Inspirado em estudo dissertativo esta resenha busca problematizar1 brevemente a emergência da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (PNAISH), instituída no ano de 2009,onde o objeto “homem” fora delimitado como uma ‘nova’ problemática social. Enquanto estratégia biopolítica, o enunciado de que o homem não cuida de sua saúde e outros discursos sobre o corpo social masculino marcam a produção social de masculinidades inscritas na história da saúde no Brasil. Para estas problematizações, fundamentamo-nos nas ferramentas teóricas e metodológicas a partir do prisma pós-estruturalista, no pensamento de Michel Foucault, na forma como o autor desenvolveu uma análise dos discursos e da emergência dos saberes na sua articulação com mecanismos e tecnologias de poder, em especial acerca do dispositivo da medicalização.
O biopoder, conforme Foucault, (1999), não se preocupa somente com o indivíduo, mas lida com uma população que é um problema político, biológico, científico e, concomitantemente, um problema de governo. Neste sentido, a biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, afim de governar não somente os indivíduos por meio de certos conjuntos disciplinares, mas o conjunto das pessoas administradas como população. A população será governada por meio da gestão da saúde, da higiene, alimentação, sexualidade, na medida em que se tornam preocupações políticas (REVEL,2005).
Mas seriam os homens alvo das estratégias biopolíticas somente com o advento da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem? Na perspectiva foucaultiana, não seria buscar a origem linear dos fatos para explicarmos a atualidade, mas por em movimento os acontecimentos, tirando-os de seu lugar naturalizado e fixo. Neste sentido, a genealogia articula o corpo com a história. O corpo marcado de história e a história arruinando o corpo (FOUCAULT 1979).
Sérgio Carrara (1998) já havia indicado que os homens eram foco da medicalização em território circunscrito como bordéis e casas de jogos, botecos. No Brasil, sabemos que antes da emergência do SUS, somente trabalhadores de carteira de trabalho assinada tinham garantidos certos direitos de acesso à saúde. O controle da força de trabalho pode ser considerado como o primeiro alvo de atenção do biopoder em relação ao masculino.
Visando contextualizar, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, instituída conforme Portaria nº 1.944, de 27 de agosto de 2009, salienta-se os princípios e diretrizes da PNAISH; parte são baseados em dados epidemiológicos, centralizando-se nos fatores de risco associados aos indicadores de morbi-mortalidade, parte por veridicções que designam o seu objeto de atenção.
Na direção dos índices de saúde, estudos como o de Wagner Figueiredo (2005) têm ressaltado a alta prevalência das doenças cardiovasculares, neoplasias malignas e violência, sobressaindo os acidentes de trânsito e os homicídios (causas externas).
A priorização da PNAISH em dirigir-se aos homens da faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade ocorre justamente pela alta prevalência de internação e de morte devido às causas externas, principalmente nas mortes causadas por homicídios. Contudo, autores como Jorge Lyra e Benedito Medrado (2009) e Sérgio Carrara (2009) salientam a incipiência da PNAISH.
A PNAISH emerge no ano de 2009, depois de diversos tensionamento pelaSociedade Brasileira de Urologia que vinha se dedicando à “causa” da saúde do homem desde 2004 e que em 2008, passa a exercer forte pressão junto a diferentes setores do governo, a parlamentares, aos conselhos de saúde (CONASS e CONASEMS) e a outras sociedades médicas, para o lançamento de uma política específica voltada à saúde do homem. Carrara (2010) explana bem esta questão; a partir de uma análise histórica, o autor questiona o contexto da Política Nacional de Saúde do Homem, apontando alguns interesses políticos, numa curiosa articulação entre especialistas médicos (no caso, os urologistas), gestores, formuladores de políticas públicas e farmacêuticos.
Os homens, com o advento da PNAISH, são investidos enquanto objeto de medicalização com vistas a também serem consumidores deste mercado biomédico. Então quais são as linhas de força, os interesses em jogo, as estratégias biopolíticas dirigidas ao corpo masculino?
Além dos índices de adoecimento e morte, determinadas veridicões sustentam a emergência da PNAISH em seu documento oficial. Estes discursos que reduz o masculino a determinadas configurações identitárias ainda são utilizados com vigor por sociedades médicas ou mesmo pela maioria dos gestores e profissionais que não tiveram um contato maior com a atual gestão da saúde do homem. São as afirmativas abaixo: “Os homens não sabem se cuidar.” “As mulheres cuidam dos homens.” “Os homens acessam os serviços de emergência quando a doença já está instalada, causando ônus à saúde pública.” Percebe-se que, o objeto desta política de saúde não é algo dado, mas se constitui como efeito num campo de verdades. Os jogos de verdade, não se referem mais a uma prática coercitiva, mas a uma prática de auto-formação do sujeito na contemporaneidade. Para Foucault (2006), a relação saber-poder seria mais um instrumento que permitiria analisar o problema das relações entre sujeitos e jogos de verdades.
