O filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta
Considerado um clássico do terror psicológico, ‘O Silêncio dos Inocentes’, lançado no início dos anos 90, apresenta uma narrativa extremamente cativante, capaz de prender o espectador com maestria durante duas horas de filme. A história, permeada de suspense, se desenrola e ganha intensidade a cada minuto até atingir seu clímax. Vencedor de cinco prêmios Oscar em 1992, a obra é, sem dúvidas, um dos grandes marcos e uma das maiores contribuições do diretor Jonathan Demme para o cinema.
Muito além de apenas uma narrativa de suspense e terror, “O Silêncio dos Inocentes” convida o espectador a refletir sobre a natureza humana e suas infinitas peculiaridades, apresentando personagens com perfis psicológicos complexos e bem trabalhados. Acompanhamos a dura trajetória de Clarice Starling, a tímida, mas forte e determinada detetive do FBI, durante o desenrolar do caso Buffalo Bill. Seus encontros com o psiquiatra e temido assassino em série Hannibal Lecter não só a tocam profundamente como contribuem para o próprio processo de investigação criminal.
Esses encontros desempenham um papel importante na trama e formam uma peça chave para entender como se dá na prática a relação fenomenológica entre dois sujeitos totalmente inversos em valores e vivências. O encontro entre a doçura e determinação da jovem Clarice e a postura intimidadora do sagaz e analítico Hannibal Lecter é o eixo narrativo que deverá pautar a discussão ao longo do texto, de modo a tecer considerações a respeito da fenomenologia existencial como base filosófica para compreender as relações humanas.
Resumo do Filme
Clarice Starling é uma estagiária do FBI que é designada para desempenhar um grande papel nas investigações do caso Buffalo Bill, um serial killer de mulheres cujas motivações seguem desconhecidas pelas autoridades. Como parte da investigação, ela é também a estagiária escolhida por seu superior para exercer uma tarefa um tanto quanto assustadora: visitar o terrível assassino Hannibal Lecter em sua cela, de modo a obter informações a respeito do caso. Na sua primeira visita, Clarice é intimidada e confrontada pelo psiquiatra, que chega a provocá-la com comentários irônicos e ofensivos, mas a jovem detetive consegue manter sua postura e conduzir a investigação sem demonstrar estar se sentindo atacada.
O diálogo entre os dois segue permeado por uma atmosfera de tensão, e Hannibal cada vez mais demonstra interesse pelas particularidades da personalidade da jovem detetive. A expectativa quanto ao interesse de Lecter em ajudar nas investigações era baixa, mas ele decide colaborar a seu próprio modo: utilizando-se de enigmas, anagramas, pistas e jogos mentais, envolvendo Clarice em sua teia de manipulação. Dessa forma, ele rejeita o questionário investigativo proposto pela detetive e faz sua primeira jogada, dando a ela a primeira pista sobre o caso, escondida atrás de um anagrama.
Seguindo as orientações e pistas de Hannibal, Clarice chega a uma garagem e encontra o cadáver de um homem, tendo o primeiro êxito na investigação. Sua segunda visita à cela do psiquiatra é ainda mais reveladora, e o vínculo entre os dois começa a se desenvolver com mais propriedade. A vítima encontrada na garagem era conhecida por Hannibal, mas não havia sido assassinada por ele, mas sim pelo próprio Buffalo Bill, que já havia tido um laço amoroso com o homem. Enquanto isso, o serial killer segue atrás de vítimas. Ele consegue enganar e sequestrar a filha de uma importante senadora, o que moverá ainda mais as autoridades posteriormente na trama.
Trazendo mais pistas para o caso, um dos corpos das cinco vítimas do assassino é encontrado. Durante a necrópsia, é identificado na boca da mulher um objeto um tanto quanto incomum: uma pupa de mariposa. Esse item torna-se um dos padrões observados em cada vítima, além do fato de serem mulheres de corpos grandes e de terem tido suas peles retiradas.
