Para Sempre Alice: Alzheimer e a arte de perder

Indicado ao Oscar de Melhor Atriz: Julianne Moore

Vencedor do Globo de Ouro de Melhor Atriz – Filme Categoria Drama (Julianne Moore)

“Meus ontens estão desaparecendo e meus amanhãs são incertos. Então, para que eu vivo? Vivo para cada dia. Vivo o presente… Esquecerei o hoje, mas isso não significa que o hoje não tem importância.”  Para Sempre Alice, Lisa Genova

O filme é baseado no livro homônimo da neurocientista e escritora Lisa Genova e tem como personagem principal Alice (Julianne Moore), uma mulher de 50 anos, bonita, bem sucedida na carreira (como professora de Linguística na Universidade de Columbia) e na vida pessoal (três filhos crescidos, um marido atencioso), convidada constantemente para eventos científicos para apresentação das ideias defendidas em seu livro “De Neurônios a Pronomes”. No universo de Alice, o entendimento das palavras e de como elas ganham sentido e significado em nosso cérebro compõe a base de toda a sua trajetória como pesquisadora. Assim, ao começar esquecê-las, mesmo que aparentemente em forma de simples lapsos de memória, a sua vida, antes tão direcionada e objetiva, começa a ser encoberta por um estranho e crescente borrão, tirando-lhe não apenas a coerência, mas a forma.

 

A doença de Alzheimer (DA) é clinicamente dividida em dois subgrupos de acordo com seu o tempo de início. Dado antes dos 65 anos (DA de início precoce), se caracteriza por um declínio rápido das funções cognitivas. Esses casos são mais raros, correspondendo a 10% do total, e observa-se um acometimento familiar em sucessivas gerações diretamente relacionado a um padrão de transmissão autossômico dominante ligado aos cromossomos 1, 14 e 21 (SENI, 1996; ENGELHARDT et al., 1998 apud TRUZZI & LAKS, 2005).

 

Alice foi fazer os exames temendo deparar-se como uma doença como o Câncer, então, depois de algumas consultas e acompanhada pelo marido (a pedido do seu médico), recebe o diagnóstico devastador: tinha Alzheimer e, como estava no subgrupo de portadores da doença “antes dos 65 anos”, teve que dolorosamente concluir que suas funções cognitivas seriam afetadas rapidamente. Além disso, havia, também, uma grande possibilidade de seus filhos virem a ter os mesmos sintomas no futuro, pois nessas situações a doença é transmitida geneticamente.

Ironicamente, a inteligência de Alice e sua vida dedicada à produção de conhecimento contribuíram para atrasar o diagnóstico, já que ela foi capaz de pregar peças em seu cérebro e encontrar artifícios para mascarar sua doença, sustentando a efetividade dos processos mentais por mais tempo. Assim, quando o problema veio à tona, a estabilização tornou-se menos efetiva e a deterioração cognitiva mais rápida.

 

“Eu sempre fui muito guiada pelo meu intelecto, pelo meu modo de falar, pela minha articulação. E agora vejo as palavras na minha frente e não consigo me expressar. Não sei quem sou, não sei o que mais vou esquecer.” (Alice)

O devastador entendimento de que aquilo que a define é o que lhe será bruscamente tirado marca o início da complexa jornada de Alice. O rápido progresso da doença e suas consequências para a família é retratada de forma sensível e direta. Vimos como alguns tentam se esquivar de responsabilidades, como outros tentam manter a esperança em uma possível cura e há aqueles (como Lydia, sua filha mais nova, interpretada por Kristen Stewart) que escolhem permanecer por perto e aceitar que ainda há uma Alice, mesmo que as lembranças de quem ela fora não reflitam a pessoa que ela é.

 

“Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E, assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias.” (Alice)

 

O que há de mais especial no filme é a interpretação de Julianne Moore, pois através das suas expressões, especialmente do seu olhar, e o tom da sua voz, vimos Alice pouco a pouco desaparecendo ou, quem sabe, abrigando-se em algum universo ainda não explorado de sua mente. Com ela, iniciamos o processo de esquecimento, a estranha arte de perder, vimos suas tentativas de manter as palavras na memória a partir do uso de jogos em seu smartphone, de suportar entender a brevidade da vida ao lembrar-se das histórias que ouvia de sua mãe:

“Quando eu era bem nova, na segunda série, minha professora falou que borboletas não vivem muito, algo em torno de um mês, e fiquei tão chateada. Fui para casa e contei para a mamãe. E ela disse: ‘É verdade. Mas elas têm uma linda vida’. E isso me faz pensar na vida da minha mãe, na da minha irmã. E, de certa forma, na minha vida.” (Alice)

E tudo isso é, por vezes, devastador porque a coloca frente a frente com o estágio mais latente da fragilidade humana: a inevitável constatação de que somos breves, frágeis e vivemos cercados por medo. Há um constante desamparo em Alice, ou melhor, em todos nós, mesmo que nossas habilidades cognitivas tentem criar mecanismos para nos manter firmes em meio a um universo em movimento, sem delimitações claras, talvez um universo indiferente (como diria Carl Sagan).