Se o governo da conduta, que veremos no subitem que segue, pauta-se pela invenção de critérios do que deve ser o sujeito, ligando-o, marcando-o e identificando-o a um modelo de ser sujeito, são as relações de poder-saber que tornam possíveis a invenção desses critérios, a sua materialidade (por meio de técnicas, procedimentos e práticas), seu sucesso ou mesmo a resistência a eles (MEDEIROS, 2008).
Assim, ao invés de reproduzir os jogos de verdades acerca dos homens, segmentarizados em identidades fixas ou na postulada dificuldade dos homens em se deixarem medicalizar, pretende-se entender porque determinadas questões tornam-se tão importantes de serem colocadas em pauta e difundidas como verdades. Ao questionar os efeitos de verdade dos enunciados perpetuados pela PNAISH alegando que os homens não cuidam de sua saúde, que estes possuem resistência em serem examinados e medicados, buscou-se suspender estas e outras “verdades” atribuídas ao masculino, analisando os múltiplos discursos como produzidos historicamente.
A produção social de masculinidades infames: alguns apontamentos no campo da saúde do Brasil
No que concerne ao corpo social na história da saúde do Brasil, distintos arranjos de masculinidades foram produzidos no interior do dispositivo da medicalização2; masculinidades tanto legitimadas na vida política e social como homens infames, ou seja, corpos inúteis e danosos ao país. Ressalta-se que as masculinidades estão sempre em estado de fluidez, de deriva (SEFFNER, 2003). Apesar da importância de estudos que contemplem as interseccionalidades das hierarquias de raça, classe, sexualidade erelações de gênero, pois estas combinam formas de desigualdades na prática das relações sociais (COROSSACZ, 2009), quando a perspectiva do debate nas pesquisas sobre a saúde no Brasil tranversalizao debate sobre a generificação dos corpos em determinadas conjunturas, é o corpo feminino que costuma entrar em análise (AQUINO,2006).
A história foi escrita por homens, mas durante grande parte do século XX, a historiografia brasileira caracterizou-se por um discurso que exaltava os “grandes homens” (heróis destahistória) e julgava e desqualificava homens que eram produtos de nosso contexto social, mas que foram transformados em culpados pelo atraso do país (escravos, miscigenados, degenerados). Neste sentido. Maria de Matos (2001) questiona que eventos e personagens históricos foram invizibilizados paraseconstruir umamemóriapreponderantenopaís.
Ademais,o espaço público foi e ainda é tratado pela historiografiatradicional como espaço de construção e fortalecimento da nação, realizado preponderantemente por mentes e braços masculinos, em diversos momentos históricos. Lilia Ferreira Lobo (2008) retoma esta expressão do autor, em estudo sobre a produção social de corpos degenerescentes no Brasil:
“Existência sinfames: sem notoriedade, obscuras como milhões de outras que desapareceram e desaparecerão no tempo. (…) Porém, sua desventura, sua vilania, suas paixõe salvos ou não de violência instituída, sua obstinação e sua resistência encontraram em algum momento quem as vigiasse, que mas punisse, quem lhes ouvisse os gritos de horror, as canções de lamento ou manifestaçõesde alegria.”( Lilia Ferreira Lobo,2008, p. 17)
Parafraseando Foucaul tem seu livro “Em defesa da sociedade”, questiona-se: que vidas importaram serem vividas para a nação brasileira? Os “(…) corpos que importam”, os “sujeitos aceitos (…)”,(Louro, 2004, p.15) são aqueles que obedecem a normas regulatórias. Aqueles que oscilam, hesitam, inventam novos caminhos e ousam trilhá-los são suspeitos, no limite, descartáveis, restos.
Explorando a história da saúde no Brasil, em estudo dissertativo anterior, percebemos que os homens já eram objeto de medicalização nos diversos contextos históricos. Como a medicalização dos corpos não passa apenas pela assistência à saúde dos sujeitos, nem tampouco apenas pelo campo da saúde, mas seinsere como um dispositivo de poder transversal a outros dispositivos, com o da segurança, do trabalho e dasexualidade, tomou-se então essa transversalização o desafio de análise. Desafio, no sentido de se apropriar da história sem perder o enlace com a atualidade, nem replicar simplesmente o que os livros já contaram tantas vezes.
