O luto mal-resolvido em ‘O Justiceiro’

‘O Justiceiro’ não é uma produção destinada apenas aos amantes de quadrinhos, mas também retrata os desafios existenciais que cada personagem carrega dentro de si.  

O Justiceiro, série originada da história em quadrinho da gigante Marvel, retrata a história de um ex-fuzileiro do exército, que busca implacavelmente fazer justiça com as próprias mãos com aqueles que aos seus olhos merecem ser punidos. Este texto contem spoiler, já que é necessário se debruçar sobre as narrativas centrais para associá-las aos processos psicológicos.

Frank Castle não é um homem que se derruba com um simples tiro, já que as duas temporadas da série servem de amostra à força e resistência física que ele possui. Contando eventos nos quais ele enfrentou vários homens de uma só vez e saiu vivo. Frank Castle é imbatível.

A primeira temporada conta o acontecimento mais importante da vida de Castle, evento este que seria responsável por traçar o seu destino para sempre. Frank teve sua família assassinada (Esposa e filhos) sob os comandos de seu melhor amigo e companheiro de guerra Billy Russo.

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Billy era considerado parte da família e tinha a total confiança dos mesmos, o que colaborou ainda mais para o sofrimento de Castle, que se sentiu profundamente traído pelo seu melhor amigo. Em resposta a essa traição, ele perseguiu Russo e no desfecho da primeira temporada, provocou grandes ferimentos no rosto dele, deixando-o em estado de trauma e com muitas cicatrizes.

O destino da vida de Frank não seria mais o mesmo depois da morte de sua família. Ele não conseguiu mais investir afeto em nenhuma área de sua existência e se manteve num processo constante de não aceitação desse acontecimento traumático. Conforme PARKES (2009 apud HABEKOSTE E AREOSA, 2011, pág. 189) “o luto pode ser definido como um conjunto de reações diante de uma perda. É um processo e não um estado, sendo uma vivência que deve ser devidamente valorizada e acompanhada, fazendo parte da saúde emocional, caso contrário, se não for vivenciada retornará para ser trabalhado”.

O retorno desse luto que não foi vivenciado adequadamente é o que mantém a fúria e o desejo de Castle de sempre envolver-se com situações de violência e justiça. O que se percebe nas decisões de Frank, é que ele busca nesse estilo de viver uma forma de conseguir suportar a dor da perda de seus entes queridos.

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A segunda temporada inicia-se com ele em um bar conhecendo uma mulher, com a qual pela primeira vez depois de muito tempo, ele se relaciona. Tudo poderia mudar a partir daquele momento, no entanto, ele avista uma jovem em apuros, e escolhe aquela oportunidade para voltar ao personagem do Justiceiro.

O intrigante é que ele poderia optar por não se envolver, visto que a garota não tinha nenhuma ligação com ele. Porém, ele mata todos os que a perseguiam naquela ocasião, e ainda não a deixa ir embora, alegando que mais pessoas viriam. Ela tenta fugir dele diversas vezes, mas não consegue. Frank vê na moça o seu “amuleto de fazer justiça”, e ele não deixaria esse amuleto ir embora.

O possível envolvimento amoroso que poderia ter acontecido seria uma das formas de começar o processo de elaboração do luto, no entanto, Castle o negou, numa tentativa de não entrar em contato com esse sofrimento. Para Santos (2009 apud HABEKOSTE E AREOSA, 2011, pág.190) “é a negação, que aparece na forma de evitação do fato que provoca sofrimento mental, ou seja, o sujeito se defende, adiando o processo de elaboração e reestruturação de vida.”

A frequência e a intensidade com que Castle se lembra de sua família, diz muito a respeito do tipo de apego estabelecido entre eles. Para Bowlby (1985) quanto maior a intensidade do apego maior a influência direta no processo de elaboração do luto, fazendo com que o sujeito enlutado tenha muito mais dificuldade em aceitar/ressignificar a perda.

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A jornada que se traça durante a segunda temporada traz Frank tentando livrar Amy de um influente casal de religiosos, que estão atrás de um conjunto de fotos de seu filho beijando outro rapaz. Esse casal contrata um de seus fiéis, chamado John Pilgrim, para encontrar Frank e a garota, e recuperar as fotos.