Quando o sequestro da filha da senadora torna-se de conhecimento público e surgem os primeiros indícios de que ela teria sido mais uma vítima de Buffalo Bill, as investigações ganham mais intensidade. Em uma das cenas mais memoráveis do filme, Hannibal concorda em ajudar Clarice com mais pistas, sob uma condição: que ela exponha o mais íntimo de sua alma a ele. Inicialmente hesitante, a jovem detetive acaba por revelar uma importante parte da sua história a Lecter, contando sobre sua difícil infância. Órfã de pai aos dez anos, Clarice foi morar na fazenda de seu tio, mas uma situação fez com que ela fosse encaminhada para um orfanato: uma criação de ovelhas estava sendo mantida em cárcere para que tivessem suas peles posteriormente retiradas. Os gritos dos animais levaram a jovem Starling a tentar resgatar uma das ovelhas, mas, infelizmente, ela foi encontrada com o animal após fugir dos limites da fazenda. Hannibal, fascinado com a história, faz um paralelo entre a situação e o comportamento atual da detetive, que se vê obrigada a ajudar as jovens sequestradas pelo serial killer. O encantamento do psiquiatra com Clarice torna-se ainda mais evidente, e o vínculo entre os dois ganha mais força.
Em outra visita a cela de Hannibal, a jovem propõe outro acordo a ele: caso seus esforços para colaborar com a investigação e o resgate da filha da senadora sejam frutíferos, ele será presenteado com regalias especiais, como poder passar momentos numa ilha sob escolta policial. É organizado um encontro entre ele e a senadora, e mais informações são passadas. Ainda não convencida das intenções do psiquiatra, Clarice o visita uma última vez e tenta retirar dele a verdade sobre a identidade do serial killer, mas seu tempo com ele acaba e ela é retirada à força do local. Numa cena envolvida em tensão, dois policiais visitam a cela do psiquiatra para trazer comida, e ele consegue traçar uma estratégia de fuga, matando ambos e retirando a pele do rosto de um deles, para logo após trocar de roupa com ele, de modo a enganar as autoridades e a ambulância. É encontrado no teto do elevador um corpo com as roupas de Hannibal, mas é revelado que, na verdade, se tratava do corpo de um dos policiais. Dessa forma, o possível sobrevivente levado na ambulância era o próprio Hannibal, disfarçado com roupas de policial e com o rosto retirado da vítima. Com essa estratégia, Dr. Lecter consegue mais uma vez enganar as autoridades e fugir.
Enquanto isso, a jovem filha da senadora é atormentada por seu sequestrador, que a mantém presa dentro de um buraco. O serial killer, excessivamente maquiado e vestido com roupas femininas, faz uma grande pressão psicológica na vítima. Nas cenas que mostram seu esconderijo, entramos em contato com o fato de que Buffalo Bill é, na verdade, um transexual, ou que ao menos se enxerga dessa forma, e que o sequestro e assassinato das mulheres sempre teve como propósito usar suas peles para finalidades estéticas, de modo que ele conseguisse se sentir na “pele” de uma mulher. As pupas de mariposa, cuidadosamente alojadas na boca das vítimas, simbolizavam a transformação desejada pelo assassino e concretizada com a retirada das peles das vítimas.
As pistas dadas por Hannibal levam as autoridades a um caminho, mas Clarice, seguindo a sua intuição, decide continuar a investigação por si mesma. Ela visita a casa da primeira vítima do serial killer e descobre mais informações relevantes para o caso, inclusive o fato dele estar usando as peles para fazer suas próprias roupas. Reunindo pistas e informações, a detetive chega a casa do assassino, enquanto o FBI segue as orientações dadas por Hannibal e chega a outra casa. Clarice, sem ter ideia disso, conversa com o próprio Buffalo Bill buscando por mais informações, e só tem a certeza de que o homem em sua frente é o assassino que ela procura quando enxerga ao fundo uma mariposa exótica voando – a mesma espécie cujas pupas eram colocadas na garganta das vítimas. Inicia-se então o que pode ser classificado como o ápice do filme: a detetive persegue o homem dentro de sua própria casa e encontra a filha da senadora dentro do buraco.
Em um dado momento, as luzes são desligadas e somos levados a crer que o serial killer conseguirá matar Clarice, mas a jovem, com sorte, consegue mirar e atirar nele, encerrando de vez o caso e, finalmente, “silenciando as ovelhas”. Clarice consegue muito prestígio e reconhecimento pelo FBI e pela sociedade, e, no final do filme, Hannibal lhe faz uma ligação, parabenizando-a pelo seu sucesso, deixando evidente sua admiração e carinho pela jovem detetive.
Análise
‘O Silêncio dos Inocentes’ é, sem dúvidas, um prato cheio para o estudo da psicologia. Repleto de nuances que trabalham a complexidade da psique humana, o filme aborda aspectos como os traços psicóticos da personalidade de serial killer, o reflexo dos traumas de infância no desenvolvimento e suas consequências na vida adulta, e questões para além do campo psicológico, como o machismo no ambiente de trabalho. Indo ainda mais além do que já foi citado, há presente no filme algo ainda mais delicado e complexo de se debruçar sobre: a relação entre Hannibal e Clarice.