Neste sentido, a biopolítica designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de certos conjuntos disciplinares, mas o conjunto das pessoas administradas como corpo social. A população será alvo de controle a partir de regras de da higiene, alimentação, sexualidade, na medida em que se tornam preocupações políticas. Medicina e Estado se articulam como forma de governo das populações, desse modo a medicina é uma estratégia biopolítica.
Assumir o caráter de problematização, ao tomar as peculiaridades de produção social das masculinidades no campo da saúde, é recontar a história dissolvendo a veracidade naturalizadados fatos. É perceber o caráter indissociável da relação gênero, raça, classe, geraçãona construção da versão brasileira da medicina social. Desconstruir as condições de possibilidade que permitiram a ela “firmar seus pés ”na noção de raça; o imperativo que calcará a desigualdade social na cor da pele. O racismo científico vai esquadrinhar os sujeitos potencialmente saudáveis e os potencialmente perigosos (vagabundo, desviante sexual, criminoso, revolucionário), bem como definir a doença pela sua herança hereditária.
A medicina foi convocada a higienizar uma mão de obra pós escravidão a fim de conter toda a potencialidade do coletivo de homens que poderiam se rebelar contra o sistema político. Diversas estratégias voltaram-se a este objetivo como a repressão à ociosidade da República Velha, concomitantemente à prevenção do alcoolismo e das doenças sexualmente transmissíveis; a exaltação aotrabalhador ideal nos regimes ditatoriais e a imaterialidade das garantias trabalhistas de uma sociedade atual onde prevalece a competição e o individualismo. Diante destes aspectos, assinalamos o quanto o dispositivo de trabalho movimentou o estudo acerca da produção social de masculinidades no campo da saúde do Brasil.
Com exceção da elite intelectual e econômica, que coloca-se afavordos imperativos políticos e sociais do Estado, a norma passa a ser o homem que circula pela cidade como trabalhador. De resto, irão sobrar os homens infames; aqueles que adquirirem seu estatuto de masculinidade infame perante a sociedade. Assim, o dispositivo do trabalho, articula a medicalização do corpo social masculino ao passo que confere sujeitos dispostos a construir uma nação. Neste sentido, nos direcionam os a oterritório masculino do trabalho e o itinerário inóspito por onde os trabalhadores transitam ao adoecerem.
Costuma-se inferir o espaço público como sendo dos homens, contudo percebemos que é necessário por em questão que para masculinidades rejeitada em sua circulação resta-lhes o território privado das instituições. Mas senão há instituições suficientes emt ermos de espaço e aparatos de poder designados aos corpos infames, o que resta é institucionalizar a própria circulação docorpo. E restringir o corpo ao acesso aos serviços é restringir a própria vida.
Apesar de todo estigma direcionado ao trabalhador que adoece perante as condições de trabalho e a insegurança social e econômica que o espera ao buscar o cuidado em saúde, foi no território daprisão que encontramos a materialidade da morte dos homens predominantemente negros e jovens, morte tanto orgânica como social, assim como havíamos encontrado no corpo escravo, nos moradores erua, no cabloco. O homem preso é o emblema atual dos homens marcados para não viverem, uma tanatologia do corpo social masculino.
Na sequência discursiva que acompanha o homem criminoso, encontramos na PNAISH o caráter de réu atribuído aos homens. Tanto por serem tomados como incapazes de cuidarem da própria saúde, como por serem autores das situações de violência. Deste modo, uma análise intersetorial das políticas públicas de saúde, assistência social e segurança pública enquanto estratégias biopolíticas direciona das preferencialmente aos pobres são tomadas como transversalizadoras nas produções de masculinidades objeto de preocupação social.
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Notas:
Lembrando que problematização para Foucault (2004) é o conjunto de práticas discursivas ou não discursivas que faz com que alguma coisa entre no jogo do verdadeiro e do falso e o constitui como objeto para o pensamento. Assim, não seria de questionarmos se os homens não cuidam de sua saúde, se estes possuem resistência em serem examinados e medicados, mas justamente entre essas e outras “verdades” atribuídas ao masculino analisarmos os múltiplos discursos como produzidos historicamente.
“(…) é isso o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles. Para dizer: “eis um dispositivo”, procuro quais foram os elementos que interviram em uma racionalidade, em uma organização.” ( Foucault, 2007, p. 124)