Os seus, os meus e os nossos: famílias reconstituídas e seus desafios

Famílias reconstituídas podem afetar profundamente os membros do sistema familiar, uma questão cada vez mais vivenciada pelas famílias atuais.

Daniela Iunes Peixoto-  danielaiunesp@rede.ulbra.br

O conceito de família vem sendo modificado ao longo dos anos, ajustando-se aos novos tipos de constituição familiar. Sluzki (1997) atuou na ampliação de tal significado ao compreender o conceito como sendo abrangente a todos os membros de determinada moradia, que anteriormente era entendida como sendo formada apenas por pai, mãe e filhos.

No que diz respeito às mudanças sofridas pelo conceito original de família, destaca-se o entendimento sobre famílias reconstituídas, que são compreendidas como uma estrutura familiar que se origina de um novo casamento ou união, após uma ruptura familiar, sendo que um ou ambos integrantes já possuem filhos de outro relacionamento. Ainda, ressalta-se que as relações entre um cônjuge e os filhos do outro definem o eixo central que comanda essa nova organização familiar. Essa fusão de famílias é composta por sujeitos de diferentes regras, valores e costumes, o que pode ocasionar conflitos dentro do ambiente familiar. Os membros dessa nova formação vivenciam novas dificuldades quanto à autoridade dentro de casa, espaço e tempo, precisando ajustarem-se em uma nova normativa que funcione para o grupo todo.

O filme “Os seus, os meus e os nossos” foi lançado em 2006 e se trata de uma comédia e é um remake do do filme homônimo de 1968. O pai possui dez filhos e é viúvo, reencontra sua namorada do colégio, agora também viúva e que conta com oito filhos, e decidem se casar sem contar aos filhos.

Fonte: encurtador.com.br/gszK4

Como esperado, as famílias não se dão bem logo no início. São duas estruturas familiares completamente diferentes, com regras e costumes bastante distintos. Por isso, ao longo da produção, os telespectadores se divertem com os planos das crianças de acabar com o casamento dos pais. Quanto às novas relações fraternas do sistema, Ferraris (2002) citou alguns problemas que podem acontecer ao iniciar o processo de junção familiar, sendo divisões materiais e de espaço, mudanças na posição familiar, sentimento de perda do seu lugar, alianças ou coligações.

Tais problemas são evidenciados no filme, quando os atritos começam a acontecer entre os filhos devido ao antigo funcionamento familiar. Mudanças como o horário de usar o banheiro, barulhos excessivos, bagunças, reclamações, entre outras, são sentidas pelos jovens, que se incomodam a ponto de tramarem juntos contra o relacionamento dos pais. Sabe-se que cada membro da nova família possui uma história única, construída dentro do sistema familiar anterior, diante disso, os novos familiares não compartilham o mesmo estilo de vida, já que suas histórias familiares não são compartilhadas.

Portanto, os filhos são submetidos a regras e estilos de parentalidades distintos, o que pode prejudicar a formação de vínculos nesse novo grupo. É comum que surjam triângulos conflitivos, aumentando a complexidade do cotidiano familiar. O pai ou a mãe, ocasionalmente, pode tentar exercer um papel de substituição, que pode ser interpretado como um inconveniente, uma transgressão de papéis. Nesses casos, a relação conflituosa piora e a complexidade do sistema apenas aumenta.

No filme, as crianças foram criadas de formas extremamente diferentes, sendo uma família acostumada a seguir várias regras, e a outra bastante permissiva. Os jovens se incomodam com a desorganização desse novo ambiente familiar, gerando desentendimentos e sofrimento.

Além de toda essa perspectiva, ressalta-se o fato de que os pais não comunicaram aos filhos a respeito do casamento, o que gerou ainda mais sofrimento ao processo. Minuchin (1982) destacou a importância do diálogo no ambiente familiar, que foi prejudicada pelo segredo mantido pelos pais.

Günther (1996) discorre sobre o bem-estar dos jovens, alegando que este é amplamente dificultado por problemas de comunicação e falta de compreensão por parte das figuras parentais. Ainda é necessário levar em consideração que essas crianças vieram de outra relação conjugal, precisam lidar com a crise originada na separação, que os afeta em diferentes níveis de acordo com sua idade.

