O Homem de Aço: a face obscura do Superman

O novo filme do Superman, intitulado O Homem de Aço, mescla cenas de ações com imagens eloquentes que deslizam lentamente sobre a tela dando ao contexto uma conotação quase espiritual.

Nesse filme, o Superman é um ser angustiado, em fuga, que não sabe o que ou quem é, nem de onde veio, e que está em constante retorno às suas memórias da infância, da adolescência e até daquelas que ele nem consegue identificar em qual tempo ou espaço existiram. Assim, o que diferencia esse Superman de tantos outros que já assistimos talvez sejam os sentimentos (tão humanos) de raiva, frustração e insegurança que o acompanham desde a infância.

Enquanto filmes como “Os vingadores” tinham nos elementos cômicos alguns dos seus melhores momentos, um recurso até mesmo usado no sombrio Batman (seja na comicidade mórbida do Coringa, ou no tom engraçado e paternal do seu fiel mordomo Alfred), em o Homem de Aço, a ausência desse tipo de recurso dá ao filme um diferencial ousado.

Nos outros filmes do Superman, aqueles em que o herói-alienígena ainda usava uma cueca sobre a calça colante, o personagem tinha um ar mais ingênuo, politicamente correto, com um senso moral irrepreensível, alguém que parecia ser um ideal humano. Talvez bem diferente do Super-Homem imaginado por Nietzsche em “Assim Falou Zaratustra”, um conceito que surgiu na medida em que “o homem se tornou uma coisa que tinha de ser superada”, pois este “é uma corda esticada entre o animal e o super-homem, uma corda por cima do abismo”.  Mas, do que estava falando mesmo? Ah, sim… dos outros filmes do Superman.

Pois bem, o novo filme tem lá suas mudanças, mas ainda assim é um filme do Superman. Logo, mesmo que ele já consiga admitir que tenha vontade de esmurrar os moleques que o tornaram o adolescente de Kansas que mais sofreu bullying, ou, em um dado momento, tenha estraçalhado – de fato – um pobre objeto inanimado (não estou nomeando-o aqui para não estragar a surpresa) evitando, com isso, machucar um bêbado insolente, ainda assim, é um jovem íntegro, com vários preceitos morais, criado por uma pacata família do Kansas.

Já tivemos uma apresentação magnífica do Jor-El, feita por Marlon Brando, em Superman – O filme (de 1978), mas nunca tivemos (já estou esperando um comentário dizendo: você esqueceu de…. ) uma reconstituição tão surpreendente do planeta Krypton. Um planeta mais avançado tecnologicamente que a Terra e que, por isso mesmo, sofreu algumas das nefastas consequências que acompanham determinadas inovações. A destruição de Krypton teve relação com duas situações: o excesso da extração de seus recursos naturais e a degeneração do meio social devido ao uso da engenharia genética para a criação de um novo modelo de vida.

Em Krypton, cada pessoa nasce com UM PROPÓSITO. E isso poderia ser uma coisa positiva, dado o fato de que a maioria de nós passa toda uma vida a procura de um propósito, de um sentido. Mas por que em Krypton, Jor-El (o eterno gladiador Russel Crowe) e sua esposa vão de encontro a essa premissa e dão ao seu filho, literalmente, um mundo de dúvidas? Sendo bem ingênua, diria que talvez seja porque não há ser humano (ou kryptoniano) que suporte viver num ambiente totalmente programado,  direcionado pelos preceitos de uma lógica que tem apenas doisstatus: zero ou um (verdadeiro ou falso, bom ou mau, professor ou médico etc ).

Então, nesse mundo de dúvidas que é a Terra, o Clark adulto, além da sua mãe Martha, pode contar com a Lois, que é apresentada nesse filme como uma mulher com a inquietação  e curiosidade peculiares desse personagem, porém mais proativa e independente.