A dupla formada pelos dois traz benefícios para ambos, que encontram um no outro figuras expressivas que faziam falta em suas vidas. Frank enxerga Amy como sua filha e assim sendo estabelece um instinto de cuidado e proteção para com ela. Já Amy encontrou a representação de uma figura paterna para si, recebendo apoio em meio ao caos de ter perdido todos os seus amigos assassinados pelo grupo de religiosos. Caso o telespectador olhe atentamente perceberá a importância do vínculo desenvolvido para o processo de cura de Castle.

Billy Russo e o peso do Transtorno de Estresse Pós-Traumático

A segunda temporada traz o personagem de Billy Russo como uma vítima do trauma, ocasionado pela agressão que ele sofreu nas mãos de Frank Castle. No entanto, ele não se recorda do que aconteceu, e revive esse trauma todos os dias através de sonhos, nos quais ele consegue ver apenas imagens de uma caveira que sempre o persegue.

Russo está passando por um processo denominado Transtorno de Estresse Pós-Traumático. O DSM-IV define duas características para a ocorrência do TEPT, que são “1- A pessoa vivenciou, testemunhou ou foi confrontada com um ou mais eventos que envolveram ameaça de morte ou de grave ferimento físico, ou ameaça a sua integridade física ou à de outros;” e “2- A pessoa reagiu com intenso medo, impotência ou horror;”. Além disso, Billy passa por um processo de intensa confusão por não entender a reação de ódio de Frank para com ele, uma vez que ele não se lembra da traição realizada.

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Ao contrário da primeira temporada que retrata Castle a procura de Billy, a segunda retrata Billy a procura de Castle, porém não no campo físico mas no campo psicológico. Para isso ele conta com a ajuda de Krista Dumont, a Psicóloga que lhe acompanha desde o seu retorno do coma. Krista é no momento a única pessoa em que ele confia, sendo ela seu continente terapêutico. Para Zimmerman (2007, pág. 74) “a função de continente é um processo ativo, no qual o analista participa intensamente, acolhendo, contendo, decodificando, transformando, significando, nomeando e devolvendo de forma desintoxicada tudo aquilo que nele foi projetado dentro dele.”

Apesar desse vínculo saudável estabelecido no início, Krista acaba se apaixonando por Russo, e abandonando o papel único de psicoterapeuta para assumir o papel de companheira.

 O desfecho

O cenário de sangue e violência toma a maior parte dos episódios da série que traz por final, a vitória de Frank e Amy, esta que por sua vez recebe a oportunidade de um recomeço, longe do mundo do crime e mais perto da vida de uma jovem comum.

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Já Frank acaba optando por continuar seu caminho de Justiceiro, acabando com gangues responsáveis por grandes crimes. Billy acaba por descobrir que Castle era o seu agressor e tenta matá-lo, numa investida frustrada, que acaba resultando na sua própria morte.

Contudo, ‘O Justiceiro’ não é uma produção destinada apenas aos amantes de quadrinhos, visto que não se trata somente de poder, lutas e ferocidade, mas também retrata os desafios existenciais que cada personagem carrega dentro de si.

REFERÊNCIAS:

JORNADA DE PESQUISA EM PSICOLOGIA, 4., 2011, Santa Cruz do Sul. O luto inesperado. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2011. 15 p. Disponível em: <http://online.unisc.br/acadnet/anais/index.php/jornada_psicologia/article/view/10197/18>. Acesso em: 26 jan. 2019.

FIGUEIRA, Ivan; MENDLOWICZ, Mauro. Diagnóstico do transtorno de estresse pós-traumático. Revista Brasileira de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 6, n. 12, p.12-16, dez. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbp/v25s1/a04v25s1.pdf>. Acesso em: 26 jan. 2019.

Zimerman, D. (2007). Uma Ampliação da Aplicação, na Prática Psicanalítica, da Noção de Continente em Bion. Interações: Sociedade E As Novas Modernidades, 7(13). Acesso em: 26 jan. 2019.