A educação inclusiva como mecanismo de inserção de um sujeito ativo ao meio social.
Ana Carla Olímpio Soares (Acadêmica de psicologia) – anacarlaolimpio@rede.ulbra.br
O filme “O milagre de Anne Sullivan”, lançado em julho do ano de 1962, retrata a história de uma família tradicional da época em que a filha mais nova, chamada Helen Keller, era cega, surda e até mesmo muda. A família buscara diversos meios de tratamentos para auxiliar a criança ser “curada”, estavam sempre atrás dos médicos que surgiam com fama de “curandeiro”, mas apesar disso, enquanto a mãe de Helen apresentava esperanças de que a filha pudesse evoluir, o pai por outro lado já não acreditava nessa possibilidade. Como forma de tentar amenizar a condição em que a criança vivia, a família costumava fazer suas vontades, reforçando os comportamentos “maus” dando doces ou coisas que ela gostava como meio de “acalmá-la” das crises.
Helen Keller se mostrava ser uma criança raivosa, cheia de resistências e que todos os seus comportamentos afetavam as outras relações daquele núcleo familiar. Como uma última tentativa, os pais resolvem contactar um profissional que estava em destaque na época pelos tratamentos de sucesso que realizava com pessoas com algum tipo de deficiência, sendo ela visual ou auditiva. Com esse contato, ocorre o momento em que entra a professora Anne Sullivan na vida da família de Helen Keller, onde a então professora, também já esteve na mesma condição da criança, cega, situação a qual fez com que se submetesse a nove cirurgias e necessitasse do uso de óculos escuros para proteger-se do sol.
Ao saber dessa condição da professora, o pai de Helen Keller enxerga isso como um empecilho, trazendo a fala do personagem no filme “(…) eles esperam que outra cega ensine a outra”, evidenciando uma fala carregada de preconceito e invalidando a potência de Anne Sullivan enquanto profissional. Trazendo para algo atual, tem-se a Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 que trata sobre a inclusão da pessoa com deficiência, onde especifica direitos desses sujeitos, sendo o principal, o direito de igual, em que em situações de discriminação, há todo um amparo para eles, isso se encontra no segundo capítulo da lei.
Dando continuidade sobre o filme, assim que Anne Sullivan chega à casa da família, observa como a família funciona em relação a Helen Keller. De início, acreditava que não seria tão complicado ensinar a garota, mas ao perceber como a família deixava Helen livre para fazer o que desejava, percebeu que seria um trabalho difícil de realizar. Iniciou com a tentativa de ensiná-la a fazer as coisas simples, como por exemplo, tomar café de maneira autônoma, mas, neste momento precisou lidar com as resistências não apenas da criança, mas também da família. Os pais de Helen justificavam que o comportamento dela de pegar os alimentos com as próprias mãos nos pratos deles, era porque ela havia se acostumado com isso, assim como eles, fazendo tal comportamento tornar-se naturalizado.
Enquanto a família acomodava-se com as limitações de Helen, Sullivan observa na menina potencial para que a aprendizagem ocorresse. Observou que Helen Keller ao “explorar” pelos ambientes, utilizava-se do tato e olfato, utilizando-os, como ferramenta para promover a aprendizagem da criança. Dá início ao ensino da língua de sinais, onde ao tocar em algo, realizava os sinais sob a palma da mão de Helen, tentando ensiná-la através do emparelhamento das coisas (objetos/pessoas + palavra na língua dos sinais realizada na palma da mão). Nesses momentos, enquanto a mãe demonstrava estar esperançosa e interessada em aprender também a língua dos sinais, o pai e irmão da criança desacreditavam de que era possível ela aprender algo.
Contrariando a família, Anne Sullivan continuava acreditando que Helen era capaz e insistia nos ensinamentos, mas em contrapartida, a menina apresentava comportamentos de oposição, agressividade e até ataques de raiva, sendo nesse momento em que Sullivan compreende a necessidade de mudar toda a estrutura que a família havia moldado como maneira de deixar a criança “satisfeita”, sendo necessário levá-la a vivenciar situações diferentes. Anne Sullivan propõe aos pais para que ela pudesse passar um período apenas ela e Helen, para que dessa forma, pudesse proporcionar para a criança diferentes situações, ambientes, experiências, para que assim, mudanças de paradigmas ocorressem na vida de Helen.
Apesar da resistência familiar, Anne Sullivan consegue a permissão dos pais, assim, ela vai para uma casa afastada da família. Helen nos primeiros momentos apresenta comportamentos de agressividade, resistência e oposição, mas que mudou com os dias. Anne Sullivan ensinou-a novas maneiras de utilizar o tato e olfato, continuou usando a língua de sinais soletrando cada letra na palma da mão da criança e fazendo-a repetir a mesma ação, ensinou a criança a ter independência nas pequenas ações, como comer, beber, fazer o uso do guardanapo, mudando totalmente sua maneira de portar-se.
