Em cada nível uma dupla, um discurso, uma carga afetiva e energética, pois cada nível de consciência traz suas singularidades.
O filme “O poço” pode nos lembrar facilmente a mítica descida ao inferno com o propósito de resgate, a exemplo de Orfeu com Eurídice, ou a deusa suméria Inanna que de lá resgata seu irmão e esposo. A queda voluntária ou não, nos obscuros porões de si mesmo, resultaria em que? No inevitável encontro de si mesmo renascido? No encontro do si-mesmo? ‘O filho legitimo do abismo’, ou ‘O filho do abismo que se levanta’, Damuzi-absu ou Tammuz” (Joseph Campbell) poderia ser Goreng, que desperta no nível 48 do poço, em companhia de um homem velho, hostil, de quem ele consegue extrair informações de onde ele estava.
Em cada nível uma dupla, um discurso, uma carga afetiva e energética, pois cada nível de consciência traz suas singularidades. Uma plataforma descia através de um buraco central, passando de nível a nível, partindo com grande quantidade de comida, cuidadosamente preparada, a cada 24h, parando por 2 min. Cada nível comia o resto do anterior. O velho se lançava ávido na comida, procurando engolir o máximo, e cuspia no restante.
A cada mês um gás fazia os prisioneiros dormir e os redistribuía aleatoriamente, assim poderiam despertar em qualquer outro nível. Acima ou abaixo, o despertar noutro nível de consciência, o acordar para outro mundo pessoal, mais elevado ou mais obscuro, luz e sombra alternando-se eternamente. No nível 171 já não chega comida, então, num ato de canibalismo, o velho tenta comer a carne de Goreng, que acaba por matá-lo. Fome, devoramento, desespero, possessão. Goreng luta contra a insanidade, oscila a cada nível do poço, e a cada nível de consciência ou inconsciência encontra seus fantasmas. Como quem cai em depressão empurrado para um poço profundo e luta para subir em intensa euforia ou se deixa cair abandonando-se à morte.
Oscilam os níveis de consciência, alternam-se os estados mentais entre o mais elevado, nutritivo, único e iluminado e os mais obscuros, múltiplos, trevosos, moradas prováveis do abandono, do desamparo, da desnutrição em todas as suas formas. Mas Goreng, quando desperta no nível 6 em companhia do forte e enérgico Baharat, decide descer, descer e distribuir a comida, nutrindo todos os outros níveis. Ele não imagina quanto terá de descer para chegar ao fundo. Estima 250 níveis e desce abaixo disso, e abaixo. Passa pela fome extrema e suas consequências.
Os níveis da insanidade, do desmembramento e da morte. Quão fundo pode alguém descer em si mesmo? É preciso render-se voluntariamente à loucura para não enlouquecer! Com sua força heroica, representada por Baharat, Goreng desce e desce, assistindo a cada nível, a degeneração da consciência, da humanidade, até um vazio escuro de absoluta desolação, incompatível com qualquer possibilidade de vida, e, justamente lá, encontra uma criança, totalmente saudável. Goreng está esgotado, Baharat está morte, bem como o que ele representa. Goreng arrrasta-se, consegue colocar a criança na plataforma. Ele desce no nível mais baixo, Goreng morreu, é levado por seus fantasmas. A plataforma agora subirá rápido levando a criança aos níveis superiores de consciência.
Deixemos agora Jung falar do arquétipo da criança: “A ‘criança’ nasce do útero do inconsciente, gerada no fundamento da natureza humana, ou melhor, da própria natureza viva. É uma personificação de forças vitais, que vão além do alcance limitado da nossa consciência, dos nossos caminhos e possibilidades, desconhecidos pela consciência e sua unilateralidade, e uma inteireza que abrange as profundidades da natureza. Ela representa o mais forte e inelutável impulso do ser, isto é, o impulso de realizar-se a si mesmo. É uma impossibilidade de ser-de-outra-forma, equipada com todas as forças instintivas naturais, ao passo que a consciência sempre se emaranha em uma suposta possibilidade de ser-de-outra-forma. O impulso e compulsão da autorrealização é uma lei da natureza e, por isso, tem uma força invencível, mesmo que o seu efeito seja no início insignificante e improvável”. (Jung. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, §289)
“(…)Os destinos da ‘criança’ podem por isso ser considerados como representações daqueles acontecimentos psíquicos que ocorrem na enteléquia ou na gênese do si-mesmo. O ‘nascimento miraculoso’ procura relatar a maneira pela qual essa gênese é vivenciada. Como se trata de uma gênese psíquica, tudo tem que acontecer de um modo não empírico, como por exemplo através de um nascimento virginal, por uma concepção milagrosa ou então por um nascimento a partir de órgãos não naturais. O motivo da ‘insignificância’, do estar exposto a, do abandono, perigo etc., procura representar a precariedade da existência psíquica da totalidade, isto é, a enorme dificuldade de atingir este bem supremo.
Caracteriza também a impotência, o desamparo daquele impulso de vida que obriga tudo o que cresce a obedecer à lei da máxima autorrealização; neste processo as influências do ambiente colocam os maiores e mais diversos obstáculos, dificultando o caminho da individuação”.(Idem.§282)
FICHA TÉCNICA:
O POÇO
Título original: El hoyo
Diretor: Galder Gaztelu-Urrutia
Elenco: Ivan Massagué, Zorion Eguileor, Alexandra Masangkay, Antonia San Juan, Emilio Buale;
País: Espanha
Ano: 2019
Gênero: Drama, Ficção científica;