O imponderável da existência em “O Céu no Andar de Baixo”


“Para ele, o céu é uma opção e um significado.”

Há no Brasil inúmeras iniciativas de desenvolvimento independente da sétima arte. A quantidade de festivais, feiras e premiações sobre curtas, médias e longas-metragens é considerável. Infelizmente muitas das obras apresentadas nestes eventos não possuem uma grande divulgação, não impedindo que sejam prestigiadas, mesmo que por um público de nicho, formado por produtores, roteiristas, diretores e atores anônimos, em início de carreiras e independentes. Todos os anos uma plêiade de inspiradas produções são elaboradas, apresentadas e debatidas, e é sobre um destes pontos luminosos que este texto se trata.

A breve introdução é necessária para a entrada do debate sobre o curta-metragem O Céu no Andar de Baixo lançado em 2010, exposto em diferentes oportunidades neste ano e em 2011 por todo Brasil. A direção, roteiro e produção ficou a cargo de Leonardo Cata Preta formado em Desenho e Cinema de Animação pela Escola de Belas Artes da UFMG, com ajuda do programa Filme em Minas. O trabalho foi vencedor de premiações como o Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira, Melhor Curta – Prêmio da Crítica no Cine Ceará em 2011, e de Melhor Roteiro no Festival de Cinema de Triunfo em 2011, dentre outros.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O MUNDO DE FRANCISCO

A obra conta a história de Francisco, um jovem acometido por uma condição congênita de “descalcificação” dos ossos do seu pescoço, transformando sua cabeça em um pingente, conforme as palavras do narrador – o próprio Leonardo, roteirista da estória. Esta condicionante fisiológica é que fundamenta todo o desenvolvimento, tanto do personagem principal, como também das situações as quais o mesmo se vê relacionado durante a projeção do curta-metragem.

Os dias de Francisco possuem um ar monótono ao lado de seu cachorro de estimação, Pereba, mas envoltos numa dinâmica peculiar: o ato de registrar, desde os 12 anos, os momentos mais importantes de sua vida com uma máquina fotográfica, e como ele só vê o céu (ou o chão), devido sua enfermidade, estas ocasiões possuem cada qual um enquadramento diferente do firmamento, com suas nuvens, iluminação formando assim os diferentes “Quandos” de sua vida, pois: “[…] há um céu para cada acontecimento assim como há uma expressão nos rostos das pessoas para diferentes ânimos” alimentando ainda mais sua sede imaginativa.

Outra discussão interessante levantada no filme é sobre o foco da visão do protagonista, que, devido seu problema físico, precisa optar em sempre olhar par ao céu ou para o chão; no primeiro caso “o mundo de cima” apesar de ser o mais bonito em sua preferência, acaba por atrapalhar suas atividades cotidianas, pois nada consegue ver além do azul e nuvens; no segundo caso “o mundo de baixo” possibilita uma maneira de atingir sua mobilidade, mas, obrigando-o a sempre olhar para a sujeira dos caminhos percorridos, na maior parte composto por restos, imundícies, e demais detalhes admoestados pela visão retilínea dos demais transeuntes, algo parecido da análise presente na animação australiana Mary & Max (2008).

Assim, em sua rotina, Francisco não se mostra muito motivado a interagir com as outras pessoas, preferindo preservar o seu ostracismo. No entanto, devido às inúmeras investidas de socialização por parte dos seus vizinhos de prédio, este acaba cedendo, mesmo não se ajustando às reuniões do grupo, preferindo os passeios no parque com o seu cão, Pereba, já que o falatório inócuo de sentido não lhe soa convidativo: “Devido ao seu comportamento incomum de poucas palavras, melhor dizendo, de nenhuma palavra, os vizinhos acham que FRANCISCO é mudo. Mas FRANCISCO apenas gosta demais do seu silêncio para quebrá-lo com qualquer um. Aqui, FRANCISCO é valor agregado, está presente estritamente como ouvinte passivo. Silencioso, mas presente”. E há um pequeno detalhe no endereço do personagem principal, pois o número do apartamento de Francisco, 1304, faz uma referência direta à outo trabalho do diretor Moradores do 304 (2007), que é a numeração real da casa do idealizador do filme.

Este dia-a-dia apático, reforçado pelo minimalismo cromático, sonoro e objetivo das cenas, contribui para que possamos mergulhar na solidão coletiva de Francisco.  E tal cenário só é quebrado pela ação da casualidade, na tentativa de suicídio, saltando do seu apartamento, captada pela sua câmera, no enquadramento do “pares de pernas” no meio do céu.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O que se coloca, desta maneira, é a apresentação espelhada deste conflito onto-ontológico do mundo de Francisco, ou seja, aquele no qual vive, e do qual não aprecia nem o que vê – a vista para o chão sempre –, muito menos as pessoas com as quais precisa conviver. E, do outro lado existe a projeção da essência das coisas que o mesmo vivencia, do ponto de vista do impacto de significação desta selva de objetos, ambientes e acontecimentos que o rodeia, como, por exemplo, na projeção do mundo que mais se sente à vontade – a imensidão do firmamento –, mas que lhe é impossível e desfrutar tanto de forma perene como cotidiana.