O primeiro contato entre a detetive e o psiquiatra dá-se quando ainda há um grande distanciamento entre os dois, expresso não só pela cela que separa Hannibal da jovem, como também pela própria história, personalidade e universo de ambos. Os encontros, para Clarice, possuíam um único e claro objetivo: colher informações sobre o caso Buffalo Bill. Para Hannibal, a presença da detetive significava uma rotina já vivenciada por ele inúmeras vezes antes, repleta de interrogatórios, questionários e entrevistas. As percepções individuais de cada um dos polos envolvidos na relação, no caso, Hannibal e Clarice, refletem a história de vida de cada um, ou seja, seus modos de existir, o ser-no-mundo.
Para a fenomenologia existencial, o ser-no-mundo reflete a maneira de existir de cada ser humano, baseada em suas vivências e percepções (TEIXEIRA, 1997). As formas de existir estão atreladas a três tipos de relações: o homem com o meio que o cerca, o homem com o outro e o homem consigo mesmo. Trazendo para o contexto do filme, Clarice e Hannibal, com a soma de suas vivências individuais e suas vivências sociais com seus respectivos meios, se encontram na dimensão da relação eu-outro, construindo assim um vínculo inicial que se desenrolará ao longo da trama.
Conforme Teixeira (1997), o ser-no-mundo torna-se patológico quando as relações do indivíduo são infrutíferas no âmbito pessoal, ou seja, quando o ser é incapaz de adentrar seu mundo interno e estabelecer conexões saudáveis consigo mesmo. Partindo desse ponto, o indivíduo também seria incapaz de manter boas relações nas outras esferas (eu-outro e eu-meio). Essa dinâmica é observada em Hannibal, cujas atitudes e vivências no mundo foram conduzidas de modo a trazer sofrimento ao outro e satisfazer o próprio desejo.
A incapacidade do indivíduo de tecer uma reflexão sobre as próprias atitudes ao relacionar-se consigo mesmo levaria à incapacidade desse mesmo indivíduo de se relacionar com o meio e com outras pessoas. Dessa forma, o primeiro encontro entre os dois personagens é permeado pelo fenômeno patológico de Hannibal, que se manifesta na relação através de comentários irônicos, sarcásticos e até mesmo ameaças contra a detetive. Essa dinâmica de relação pouco a pouco sofre alterações. De encontro a encontro, Clarice e Hannibal fortalecem o vínculo e passam a enxergar além dos rótulos de detetive e assassino para enxergarem a essência de cada um, o ser-no-mundo como ele é. Para isso, um elemento mostra-se indispensável.
De acordo com Silva (2013), o diálogo é a base para que a relação eu-outro seja construída e se desenvolva de maneira saudável. Sem a presença de uma relação dialógica, a dimensão eu-outro é ineficaz e não gera frutos. Como observado no filme, os diálogos entre Hannibal e Clarice, apesar de serem poucos e acontecerem em curtos períodos de tempo, servem como uma ponte entre o muro que os separa. A aproximação entre os dois personagens atinge o ápice quando o psiquiatra pede que a jovem conte sobre sua infância e seus traumas – dessa maneira, o rótulo “detetive” é substituído pela pessoa Clarice, e o foco da relação acontece no encontro entre duas pessoas, muito além do significado social da existência de ambos.
Feijoo e Mattar (2014) atentam para os preceitos filosóficos da fenomenologia de Sartre. Entre eles, as autoras citam um aspecto que norteia a visão fenomenológica como um todo: a importância de ver as coisas como elas são, para além da objetividade e subjetividade. O objeto, para a fenomenologia, deve ser apreendido pelo ser da maneira mais pura e reduzida possível, ou seja, sem um viés objetivo e prático e muito menos emocional, subjetivo ou individual. Enxergar o mundo dessa forma significa, em outras palavras, enxergá-lo como ele acontece – sem ideias pré-concebidas, sem o peso de uma análise. Em O Silêncio dos Inocentes, tanto Hannibal quanto Clarice sentem-se desafiados e até mesmo intimidados pela presença um do outro, e apreendem a realidade da relação entre eles de um modo carregado de análises, percepções e hipóteses.