Apesar dessas mudanças em Helen, Sullivan ainda acreditava que o aprendizado não havia se concretizado de fato, acreditava que precisava de mais tempo com a criança, mas os pais não pensavam da mesma maneira, pois viam que a filha se comportava bem, então estava tudo correto para eles. Assim, levaram a criança novamente para casa, onde com pouco tempo de rotina com a família, Helen voltou a emitir os comportamentos de antes (raiva, resistência e agressividade). Por não aceitar os comportamentos, Anne Sullivan recomeça com as lições, mas em um momento a mesa, a criança nega-se a fazer o que é solicitado a ela, jogando água no rosto de Sullivan. Após isso, Anne faz com que Helen encha a jarra d’água e a partir desse momento, com os movimentos repetitivos e o ato de soletrar na palma da mão da criança, Helen consegue compreender e começa a aprender de fato, onde ao tocar algo, estende sua mão para que Anne Sullivan soletre para que ela consiga fazer o mesmo e assim, compreenda o que cada coisa é por meio da associação com o toque e dessa maneira, acaba ampliando seu repertório.
Esse processo de aprendizagem não ocorreria se não houvesse o ato de acreditar que Helen pudesse aprender e até mesmo o afeto que com o decorrer do filme vai sendo demonstrado. O filme “O milagre de Anne Sullivan” apesar de antigo, apresenta a ideia da educação inclusiva e o quão é necessária sua existência, pois como o filme mostra, Helen Keller deixa de estar em um papel de “coitadinha” como a família a via e torna-se sujeito autônomo e com potencialidades desenvolvidas e até mesmo em processo de desenvolvimento.
Conforme Mrech (1998, p. 4), o processo de inclusão é
(…) um processo educacional que visa estender ao máximo a capacidade da criança portadora de deficiência na escola e na classe regular. Envolve fornecer o suporte de serviços da área de Educação Especial através dos seus profissionais. A inclusão é um processo constante que precisa ser continuamente revisto.
A Lei 13.146 de 06 de julho de 2015 que trata sobre a inclusão da pessoa com deficiência, traz no capítulo IV sobre o direito à educação
Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem.
Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.
Art. 28. Incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar (…) (Brasil, 2015, n/d).
Apesar disso, atualmente ainda é notório as dificuldades encontradas pelo público e até mesmo pelos profissionais da educação, visto que, há situações em que o governo não promove de fato a garantia desses direitos, ocasionando assim, uma grande negligência, principalmente com a população mais carente da sociedade. Trazendo ao filme, a família de Helen Keller possuía bens materiais e assim, conseguiram pagar por serviços para auxiliar a filha, mas e se fosse uma família que não possuísse as mesmas condições? Será que Helen Keller teria conseguido desenvolver-se e ter tido as conquistas de estudar e até mesmo cursar uma faculdade?
Trazendo para um período mais atual, Sant’Ana (2005), utilizando-se dos estudos de Goffredo (1992) e Manzini (1999) evidencia que a educação inclusiva tem encontrado barreiras no momento de ação da proposta, pois observa-se a ausência de formação dos professores de classes regulares para lidarem com os alunos que necessitam da educação especial, para além disso, há também a falta de estruturas adequadas, assim como materiais didáticos. É necessário que o governo proporcione de fato condições que favoreçam a prática da educação inclusiva, indo além da implementação de políticas públicas.
Como um ponto benéfico sobre a educação inclusiva, Sampaio e Sampaio (2009, p. 87), evidenciam que
(…) consequência positiva da inclusão ressaltada por elas é a oportunidade criada pela interação entre a criança com e sem deficiência, para que sejam trabalhadas não só questões relativas a diferenças, direitos e deveres, mas também o incentivo ao trabalho em grupo. Elas descreveram etapas da convivência entre as crianças, que se inicia com certo estranhamento e apelidos pejorativos, mas que costuma evoluir para uma aceitação da deficiência, passando a se comportarem como “auxiliares” da professora no cuidado ao colega “especial”. Estes dados confirmam o que a literatura aponta sobre um dos grandes pontos positivos relacionados com a proposta inclusiva, que é justamente a oportunidade oferecida a todas as crianças de aprenderem a ser cooperativas e respeitar as diferenças e os direitos dos demais, ficando bem evidente o papel ético da escola inclusiva.
Apesar de antigo, o filme “O milagre de Anne Sullivan” proporciona reflexões abrangentes acerca da educação inclusiva, sendo possível levantar questionamentos sobre a real forma como o sistema proporciona para esses sujeitos. Embora ainda haja necessidades de melhorias, não se deve negar que a existência dessa política pública trouxe o olhar voltado para essa população, tirando-os do papel de coitados, excluídos e negligenciados, proporcionando espaço para desenvolverem-se e tornarem-se sujeitos autônomos dentro de suas capacidades.
Referências
BRASIL. Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%2013.146%2C%20DE%206%20DE%20JULHO%20DE%202015.&text=Institui%20a%20Lei%20Brasileira%20de,Estatuto%20da%20Pessoa%20com%20Defici%C3%AAncia).> Acesso em: 31 ago. 2023.
MRECH, Leny Magalhães. O que é educação inclusiva. Revista Integração, v. 10, n. 20, p. 37-40, 1998. Disponível em: <luzimarteixeira.com.br/wp-content/uploads/2010/10/1-o-que-e-educacao-inclusiva.pdf> Acesso em: 04 set. 2023.
SAMPAIO, CT., and SAMPAIO, SMR. Educação inclusiva: o professor mediando para a vida. Salvador: EDUFBA, 2009, 162 p. ISBN 978-85-232-0915-5. Available from SciELO Books. Disponível em: <http://books.scielo.org> Acesso em: 14 set. 2023.
SANT’ANA, Izabella Mendes. Educação inclusiva: concepções de professores e diretores. Psicologia em estudo, v. 10, p. 227-234, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1413-73722005000200009> Acesso em: 14 set. 2023.