Dirigido por Gustav Machatý, o filme Êxtase (1933) acabou envolvido em algumas polêmicas porexibir justamente aquilo que o próprio título já denuncia: o gozo sexual. Tratada de forma extremamente sutil, a cena se detém, basicamente, no rosto da bela atriz austríaca Hedy Lamarr (ainda como Hedy Kiesler nos créditos) durante o momento de prazer. Certamente, para os dias atuais, o arrebatamento de Lamarr dificilmente causaria o incômodo que gerou na época de seu lançamento. Afinal de contas, o auge da excitação sexual é apresentado atualmente de modo explícito não apenas no cinema, mas também através de outras formas de arte que, inclusive, são disponibilizadas e facilmente acessadas no mundo virtual. Como exemplo disto temos o trabalho em vídeo do fotógrafo norte-americano Clayton Cubitt, intitulado de Hysterical Literature (Cubitt, 2013). Filmada em preto-e-branco, a série consiste em mostrar como diferentes mulheres reagem, durante a leitura do trecho de um livro, quando são estimuladas sexualmente até atingirem o orgasmo – supostamente sem fingimentos.
Sem adentrarmos na interessante questão da representação do prazer feminino na arte, temos como objetivo aqui chamar a atenção para as mudanças que estão ocorrendo no modo como lidamos com o sexo. Sendo assim, tomando como referência o contraponto que estabelecemos entre o filme de Machatý e os vídeos de Cubitt, podemos interrogar: será que, finalmente, conseguimos nos libertar da repressão que sempre se impôs, de maneira insistente, sobre o que comumente nomeamos de “nossa sexualidade”? Diante de tantos sinais afirmativos – tais como sucessos editorias que vendem sadomasoquismo light, maratonas de masturbação no mês de maio (Masturbate-a-thon), reality shows sobre sexo etc. – enxergamos a liberdade sexual sendo colocada em prática de forma realmente exuberante. No entanto, ao tomarmos algo como certo e incontestável, deixamos de perceber as camadas subjacentes que compõem os fenômenos que estão surgindo, não possibilitando, assim, que sejam revelados os aspectos passíveis de questionamento. E é neste ponto que iremos nos valer da perspectiva do filósofo Michel Foucault em sua história da sexualidade, mais especificamente no primeiro livro que é denominado de A Vontade de Saber.
O que Foucault (1999) nos traz, de modo magistral, é justamente uma desconstrução da ideia de repressão como fator explicativoda relação que a modernidade ocidental estabeleceu como sexo. E isto é feito aoanalisara “hipótese repressiva” a partir de uma forma de poder que funciona não por meio da lei e da proibição, mas sim através da técnica, da normalização e do controle. Desta maneira, conforme constatou o filósofo, o sexo não foi submetido ao silêncio, mas tornou-se, na realidade, o objeto privilegiado de uma intensa produção discursiva, que ganhou maior expressividade no século XIX. Sendo assim, então, duas perguntas podem ser feitas: como a sexualidade foi associada a esse poderde caráter não repressivo, cujo principal campo de investimento é a vida? E, afinal, o que se tem “vontade de saber” sobre o sexo?
Foto: Robert Mapplethorpe
No que diz respeito à primeira questão, “a tese de Foucault é de que a sexualidade foi inventada como um instrumento-efeito na expansão do biopoder” (DREYFUS & RABINOW, 2010, p. 221). É, portanto, através da “sexualidade”– este elemento historicamente constituído enquanto um produto científico, social e moral – que o biopoder pôde atuar e se disseminar congregando os dois pólos que o compõe: o poder disciplinar, que surgiu no final do século XVII e teve o corpo do indivíduo como foco de suas ações por meio da vigilância em ambientes institucionais (como hospitais, colégios, prisões, fábricas etc.); e o poder regulamentar ou biopolítica, que apareceu na segunda metade do século XVIII e apropriou-se dos fenômenos que afetam tudo aquilo que faz parte da existência de uma espécie: nascimento, adoecimento, envelhecimento e morte. Além da organização em função desses dois eixos, o poder na compreensão de Foucault caracteriza-se por não emanar de uma pessoa ou de uma instituição. Não há, portanto, um ponto central irradiador. Daí, como nos lembra Machado (2003), o poder só existe enquanto modos de relação ou de práticas, propagando-se de maneira minuciosa no âmbito social e afetando a todos indiscriminadamente.
