo e para tê-lo conosco ou com os seus?

A modernidade fundou um tipo de encontro-necessidade em que o saber/poder do médico (e todos os outros) tem algo a dizer sobre o status da doença do paciente. Sendo que este,busca aquele, submetendo-se a este jogo de poder,para aliviar suas dores e desatinos. Ou seja, tem-se aqui um jogo de posições fundante deste lugar de verdade que a psiquiatria representa: ao mesmo tempo que o louco é fixado em enunciados que o têm como despojado de poder e de saber sobre sua doença, resta-lhe a posição de subordinação e passividade frente àquele que sabe, o profissional.

Todos, independentemente de sermos manicomiais ou não, somos herdeiros desta tecnologia que nos constitui operadores de determinado saber/poder. Este talvez seja o maior legado que a História da Loucura nos trouxe. Assim entendemos que o núcleo central da obra traz à luz não apenas a necessidade de uma analítica dos planos discursivos acerca da loucura em diferentes épocas e campos; mas uma analítica do poder, como uma analítica sobre o sujeito e sua subjetivação.

Como nós, operadores dos serviços e da política de saúde mental, nos subjetivamos meio a essa tecnologia de saber/poder, entre aquele que pretensamente “sabe” algo e aquele que nada sabe, mas que ocupa a posição de passivo a espera daquele que “sabe” uma resposta?

Não caberia aqui pensarmos alguns elementos daquilo que o filósofo, mais à frente, chamará de ontologia do presente? Foucault já ensaiava em nos alertar com sua História da Loucura a pensarmos sobre o que estávamos a fazer de nós mesmos na atualidade?

Trazendo tais questionamentos para nossa atualidade: o que estamos fazendo de nós mesmos, em nosso presente como agentes, profissionais, operadores deste aguerrido movimento chamado Reforma Psiquiátrica?

Nos últimos anos encontramos na realidade brasileira enormes desafios para efetivar os princípios da reforma psiquiátrica em toda sua radicalidade. Avançamos na reversão do parque manicomial, substituindo-o por uma rede (ainda não) integrada de serviços, com foco nas ações extra-hospitalares e comunitárias, que pretendem articular a Estratégia Saúde da Família (ESF), a Estratégia de Atenção Psicossocial (EAPS) e outros níveis de atenção de maneira continuada. Para sustentarmos tal horizonte é necessário o empreendimento de dois outros movimentos que entendemos imprescindíveis à Saúde Mental. O primeiro se refere ao campo técnico-assistencial, que exige práticas pautadas no paradigma psicossocial. Ou seja, visa construir uma sólida base de sustentação prático-profissional, inclusive com apoio e suporte institucional, para adoção de ações acolhedoras e resolutivas com a perspectiva da garantia da continuidade do cuidado. Para tanto, faz-se necessário desinstitucionalizarmos o modo como operarmos nossas práticas ainda constituídas do lugar de saber/poder sobre o outro, bem como nos dessubjetivamos do modo como nos constituímos profissionais nesta relação. O segundo movimento trata do campo sociopolítico, que pede atuações macro e micropolíticas em conjunto com os movimentos sociais para consolidar a Política Nacional de Saúde Mental/PNSM. Mas como operar neste campo se nossas práticas profissionais não estão implicadas com tal horizonte?

O fato da Reforma Psiquiátrica ter se constituído no Brasil como um campo de muitas lutas e disputas políticas, dada sua potencialidade reivindicatória, torna-se espaço propício à análise do modo como os trabalhadores em geral têm engendrado sua “vontade política” (Foucault, 2010, p. 214). Ou seja, como temos nos movimentado, participado e interferido no processo reformista? E atuado em termos técnico-prático e ético-político, enquanto trabalhadores da saúde mental? Estamos satisfeitos com a rede psicossocial que temos? Com alguns direitos, mesmo que mínimos, conquistados? A troco de quê? Submetendo-nos a que nível de normalização?