Como dito por Garbar e Theodore (2000), o laço biológico é claro e descomplicado, enquanto o laço afetivo é subjetivo e complexo. No entanto, é totalmente possível que se formem laços afetivos entre os membros da família recasada, o que se configura como uma “adoção emocional”, de acordo com Ribeiro (2005).

Fonte: encurtador.com.br/cGJ19

Esse fenômeno é retratado no filme, que expõe uma nova dinâmica familiar ao fim da obra. Após a descoberta dos planos das crianças, a relação entre os membros melhora a partir do diálogo e da empatia. O avanço possibilita um ajustamento das regras e dos valores de ambos os grupos, agora combinados. Quando a família reconstituída não encontra um modelo em comum, todos os membros são afetados e sofrem.

No entanto, alguns pais possuem as esperanças de conseguir um recomeço em suas vidas a partir do novo casamento, e esperam que os filhos vejam a mesma oportunidade, deixando para trás seus vínculos afetivos formados anteriormente. Essa reconstituição pode ser admitida de diversas formas nos elementos do coletivo, como destaca Alarcão (2002). Alguns podem enxergá-la como a construção de um novo projeto, uma oportunidade de boas mudanças, enquanto outros a encaram como a perda de um progenitor, sofrendo durante o processo.

Amaral (2010) disserta sobre isso, ao dizer que as vivências anteriores do filho fazem parte da construção de sua identidade, e é difícil precisar se desvincular dos parentes que estavam mais presentes em suas vidas antes do recasamento. Esse quadro também é o criador de diversas resistências sofridas pelos jovens. A ideia de terem um “novo pai” ou uma “nova mãe” pode distanciá-los dos novos vínculos a serem formados. Diante disso, novamente destaca-se a importância da comunicação entre os membros da nova família.

Conviver com novas pessoas, em um ambiente familiar completamente desconhecido pode ser assustador para muitas crianças. Trata-se de uma grande mudança que acontece no meio de seu desenvolvimento, este também deve ser levado em consideração ao se lidar com a formação de uma família. Para que não haja o distanciamento da criança, além de sofrimento a todo o grupo, deve-se considerar os aspectos subjetivos vivenciados por cada membro. Uma boa comunicação também é imprescindível para a formação facilitada de vínculos afetivos.

As famílias reconstituídas não são estranhas quanto ao desenvolvimento da sociedade. É possível verificar, ao longo da história, uma clara adaptação dos conceitos familiares aos novos modelos que surgem com o passar do tempo. É de extrema importância considerá-los, pois são parte fundamental do crescimento de cada indivíduo. Em contrapartida, esse novo sistema familiar pode oferecer um espaço para crescimento individual e coletivo, como apontado por Alarcão (2002). Não existem apenas reações negativas, e nem apenas malefícios. A mudança pode acarretar em um funcionamento saudável e benéfico a todos os membros.

É necessário atentar-se às necessidades e especificidades de cada membro, entendendo o processo vivenciado por cada um e acolhendo suas reações, por mais adversas que sejam. É possível, ainda, que o funcionamento do sistema demore a acontecer, passe por um tempo de reajuste, por isso a paciência e a compreensão devem ser os melhores amigos dos integrantes.

REFERÊNCIAS

  1. Alarcão, M & Relvas, I. Novas formas de família. Coimbra: Edições Quarteto, 2002.
  2. AMARAL, D. H. Recasamento: percepções e vivências dos filhos do primeiro casamento. [Dissertação de Mestrado em Psicologia Clínica], Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2010.
  3. FERRARIS, A. Filhos de famílias divorciadas e reconstituídas: identidade e história familiar. . Porto Alegre: Artmed, 2002.
  4. MINUCHIN, S. Famílias: funcionamento e tratamento. Porto Alegre: Artmed; 1982.
  5. GÜNTHER, I. A. Preocupações de adolescentes ou os jovens têm na cabeça mais do que bonés. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 12, 61-69, 1996
  6. SLUZKI, C. A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
  7. GARBAR, C.; THEODORE, F. Família mosaico. São Paulo: Augustus, 2000.
  8. RIBEIRO, R. M. F. Adoção emocional em famílias de recasamento: um estudo sobre a construção das relações afetivas entre padrastos/madrastas e seus enteados. Dissertação (Mestrado em Psicossociologia)–Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.