A redução fenomenológica (epoché), ou seja, o ato de reduzir o fenômeno ao modo como ele acontece, puro e simplesmente, apresenta-se como um desafio durante a trama. O distanciamento evidente entre Hannibal e Clarice dificulta que a relação seja construída desprovida de estigmatizações e hipóteses. Entretanto, uma aproximação acontece entre os dois, ainda que tímida e com restrições, e nela o vínculo é formado. A curiosidade de Hannibal em conhecer a individualidade da jovem, mesmo servindo como uma forma de colher material para análise, o aproxima da essência de Clarice. Há, então, uma tentativa de chegar ao núcleo desse objeto (o outro), atravessando as inúmeras barreiras sociais entre os dois, a cela real e simbólica que os divide. É possível dizer que, após esse nível de percepção ter sido alcançado, Hannibal passa a enxergar Clarice como uma pessoa, humanizando-a. A relação do psiquiatra com o outro é baseada na desumanização.
Dessa forma, cria-se um distanciamento entre a sua pessoa e a pessoa da vítima, que é tratada por ele como um pedaço de carne, literalmente. Deve-se ao vínculo formado entre ele e Clarice e pela relação embasada no diálogo e na vivência real, sem interferência de elementos externos, o fato da jovem não se tornar um dos seus alvos no final do filme. A própria tem certeza de que não será perseguida pelo psiquiatra quando este consegue fugir.
Outro fenômeno relevante presente na trama, já mencionado anteriormente, é o modo como as vivências passadas de Clarice afetam seu aqui e agora. Barco (2012) conceitua o fenômeno da presentificação ou presentação como o ato de direcionar a consciência para o momento presente, agindo sobre o agora, ainda que os meios para chegar a esse estado sejam pela imaginação ou fantasia. Atrelada aos traumas de seu passado, é possível inferir, ainda que esse não seja o propósito de uma abordagem fenomenológica, que a detetive age no presente guiada por experiências de seu passado, como a morte do pai (por um assaltante) e seu insucesso em salvar as ovelhas que teriam as peles retiradas. Ambos os eventos podem estar diretamente relacionados com o contexto de sua vida adulta: sua atuação no FBI, guiada por um senso de justiça possivelmente despertado logo após a morte do pai e também dos animais, e sua atuação no caso Buffalo Bill, onde as vítimas tinham o mesmo propósito das ovelhas. A solução de seus conflitos do passado é presentificada e vivida na cena que conclui o caso, quando a detetive atira e mata o serial killer, fazendo justiça pelas vítimas e, em analogia, pelas ovelhas e seu pai.
Sem dúvidas, há uma complexidade de relações intra e interpessoais que são trabalhadas em O Silêncio dos Inocentes, e são inúmeras as possibilidades de interpretação dos personagens e eventos da trama. A aproximação de Hannibal e Clarice, inusitada pela diferença de valores e preceitos de cada um, convida o espectador a refletir.
O filme evidencia que, por mais diferentes que sejam os indivíduos, um encontro é possível – e a relação sempre terá como resultado um produto capaz de tocar a essência de cada sujeito que esteja em interação. Ser-no-mundo é individual e intrapessoal. Ser-com é um convite para o encontro, para o estabelecimento de relações interpessoais. E as duas maneiras de existir se completam para formar um produto que é dotado de possibilidades: o ser humano, com seus fenômenos e complexidades, capaz de transformar e de ser transformado.
FICHA TÉCNICA DO FILME:
O SILÊNCIO DOS INOCENTES
Título original: The Silence of the Lambs
Direção: Jonathan Demme
Elenco: Jodie Foster, Anthony Hopkins, Ted Levine, Scott Glenn;
País: EUA
Ano: 1991
Gênero: Suspense; Terror
REFERÊNCIAS:
BARCO, Aron Pilotto. A constituição do espaço na
fenomenologia de Husserl. 109 f. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2012.
FEIJOO, Ana Maria; MATTAR, Cristine Monteiro. A Fenomenologia como Método de Investigação nas Filosofias da Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa; Out-Dez 2014, Vol. 30, n. 4, pg. 441-447.
SILVA, Edna Maria. O ser na relação com o outro. Revista de Psicologia, Edição I. pg. 123-124, 2013.
TEIXEIRA, José A. Carvalho. Introdução às abordagens fenomenológica e existencial em psicopatologia (II): as abordagens existenciais. Análise Psicológica, 2 (XV). pg 195-205. 1997.