Estamos no século XXI, logo seria complicado nos depararmos com uma Lois que não reconhecesse o Clark por causa dos óculos, ou que gritasse a cada cinco minutos para que ele viesse salvá-la do perigo (ops.. isso é o Super Mouse, mas está valendo). Lois, nesse filme, consegue interagir com um programa de computador com consciência (sem detalhes rs), guardar em sua memória fantástica um plano extraordinário e… Enfim, é um filme de superheróis, e isso não pode ser esquecido. Você só pode aceitar um alienígena que voa, que tenha visão de raio-x e entorta aço ou qualquer coisa que ele queira, se estiver embuído de um espírito imaginativo e permeado por licença poética rs.

Há no filme uma tentativa de aproximar a figura do Superman (cujo S significa Esperança no dialeto de Krypton) ao Messias do Cristianismo. O que é comum em muitas histórias de heróis da ficção científica. Talvez em O Homem de Aço essa proximidade ficou ainda mais evidente, pois há uma série de elementos na tela que remete a isso, seja nas constantes apresentações do Superman de braços abertos (como se estivesse na cruz), seja no fato de ter um pai que existe além desse universo.

Inclusive, em um dos momentos de decisão de Clark, no qual ele precisa ir contra o seu pai da Terra e atender a sua consciência, que é uma mescla da consciência de seu pai de Krypton, é mostrada na tela a clássica imagem de Jesus no Jardim de Getsêmani na noite que antecedeu a traição que ele sofreu por um dos seus discípulos.


Talvez, metaforicamente, o diretor quisesse transmitir a ideia de que ao colocar-se como um defensor da humanidade, o Superman também pudesse ser traído por ela. E é esse o embate principal do filme, o Clark que é tão humano, mas paradoxalmente, tão deus, para salvar a Terra, teria que ir contra aquele que era, de certa forma, seu semelhante, apresentado na figura do General Zod (um homem com um propósito).

O conjunto de elementos que permeia a personalidade do Superman fez nascer uma expressão, que parece ter sido introduzida em 1954 pelo Dr. Fredric Wertham em seu livro Seduction oft he Innocent: complexo de Superman. Tal complexo advém de um “sentimento doentio de responsabilidade, ou na crença de que todos os outros não têm a capacidade para executar com êxito uma ou mais tarefas” 1 . É como se a pessoa tivesse a necessidade constante de “salvar” os outros, já que tem os meios mais concretos para isso (ao menos, em sua concepção).

Um dos pontos mais bonitos do filme é a imagem do Superman a partir do olhar de Jonathan Kent (Kevin Costner). Como um pai amoroso, ele quis proteger seu filho da complexidade que seria revelar sua natureza tão diferente e, de certa forma, tão superior fisicamente à humana. Pela primeira vez em um filme do Superman, essa situação estranha de ter um homem em nosso meio que voa e que tem uma força descomunal é apresentada de forma tão sensível.  A existência de alguém assim poderia representar a ruptura dos mais profundos conceitos que sustentam e definem a humanidade.

Ao ver seu filho brincando de ser um herói, uma brincadeira que faz parte do universo de tantas crianças, ele começa a temer o inevitável, ou seja, parece que aquele indivíduo já nasceu com um propósito. Logo, não haveria meios capazes de provocar uma mudança em sua natureza, pois os poderes que ele possui não existem a partir de uma escolha, mas de uma condição. Não sei se essa conclusão é assustadora ou libertadora, mas, acredito que seja, ao menos, inquietante.

Nota:

1 http://en.wikipedia.org/wiki/Superman_complex


FICHA TÉCNICA DO FILME

O HOMEM DE AÇO

Título Original: “Man of Steel”
Direção: Zack Snyder
Roteiro: David S. Goyer, Kurt Johnstad
Criadores do Superman:Jerry Siegel& Joe Shuste
Elenco Principal: Henry Cavill, Amy Adams, Russell Crowe, Michael Shannon, Diane Lane, Kevin Costner, Laurence Fishburne.
Produção: Charles Roven, Christopher Nolan, Deborah Snyder, Emma Thomas
Fotografia: Amir M. Mokri
Ano: 2013

Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.