Os deuses devem estar loucos é uma trilogia antiga (primeiro lançamento em 1980) que, através do cômico, levanta questões sociais e culturais pertinentes e reflexivas ainda na atualidade. No presente texto será abordado o primeiro da trilogia, que conta a história de Xixo, um bosquímano do deserto Kalahari, chefe de sua tribo, que ainda não tinha contato com o resto do mundo. A tribo mantem sua sobrevivência graças aos seus conhecimentos sobre a natureza, caça e coleta. Xixo logo enfrentará uma dura escolha, agindo de modo a proteger sua tribo, tal como suas crenças.
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O filme inicia mostrando o cotidiano da tribo dos bosquímanos, que até então, está tudo dentro da normalidade para eles. Eis que Xixo avista um pássaro estranho no céu, que voa sem precisar bater as asas. Esse “pássaro”, na verdade, era um avião. O piloto está a tomar um refrigerante, cuja marca é conhecida mundialmente e é um dos maiores representantes do capitalismo (logo, se perceberá a genialidade do filme em usar esse símbolo). Então, o piloto joga a garrafa da Coca-Cola no deserto, vindo essa a cair perto de Xixo.
O bosquímano concebe aquele objeto estranho como um presente dos deuses (é um povo politeísta), pois, até o momento, tudo que ele e sua tribo recebiam dos deuses eram coisas boas, para ajudá-los, assim como a chuva. Isso porque os deuses amavam muito eles. Logo, aquele objeto torna-se atração na tribo, cumprindo funções que atendiam as necessidades de todos.
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Porém, o presente dos deuses logo mostra sua real face: causar discórdia no grupo. É importante ressaltar que a tribo não possui leis, os pais não castigam seus filhos, sendo todos ali livres para agir como queiram, não há o conceito de posse, tudo é de todos, não havendo brigas e disputas por nada. A paz reina entre eles. Mas a presença da garrafa muda isso, pois, “de repente, todos precisavam dela o tempo todo. Algo que nunca haviam tido, tornara-se indispensável” (narração do filme). Assim, os integrantes da tribo, que nunca haviam brigado antes, agora encontram-se em grande querela e violência uns com os outros, disputando pelo objeto mandado pelos deuses.
Xixo percebe que tudo isso está ocorrendo devido ao objeto, que agora passa a ser chamado por eles de coisa má. Depois de enterrar o objeto distante da tribo e ele retornar para lá (uma hiena o desenterra e uma das crianças da tribo o encontra), Xixo imagina que os deuses não querem a coisa má de volta, sendo responsabilidade dele levá-la ao fim do mundo para não causar mais problemas. Conversando com os membros da tribo, eles lhe dizem que o fim do mundo deve ser muito longe, então, sem entender por que os deuses mandaram a coisa má e por que não a queriam de volta, Xixo embarca em uma jornada cheia de novidades, um mundo diferente do que ele conhecia, tudo para dar fim ao objeto causador de discórdia.
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Fazendo parte de uma tribo que sobrevive com o que a natureza oferece e que a única visão de mundo que possuem é o campo desértico do Kalahari, Xixo, em sua jornada, se depara com “animais” nunca vistos por ele (carros de homens que estavam ali em missão, inclusive, esses homens também lhe eram estranhos, devido a sua palidez).
Mas a pior desventura ocorrida com Xixo se deve ao fato de, por um mal entendido, principalmente linguístico e cultural, ele ter sido preso. Com fome, Xixo avista um rebanho de cabras e tenta abater uma. Como não conhece nada das regras sociais, ele não entende que a cabra não é para todos, que é posse de alguém. Assim, é levado para o mais desconhecido mundo, sem árvores, sem animais, sem deserto, sem sua tribo e o pior, sem sua liberdade, apenas uma vasta solidão e um vazio angustiante guardados entre quatro paredes, onde ele se recusa até mesmo a se alimentar, pois nem isso seguia os padrões ao qual ele estava acostumado.