Outrossim, destacamos que já em a História da Loucura o filósofo indica a necessidade de transversalizar a tríade analítica Saber – Poder – Subjetividade, como um ato ensaístico, de experimentação do seu pensamento,o qual mais tarde resultará em seus estudos do poder, da ética e de si.

Deste modo, o filósofo desta série, encaminha-nos com sua História da Loucura para o campo da ética, de modo a fazer-nos um convite à prudência e à problematização do nosso presente, em que temos nos transformado. Nesse aspecto, se quisermos avançar no debate em torno da loucura/doença mental precisamos ir além das denúncias e discussões que se fixam na centralidade da figura do hospital, reafirmando sua imagem de coerção, como se nos chamados espaços/serviços abertos estivéssemos isentos de tal tecnologia de poder.

Há uma mecânica que precisa ser evidenciada: a relação entre verdade e subjetividade que está em jogo no dispositivo psiquiátrico ou nos demais saberes e práticas psi também em jogo neste campo.

É no Curso “O Poder Psiquiátrico”que o filósofo irá aprofundar essa ideia. Assim, parte do entendimento de que o sujeito não é completamente passivo (Foucault, 2006). Nesse sentido, percebe na formação ativa do paciente, no palco de enfrentamento com o médico, relações que podem configurar-se por aquilo que chamará de contrapoderes, ou mais na frente, em outro curso, denominará: contracondultas (Foucault, 2008).

Não podemos esquecer que foi a partir do lugar de doente, considerando o fato de que o enfermo mental ao reconhecer no médico aquele que sabe sobre o seu mal, sobre sua doença, tal operação trouxe, contraditoriamente, à loucura para o campo dos direitos. Se sou doente, tenho direitos. A medicalização tornou o louco cidadão de direitos. “A restituição dos direitos foi possível a partir do momento em que o indivíduo passou a ser normalizado numa identidade de doente mental” (Colucci, 2014, p.289).

Aqui é o ponto que o legado de Foucault nos coloca em franco incômodo, fazendo com que possamos nos deslocar de nossas posições, certezas, para que possamos desacomodar nosso olhar e lugar deste terreno tão contraditório, complexo e heterogêneo que a Reforma Psiquiátrica. Como, na Saúde Mental, podemos nos dessubjetivar desse lugar em que a modernidade nos configurou entre o direito e a doença, a soberania jurídica e a normalização disciplinar, em torno da loucura?

Para finalizar, partiremos de quatro concepções de que o filósofo, em um texto recém publicado, tipifica a antipsiquiatria. Mas antes, um alerta: para o filósofo existem “tantos tipos de antipsiquiatria quanto há de possibilidades de modificar essa relação de poder que existe e que foi historicamente instaurada entre o psiquiatra, o doente e a produção da loucura na verdade” (Foucault, 2014, p.70).

Assim, Foucault chamará de antipsiquiatra, primeiramente, aquela prática que tenta reduzir ao máximo a produção da loucura em sua verdade, “para deixar de alguma maneira, face a face e no estado nu, o doente e o médico” (2014, p. 70) e dali, a partir de tal experiência fenomênica,extrair novos sentidos, compreensões e práticasa partir desse processo de alteridade radical, que é o encontro com a loucura.

Também chamará de antipsiquiatria, uma segunda forma, que em vez de agir para suprimir o momento da produção da loucura, tenta tornar tal produção mais intensa, ajustando as relações de poder entre médico e o doente, de modo a prevalecer tal relação, afastando-se de todas as outras (administrativa, política, institucional etc.), restando apenas o doente e o psiquiatra, enredados numa relação mais livre, contratual, para que as relações, desejos e poder também se criem entre eles. Deste modo, semelhante a experiência psicanalítica, o médico não mais intervém como instância de autoridade autônoma, avaliando do exterior do doente, mas de dentro, do entre, da relação, a partir do silêncio, das cadeias da linguagem, do manejo das relações de poder que aí circulam ou são produzidas, das posições subjetivas, da atividade inconsciente entre um e outro, do que ali se singulariza, para alcançar uma verdade (ou as verdades) que são do paciente ou das relações que este tece com o mundo e consigo, e não “a verdade (universal) da doença”.