Outro aspecto importante relativo ao poder, e que nos levará ao segundo questionamento, diz respeito à sua vinculação positivada com o saber, em que ambos estabelecem uma correlação necessária, não ocupando, portanto, posições opostas. Sendo assim, “o saber é um dos componentes de definição da ação do poder no mundo moderno.” (DREYFUS & RABINOW, 2010, p. 267). A constituição de saberes permite que o poder possa expandir suas formas de atuação. Isto implica situar, então, que os investimentos desse saber-poder pressupõem a existência de “sujeitos livres”, ou seja, sujeitos que detêm uma gama de possibilidades para seu agir (FOUCAULT, 2010). Por isto a escravidão não se constitui numa relação de poder dentro da concepção de Foucault, pois “as determinações estão saturadas” (p. 289), não admitindo um espaço de funcionamento diversificado. Para o filósofo francês, portanto, a associação entre poder e saber “faz dos indivíduos sujeitos” (p. 278). E o campo eleito por Foucault para analisar tal processo foi exatamente “o domínio da sexualidade – [ou seja,] como os homens aprenderam a se reconhecer como sujeitos de ‘sexualidade’.” (p. 274).
Obra: Auguste Rodin
A condição subjetivante do biopoder ocorreem função dos saberes que são construídos sobre os indivíduos e, também, dos saberes que os próprios indivíduos produzem a respeito deles mesmos, tendo, em ambos os casos, a sexualidade como aspecto central. Somos determinados, então, pelo nosso desejo e passamos a nos reconhecer individualmente através de identidades sexuais. Deste modo, a “vontade de saber” a respeito do sexo é, na realidade, uma vontade de saber a verdade que ele pode revelar sobre cada um de nós. Porém, sendo assim, qual a tecnologia que o poder utilizou para transformar o sexo no portador dessa verdade? Foi através da apropriação do sacramento da confissão pela ciência. No caso específico, a scientia sexualis. A fim de que a verdade pudesse ser desvelada de maneira sistematizada, a ciência sexual fez da confissão uma ferramenta fundamental para levar o sujeito a “dizer tudo” o que há de mais íntimoa um “interlocutor especializado” (tais como médicos, psiquiatras, psicólogos etc.). Com isto, são confessados os sonhos, os crimes, os pecados e os pensamentos para buscar, acima de tudo, libertar essa verdade do sexoque insiste em se esconder até mesmo daquele que confessa. Por consequência, a “sexualidade reprimida” tornou-se uma espécie de dirty little secret, haja vista seu caráter supostamente perigoso e possivelmente patológico.
Finalmente, a partir do que comentamos e conforme depreendemos da análise de Foucault, a repressão é apenas um mecanismo do poder que serve parafazer falar sobre sexo. E um dos motivos da sua popularidade é o de nos proporcionar, quando bravamente colocamos às claras determinado conteúdo sexual, o prazer triunfante de nos sentirmos “transgredindo” ao que é “proibido”. Desta maneira, “alguma coisa da ordem da revolta, da liberdade prometida,… , passa facilmente nesse discurso sobre a opressão do sexo.” (FOUCAULT, 1999, p. 12). Em função de tal perspectiva, ficaremos com um questionamento: será, então, que a sexualidade mais livre que estamos experimentando não diz respeito, simplesmente, à outra face dessa mesma lógica repressiva? Certamente, se o principal referente para a nossa compreensão a respeito do sexo hoje em dia é a liberdade, e não a repressão, isto implica considerarmos não somente a possibilidade de que há novos modos de atuação do biopoder, mas também de que a experiência subjetiva da atualidade vem se distinguindo daquela que foi constituída no período delimitado pela pesquisa de Foucault. E pensar sobre tais mudanças é um modo de manter-se em consonância com o trabalho do filósofo francês. Afinal de contas, se o que entendemos por “sexualidade” é uma construção historicamente determinada – não restrita, portanto, ao campo dos fenômenos biológicos –, não há dúvidas de que outras vias para estabelecermos a nossa relação com o sexo serão formadas, mantendo-se, assim, o fluxo constante das variações que ocorrem na cultura ao longo do tempo, permitindo, por conta disto, que diferentes problematizações possam ser feitas em razão daquilo que se apresenta.