Abaixo, na íntegra, o discurso de Alice em sua última palestra. Um fato interessante é que ela havia escrito um texto extremamente científico sobre o Alzheimer, mas sua filha a orientou a dizer algo sobre o que, de fato, sentia e não uma mera descrição de sintomas, assim ela o fez:

“A poetisa Elisabeth Bishop escreveu: ‘A arte de perder não é nenhum mistério; tantas coisas contêm em si o acidente de perdê-las, que perder não é nada sério’. Eu não sou uma poetisa. Sou uma pessoa vivendo no estágio inicial de Alzheimer. E assim sendo, estou aprendendo a arte de perder todos os dias. Perdendo meus modos, perdendo objetos, perdendo sono e, acima de tudo, perdendo memórias.

Toda a minha vida eu acumulei lembranças. Elas se tornaram meus bens mais preciosos. A noite que conheci meu marido, a primeira vez que segurei meu livro em minhas mãos, ter filhos, fazer amigos, viajar pelo mundo. Tudo que acumulei na vida, tudo que trabalhei tanto para conquistar, agora tudo isso está sendo levado embora. Como podem imaginar, ou como vocês sabem, isso é o inferno. Mas fica pior.

Quem nos leva a sério quando estamos tão diferentes do que éramos? Nosso comportamento estranho e fala confusa mudam a percepção que os outros têm de nós e a nossa percepção de nós mesmos. Tornamo-nos ridículos. Incapazes. Cômicos. Mas isso não é quem nós somos. Isso é a nossa doença. E como qualquer doença, tem uma causa, uma progressão, e pode ter uma cura. Meu maior desejo é que meus filhos, nossos filhos, a próxima geração não tenha que enfrentar o que estou enfrentando. Mas, por enquanto, ainda estou viva. Eu sei que estou viva. Tenho pessoas que amo profundamente, tenho coisas que quero fazer com a minha vida. Eu fui dura comigo mesma por não ser capaz de lembrar das coisas. Mas ainda tenho momentos de pura felicidade. E, por favor, não pensem que estou sofrendo. Não estou sofrendo. Estou lutando. Lutando para fazer parte das coisas, para continuar conectada com quem eu fui um dia. 

‘Então, viva o momento’, é o que digo para mim mesma. É tudo que posso fazer. Viver o momento. E me culpar tanto por dominar a arte de perder. Uma coisa que vou tentar guardar é a memória de falar aqui hoje. Irá embora, sei que irá. Talvez possa desaparecer amanhã. Mas significa muito estar falando aqui hoje. Como meu antigo eu, ambicioso, que era tão fascinado em comunicação. Obrigada por essa oportunidade. Significa muito para mim.”  Alice

 

Lydia: O que eu acabei de ler, você gostou?
Alice: O quê?
Lydia: Sobre o que era?
Alice: Amor. Sobre amar.
Lydia: Isso mesmo, mãe. Era sobre o amor.

Em “Para sempre Alice”, vimos como uma pessoa, em um dado contexto, reage à sua própria deterioração, como ela avalia cada fase desse processo (quando ainda tem condições para isso) e observamos as decisões que ela é capaz de tomar quando o futuro é, de fato, totalmente incerto ou certo de uma forma muito ruim. Em algumas das decisões de Alice podemos fazer um paralelo com o filme Amour, em que a morte passa a ser uma possibilidade menos angustiante do que imaginar uma vida na qual você não se reconheça.

Alice aprendeu a ser autossuficiente desde muito cedo, afinal sua mãe e irmã morreram quando ela era bem jovem, e seu pai era um alcóolatra. O pensar a fazia existir. Daí quando sua mente se torna um labirinto e as palavras deixam de formar discursos ou, até mesmo, meras sentenças, quando não há como resgatar lembranças da memória, pois nela esse conceito estava caótico ou totalmente perdido, fica aquela sensação estranha que, talvez, a Alice tenha deixado de existir. Porém, o filme também é sobre esperança, por isso que, ao final, quando vimos uma Alice quase sem voz, balbuciando com dificuldade algumas palavras, mas entendendo (ainda que parcialmente) o significado de um texto recitado por sua filha, tem-se um vislumbre de alguém que ela foi e isso, naquele momento, é tudo.

 

TRUZZI, Annibal; LAKS, Jerson. Doença de Alzheimer esporádica de início precoce.Rev. psiquiatr. clín.,  São Paulo ,  v. 32, n. 1,   2005 .   Available from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832005000100006&lng=en&nrm=iso. access on  20  Jan.  2015.  http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832005000100006.

 

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FICHA TÉCNICA DO FILME

PARA SEMPRE ALICE

Título Original: Still Alice
Direção: Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Roteiro: Lisa Genova (livro), Richard Glatzer, Wash Westmoreland
Elenco Principal: Julianne Moore, Kristen Stewart, Alec Baldwin, Kate Bosworth
Ano: 2014
Doutora em Psicologia (PUC/GO). Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Ciência da Computação pela UFSC, especialista em Informática Para Aplicações Empresariais pela ULBRA. Graduada em Processamento de Dados pela Universidade do Tocantins. Bacharel em Psicologia pelo CEULP/ULBRA. Coordenadora e professora dos cursos de Sistemas de Informação e Ciência da Computação do CEULP/ULBRA.