Como terceira forma, chamará de antipsiquiatria a ação de tentar reduzir a zero a relação de poder com o doente, ou seja, de colocar em questão nosso etnocentrismo, nosso lugar de reconhecimento entre os iguais,de sujeito normal, são, que sabe sobre o outro. Colocar em questão tais posições everdades para deixar a loucura cumprir o seu caminho, para que ela, que anteriormente era tida como objeto, possa trazer as verdades sobre o como e para quê foi produzida;talvez, um caminho de deixar falar a loucura, de passar do lugar de objeto, mudo, para o de sujeito.

Mas seria uma quarta forma que mais chama a atenção do filósofo. Trata-se da antipsiquiatria que coloca em questão, que coloca às claras, todas as relações de poder, sem a ingenuidade/pretensão de chegar ao grau zero das relações de poder. Essa antipsiquiatria não nega o poder ou quer vencê-lo. É uma antipsiquiatria que sinaliza como as relações de poder operam, inclusive em nós, também incluídos nestas relações. Interessa, portanto, acompanharmos para intervirmos sobre como as relações de poder tramam a existência do doente e sua loucura, ao mesmo tempo em que tramam a nós mesmos como sabedores do doente e sua loucura. Isso requer um trabalho de luta e ação política que tenta atentamente desatar as diversas relações de poder que fabricam, que tecem nossa existência, produzem nossas subjetividades, e desenham as linhas e as condições em torno das possibilidades para que possamos nos pensar e conceber sujeitos.

Assim, o que está em jogo são as contracondutas que podemos operar em nossas relações, de si para consigo e para com o outro, espécie de estilística de nossa existência, para não ocuparmos determinados lugaresque reafirmam posições estabelecidas na trama do saber/poder, entre aquele que sabe sobre um outro, inclusive para garantir determinados direitos. Talvez este seja o “antídoto” necessário para retomarmos a potência de nos movimentarmos num terreno tão frágil ou precário entre os dois planos de que falávamos anteriormente e que pautam nossas relações com a loucura:o direito e a normalização. Somente a experimentação da prática poderá nos responder!

Porém, isso exige uma ação implicada numa ética da não dominação. Não do grau zero das relações de poder, pois onde há relação, há poderes. Implicarmo-nos com uma ética da não dominação, talvez seja o que o próprio Foucault propôs, parafraseado por Colucci (2014), ao referir sobre a necessidade de tecermos uma prática que possa expressar uma atitude profissional e militante na Saúde Mental, que derrote os microfascismos que nos habita. Esse é o cuidado para não figurarmos como os “novos” burocratas da Reforma. E assim, talvez, potencializar novas e “velhas” lutas Por uma sociedade sem manicômios!

 

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Reforma Psiquiátrica: da Psiquiatria Democrática à Antipsiquiatria

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A loucura se institui como produção social e principalmente como produto da ciência psiquiátrica com Pinel. Em seu nascimento, a psiquiatria vê no louco um ser socialmente incapaz, e junto com a justiça o destitui de sua humanidade.

Os transtornos mentais são, nesse período, catalogados, e diferenciados, enquanto que o paciente mental é institucionalizado e mantido em manicômios sobre o tratamento moral proposto por Pinel. Essa prática perdura por no mínimo dois séculos, quando a humanidade levada pelos princípios de igualdade, liberdade e fraternidade herdados da Revolução Francesa, pelos resquícios da Segunda Grande Guerra, e pela vergonha dos experimentos nazistas, começa a repensar sua práxis, e modo de ver a loucura.