Ademais este primeiro encontro inesperado, ambos voltam a dividir o mesmo lugar no elevador, e, a maneira pela qual o diretor escolhe para representar o desejo de Francisco pela moça, percebendo-a em uma cadeira de rodas, devido à malfadada tentativa de tirar a própria vida, ocorre por meio de uma grande aranha “vestindo” uma calcinha, um capricho simbólico, reforçado por seu deslocamento imagético. Os encontros, pela fotografia e no elevador, irão levar Francisco para o ápice e a queda de seu repentino frisson, na constante e perigosa relação entre a especulação perspectiva e constatação da realidade imponderável.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

AMORES E DESAMORES

A sentença da árvore de pé-de-manga ao lado do banco de Francisco no parque é direta: “É mal de amor que você tem!”. O rapaz encontrava-se laçado pela moça misteriosa, moradora do andar abaixo do seu, com a qual nutria seus hodiernos sentimentos. Por esta razão, em meio à confusão de sentires obscurecidos pela falta dos falares inauditos, escuta a preleção da velha árvore sobre o amor após seus questionamento sobre o tema:

“Sei que é como eu, um pé de manga espada, e também, é igual a qualquer árvore que conheço. O amor nasce de sementes distraídas que brotam ao acaso. E, então, se a morte precoce não as alcança, crescem e ganham força. Em baixo, expandem-se fugindo do sol, enraizando-se no profundo e no escuro húmus subterrâneo. Lá onde está o que não se deve mostrar, nossas fraquezas e medos disformes, nossos defeitos e manias, nossas vergonhas. Lá em baixo está a fonte das horas difíceis e 4 medrosas do amor. Aquelas que ninguém quer ter ou lembrar. Os momentos de deleite do amor são como os galhos que buscam a luz do sol. Acima de tudo, do perigo e da desventura, para o alto crescem diariamente, buscando o calor das boas horas do dia. Lá em cima onde se revela o melhor de nós, folhas verdes em forma de sorrisos e afagos. A copa da frondosa árvore é a boa ventura do amor.”

Embebido nas palavras de seu conselheiro vegetal em acréscimo aos sentimentos pela moça suicida, Francisco toma coragem e envia-lhe um plano detalhado, por meio de um bilhete, para que possam se encontrar, conhecendo-se melhor, já que até então não lhe sobrara coragem ou iniciativa para fazê-lo, devido sua estrema timidez e ostracismo:

“Um: um bilhete convidando a moça para um encontro, que seria no banco da praça, debaixo de um Pé de Manga-Espada. O bilhete foi escrito sobre uma cópia da fotografia do dia que FRANCISCO se mudou para o apartamento. Dois: um mapa de localização do ponto de encontro, com instruções e pontos de referência para que ela não se perdesse e para que fizesse um caminho mais confortável com a sua cadeira de rodas. Três: um exemplar da folha do pé de Manga-Espada para que ela não se engane de árvore.”

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

O decurso da cena, que entrelaça o envio do bilhete e a ida de Francisco ao parque para o esperado encontro, nos oferece a dualidade entre a intencionalidade e a causalidade. No primeiro caso, há a tentativa de ação direta nos eventos por parte do personagem principal, e em seguida a alteração desta linearidade planejada de forma incisiva do fator causal:

“Francisco chega ao local combinado, mas encontra seu amigo, o pé de manga espada, cortado. Era uma árvore velha, já com poucas folhas, mas talvez não precisassem tê-la matado. Seja como for, Francisco agora só pensava numa coisa: como a moça iria encontrar um banco debaixo de um Pé de Manga-Espada, se já não havia um Pé de Manga-Espada naquele local? Francisco então pensou no que a velha árvore havia dito sobre o amor. Pensou sobre as raízes, a zona obscura do amor. Pensou que talvez todo o amor seria, um dia, cortado, e só restariam as raízes, lá em baixo, sepultadas em algum buraco de quem amou. E que o melhor seria sair dali rápido, pois, talvez, daria tempo de chegar ao bar do Seu Tião para dar de comer ao Pereba.”

Assim todo o planejamento de Francisco com a moça que tentara o suicídio há poucos dias malogra-se no fatídico fim dado ao pé de Manga-Espada, sua conselheira amorosa e, indiretamente, incentivadora de suas motivações sentimentais. A moça de calças listradas, e tão suicida como as irmãs virgens de Sofia Coppola, estremece os “quandos”, “ondes” e “porquês” do rapaz, alimentando com a esperança da vista superior que mais o agrada – e é assim, que a vê pela primeira vez, em seu incidental e malfadada decisão existencial.

Como visto o diretor do curta-metragem, além de se mostrar um roteirista de mão cheia versa sobre temas intimistas e reflexivos ao longo de sua breve obra. E, por se tratar de uma carreira ainda em fase seminal, pode-se projetar caminhos diversos aos quais seguir em trabalhos futuros, ora investindo mais na profundidade e desenvoltura narrativa, ora na carga sígnica das imagens postas, sobrepostas e em movimento durante seus filmes.

Figura: Cena do curta-metragem “O Céu no Andar de Baixo”
Fonte: PRETA, Leonardo Cata (2010).

Talvez haja a probabilidade de encontrarmos cada vez mais introspecção no trabalho de Cata Preta, pois, percebe-se sua narração, apesar das excelentes reflexões e incremento à trama, como um ponto de apoio ao qual se segura. A força de suas imagens, a riqueza de detalhes juntamente com o peso dos temas abordados em seus subtextos certamente não exclui, mas fortalece ainda mais esta pequena obra, singela, profunda e plena de inquietação.

FICHA TÉCNICA

O CÉU NO ANDAR DE BAIXO

Direção: Leonardo Cata preta
Roteiro: Leonardo Cata preta
Produção: Leonardo Cata preta
Gênero: Animação
Ano: 2010
Duração: 15 min