Outros jeitos de usar a boca: a(s) voz(es) de uma mulher

É um livro de poemas sobre a sobrevivência. Sobre a experiência de violência, o abuso, o amor, a perda e a feminilidade. Obra poética de Rupi Kaur que leva os leitores numa jornada pelos momentos mais amargos da vida e encontra uma maneira de retirar doçura deles.

Ana Júlia Labre Tavares (Acadêmica de Psicologia) – anajulialabre@rede.ulbra.com

“Outros jeitos de usar a boca” (título original: “Milk and honey”) é uma obra poética que aborda o tema da sobrevivência, explorando experiências de violência, abuso, amor, perda e feminilidade. Dividido em quatro partes distintas, cada uma desempenha um papel único ao lidar com diferentes formas de dor e curar mágoas. O livro leva o leitor por uma jornada pelos momentos mais amargos da vida, transformando-os em delicadas expressões. Inicialmente publicado de maneira independente pela poeta, artista plástica e performer canadense de origem indiana, Rupi Kaur, que também é responsável pelas ilustrações presentes na obra, o livro emergiu como um fenômeno notável no gênero nos Estados Unidos, ultrapassando a marca de 1 milhão de cópias vendidas.

Assim, a escolha do título em português, nada parecido com o original, relaciona-se ao conteúdo dos versos, numa escrita feminista, que questiona o sistema patriarcal, os recortes de gênero e, assim, a urgência da voz feminina.

A obra é dividida em: “a dor”, “o amor”, “a ruptura” e “a cura”. Através de suas vivências e descobertas, Kaur transmite uma mensagem clara e objetiva sobre as diferentes formas de abusos sexuais que muitas mulheres continuam vivenciando no cotidiano. E, para além disso, seus poemas pensam em alternativas de enfrentamento desses abusos, uma ressignificação da narrativa e da construção de uma posição social fortalecida para a mulher. Essa divisão do livro apresenta etapas que o corpo sofre como se fosse algo necessário para se alcançar um nível de consciência sobre si, possibilitando formas libertadoras de expressar-se.

Outros jeitos de usar a boca é um livro que nasce na dor:

“toda vez que você

diz pra sua filha

que grita com ela

por amor

você a ensina a confundir

raiva com carinho

o que parece uma boa ideia

até que ela cresce

confiando em homens violentos

porque eles são tão parecidos

com você

– aos pais que têm filhas”

 

                                               Fonte: pinterest.com

Além da escrita propriamente dita, muitos dos poemas são acompanhados de ilustrações da própria autora, o que amplifica a experiência de leitura.

 

Como as poesias de Outros Jeitos de Usar a Boca são estruturadas em versos livres, há, mesmo numa temática dura, uma fluidez que os percorre. Ademais, como se pode observar no segmento acima, a autora raramente usa pontuações ou letras maiúsculas, o que ela explica:

Quando comecei a escrever poesia, eu conseguia ler e entender minha língua materna (punjabi), mas ainda não tinha desenvolvido as habilidades necessárias para escrever poesia nela. Punjabi é escrito na escrita Shahmukhi ou Gurmukhi. Na escrita Gurmukhi, não há letras maiúsculas ou minúsculas. As letras são tratadas da mesma forma. Gosto dessa simplicidade. É simétrico e direto. Também sinto que há um nível de igualdade que essa visualidade traz ao trabalho. Uma representação visual do que quero ver mais no mundo: igualdade. A única pontuação que existe na escrita Gurmukhi é um ponto final – representado pelo seguinte símbolo: | Então, para simbolizar e preservar esses pequenos detalhes da minha língua materna, eu os inscrevo no meu trabalho. Sem distinção de casos e apenas períodos. Uma manifestação visual e uma ode à minha identidade como mulher diaspórica Punjabi Sikh. Trata-se menos de quebrar as regras do inglês (embora isso seja muito divertido), mas mais de vincular minha própria história e herança ao meu trabalho.” (Kaur, Rupi)

A autora destaca a figura feminina questionando as disparidades de gênero não apenas no âmbito emocional, mas também no tratamento dispensado a homens e mulheres. A violência contra a mulher é abordada de maneira franca, enquanto muitos poemas exploram abertamente a sexualidade feminina, reivindicando o direito da mulher à sua sensualidade que não deve jamais existir para nos subjugar ou diminuir. Em essência, o livro é uma ode à resistência, realçando a força das mulheres. Como se pode contemplar no seguinte poema retirado da parte “O amor”:

“quando minha mãe estava grávida

do segundo filho eu tinha quatro anos

apontei para sua barriga inchada sem saber como

minha mãe tinha ficado tão grande em tão pouco tempo

meu pai me ergueu com braços de tronco de árvore e

disse que nesta terra a coisa mais próxima de deus

é o corpo de uma mulher é de onde a vida vem

e ouvir um homem adulto dizer algo

tão poderoso com tão pouca idade

fez com que eu visse o universo inteiro

repousando aos pés da minha mãe”

                                                                      Fonte: pinterest.com

Os traços de Kaur são leves e, muitas vezes, bastante simples, mas extremamente expressivos.

Já na terceira e penúltima parte do livro, Rupi habilmente passa ao leitor a sensação de ruptura: os altos e baixos, o ódio e amargura intrínsecos a um amor que ainda não se esvaiu. Expõe o que fica depois que o outro vai embora, assim como pode-se observar no trecho a seguir.

“eu não sei o que é viver uma vida equilibrada

quando fico triste

eu não choro eu derramo

quando eu fico feliz

eu não sorrio eu brilho

quando eu fico com raiva

eu não grito eu ardo

a vantagem de sentir os extremos é que

quando eu amo eu dou asas

mas isso talvez não seja

uma coisa tão boa porque

eles sempre vão embora

e você precisa ver

quando quebram meu coração

eu não sofro

eu estilhaço”

                                              Fonte: pinterest.com

 

Uma leitura em que se têm acesso ao íntimo da autora, e, por meio deste, aproxima quem lê de suas próprias emoções.

Por fim, em sua última parte, sendo muito bem intitulada “A cura”, traz um ar de fôlego para o leitor, com poemas voltados para busca pelo amor-próprio.

“se você vê beleza aqui

não significa

que há beleza em mim

significa que há beleza enraizada

tão fundo em você

que é impossível

não ver

beleza em tudo”

FICHA TÉCNICA

  • Título: Outros jeitos de usar a boca
  • Título Original: Milk and Honey
  • Autor(a): Rupi Kaur
  • Tradução: Ana Guadalupe
  • Editora: Planeta
  • Número de páginas: 208
  • Ano de publicação: 2017
  • Gênero: Poema;

Referências

 

KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. São Paulo: Plane