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A poucas milhas dali, há uma cidade, onde o povo é denominado como civilizado. É um povo que, segundo o narrador do filme, recusou-se a adaptar-se ao seu meio, então, adaptou o meio ao seu modo, construindo cidades, estradas, veículos, máquinas e redes elétricas para realizar seus projetos racionais. O problema é que o homem civilizado não soube quando parar, e o meio ao qual ele adaptou a si tornou-se complicado, tendo o homem que adaptar-se e readaptar-se constantemente ao meio criado por ele para conseguir sobreviver.
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Até então, várias reflexões já se tornam possíveis com o filme. São visíveis dois tipos de sociedade, uma que deixou a naturalidade original do mundo guiar seu modo de viver e outra que recusou isso. Podem ser levantadas questões acerca do capitalismo, desenvolvimento tecnológico, individualismo e como tais vêm influenciando a vida da maioria dos indivíduos.
Na sociedade dita como civilizada, percebe-se que aquilo que não é natural ao meio torna-se algo perigoso para ela, causando brigas, cansaço e mal estar nas pessoas. Fazendo uma correlação com a biologia, pode-se dizer que o meio/mundo é o corpo humano, aquilo que não é natural a ele são os invasores ou corpos estranhos ao organismo, e as brigas e o mal estar são os mecanismos de defesa que o organismo utiliza para expulsar o que não pertence a sua ordem.
Ou seja, percebe-se que as atividades que o homem civilizado passou a executar passaram a causar consequências negativas em suas vidas, como, por exemplo, ele ter que passar horas a fio trabalhando ou estudando como máquinas, esquecendo-se muitas vezes de sua humanidade, de suas relações, de aproveitar melhor o seu tempo, etc. Como reflexo disso, o filme mostra os bosquímanos, que seguem a ordem natural das coisas, sendo interpelados pela garrafa da Coca-Cola. Eis que ocorre uma mesclagem dos aspectos da sociedade civilizada e dos bosquímanos, de modo a enfatizar como a primeira influencia negativamente na segunda.
O objetivo do presente não é criticar o desenvolvimento tecnológico/industrial que o homem alcançou. Longe disso. Até por que é notável grandes avanços e descobertas que se deram graças a esse desenvolvimento. O problema está no fato de, como já foi dito, o homem não saber quando parar e não saber administrar aquilo que ele produz. Dessa forma, enxurradas de produtos são desenvolvidos, talvez sem haver real necessidade, e a humanidade se encontra em um mar de opções e acaba caindo em desespero frenético para obter, obter, obter, consumir, consumir, consumir, trocar, trocar, trocar.
E essa é uma das principais características do que Zygmunt Bauman (2000) chama de modernidade líquida, em livro de mesmo nome. Líquida por que tudo é fluido, tudo se esvai, assim como a água. A era do consumo exacerbado gerou indivíduos ansiosos, desejosos do imediatismo e da possibilidade de trocar produtos (quando não relacionamentos) que já não lhe satisfazem por outro melhor.
O individualismo passa a substituir relacionamentos substanciais. As pessoas passam a enxergar somente o “próprio umbigo” e a conceber os outros como meros coadjuvantes da existência humana, em que cada um se sente como sendo o principal protagonista (Adam Curtis, 2002).
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Levando isso em conta, retoma-se a história de Xixo que, em sua visão simplória da vida, no momento antes de ser preso, é levado a julgamento e entra na sala sorrindo para as pessoas. Porém, ninguém retribui. No decorrer do filme, oberserva-se várias vezes essa atitude de Xixo, tão simples e bonita, mas tão escassa atualmente. Observa-se, também, ele ajudando pessoas que encontra ao longo de seu caminho, deixando por momentos a própria tarefa a qual ele se responsabilizou.
Talvez essa gentileza nos abraçaria comumente se o homem zelasse mais por sua humanidade e natureza e não permitisse que as máquinas ocupassem o lugar das suas relações.
FICHA TÉCNICA DO FILME
OS DEUSES DEVEM ESTAR LOUCOS
Direção: Jamie Uys
Elenco: N!xau, Jamie Uys, Marius Weyers, Sandra Prinsloo;
Ano: 1980
Países: África do Sul/Botswana
Classificação: Livre