Esse movimento sociocultural atingiu proporções globais e inspirou mudanças em vários setores das organizações sociais, inclusive nas ciências e no modo em como se fazer ciência. No campo da psiquiatria esse movimento deu vazão ao surgimento do Aconselhamento Psicológico, e das escolas filosóficas do Existencialismo e da Fenomenologia.

A psiquiatria sofre então uma mudança em estrutural: nascem as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, um modo de superação do hospital psiquiátrico, dando uma ênfase nas relações comunitárias que se instauravam no seio dos grandes sítios, e nas atividades de campo (trabalho), que tinham cunho terapêutico, e função de recuperação dos pacientes.

Inspiradas pelas Comunidades Terapêuticas, mas ainda com a visão institucionalista dos hospitais psiquiátricos, surge na França (1950) a Psicoterapia Institucional e a Psiquiatria de Setor, ambas tinham como objetivo promover a recuperação da função terapêutica da Psiquiatria.

Paralela a esse movimento, na década de 1960, surge nos EUA a Psiquiatria Comunitária, propondo uma mudança na forma como ver a doença mental, numa tentativa de aproximar a psiquiatria da Saúde Pública, a Psiquiatria Comunitária inova ao propor a prevenção da doença mental.

Até aqui, nenhum movimento, criticava a Psiquiatria em si, apenas propunha(m) novo(s) modo(s) de tratamento. Com o nascimento da Antipsiquiatria na Inglaterra, é que se dá o primeiro movimento mais eficaz no combate à prática psiquiátrica. A Antipsiquiatria vem como uma crítica à estrutura social conservadora daquele século.

Segundo o movimento da Antipsiquiatria, a loucura não existe! É uma produção social: a sociedade promove a loucura, e numa tentativa de se livrar de sua culpa tenta tratá-la, enquadrá-la.

Esse movimento buscava uma reposta para a produção da loucura, diferente da visão proposta pela psiquiatria até o momento. Segundo eles, já que a loucura era um fator social não necessitaria de tratamento. A Antipsiquiatria ainda defendia que o delírio, por exemplo, era uma tentativa do individuo de mudar sua realidade, e por esse motivo, não deveria ser contido.

The Art of Living – Rene Magritte (1967)

 O movimento seguinte, contrário à Antipsiquiatria, não nega a existência da doença mental, do contrário, e propõe um novo modo de olhar para o fenômeno da loucura. A Psiquiatria Democrática, nascida na Itália no final da década de 1960 e inicio da década de 1970, provoca uma mudança epistemológica e metodológica entre o saber e a prática psiquiátrica. Agora, a loucura não se restringe ao paciente e ao médico, mas, para além da psiquiatria, ela engloba o sujeito, sua família, à comunidade e os demais setores sociais.

A psiquiatria Democrática vê no hospital psiquiátrico um meio de segregação e institucionalização da loucura e do paciente psiquiátrico, contrapondo a isso, ela busca um novo olhar sobre o sujeito, partindo de sua individualidade e necessidades particulares, visando um trabalho de reinserção social do paciente psiquiátrico, rompendo com a lógica hospitalocêntrica. Para Franco Basaglia, precursor do movimento na Itália, a psiquiatria Democrática não nega a doença mental, mas muda o foco, da doença para o sujeito, provocando na sociedade um novo modo perceber a loucura.

 

Para Saber mais…

AMARANTE, P. (coord.). Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998. Disponível emhttp://www.revistas.ufg.br/index.php/fen/article/view/721/781(acesso em 18/11/2012).

http://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalapip/A_Construcao_da_Mudanca_nas_Instituicoes_Sociais…_-MSB_Goulart.pdf (acesso em 18/11/2012).

http://dradnet.com/historia_da_reforma_psiquiatrica.html(acesso em 18/11/2012).

http://www.neurobiologia.org/ex_2009/Microsoft%20Word%20-%2011_Ribas_Fred_et_al_Rev_OK_.pdf(acesso em 18/11/2012).

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