Philomena: a relação paradoxal da mulher na religião

Com quatro indicações ao Oscar:

Melhor Filme, Melhor Atriz (Judi Dench), Melhor Roteiro, Melhor Trilha Sonora

 

Baseado no comentado livro The Lost Child of Philomena Lee (O filho perdido de Philomena Lee), e com a atriz Judi Dench como protagonista (ela é indicada ao Oscar de Melhor Atriz deste ano), Philomena é talvez um dos filmes que melhor retrata – ao lado de The Magdalene Sisters, de 2002 – a chaga deixada pela Igreja Católica na Irlanda dos dois últimos séculos. Naquele período, as mulheres de “atitudes suspeitas” (mães solteiras, mulheres vítimas de estupro etc.) ou que tenham assumidamente praticado algum ato que ferisse os preceitos morais vigentes (como no caso de Philomena, que engravidou sem ter se casado) eram deixadas em conventos femininos, as chamadas “casas de mulheres perdidas”, para que pudessem pagar (literalmente) pelos seus pecados.

As mulheres não apenas eram obrigadas a oferecer mão de obra sem remuneração (o que atualmente configura-se como trabalho em condição análoga à de escravo), mas se porventura sobrevivessem ao parto (que era feito em condições desumanas), eram obrigadas a “cederem” seus filhos para a adoção. Estas instituições religiosas eram comandadas por rígidas freiras, que impunham às mulheres um exaustivo ritmo de serviço nas lavanderias e salas de costura; durante todo o século XX houve um enrijecimento dos métodos de “purificação das pecadoras”1, que também passaram a ser submetidas a longos períodos de silêncio e oração.

Além da indicação para o Oscar de Melhor Atriz, o longa concorre a outras três estatuetas: Melhor Filme, Melhor Roteiro e Melhor Trilha Sonora; trata-se, portanto, de uma obra que mostra de forma comovente como Philomena Lee lidou com as suas agressoras depois de sua saída do convento, ora nutrindo um forte sentimento de autopunição (afinal, presumia, ela merecia ser “castigada” por tamanho “erro”), ora disposta a encontrar o filho que fora adotado 50 anos atrás por uma família católica dos EUA.

Há no filme um triste e ao mesmo tempo belo enredo em que é mostrado a que ponto chega uma mãe desejosa de rever seu filho. Na busca, Philomena se preocupava preponderantemente com um aspecto: será que o filho Anthony especulava sobre sua mãe ou sobre seu país de origem, a Irlanda? Talvez ao saber que a resposta fosse um sim, Lee pudesse presumir que o filho não a odiaria “por tê-lo abandonado” (mesmo que isso tenha ocorrido à revelia de Lee).

 

 

Mas Philomena Lee não poderia ter chegado tão longe em busca de Anthony se não tivesse contado com a ajuda do jornalista irlandês Martin Sixsmith (Steve Coogan), de temperamento forte, ateu, e que mantinha um nítido desprezo pela religião institucionalizada. Os dois perfizeram um trajeto que prende o expectador, numa história que emociona a cada descoberta sobre o paradeiro do filho.

A viagem aos EUA não só faz Philomena descobrir coisas incríveis sobre Anthony, como também demonstra uma provável “natureza cíclica das circunstâncias” (o espectador irá ficar surpreso com o desfecho), além de resultar em uma relação afetiva entre a já idosa Lee e o difícil Sixsmith; em vários momentos da história ambos abrem concessões para se preservarem como amigos.

Outro aspecto interessante, e não menos importante, é a relação paradoxal que Philomena mantém com a religião e mais especificamente com as suas agressoras, as freiras das “Casas de Madalena”, como alguns conventos também eram conhecidos, em decorrência da antiga fama que se atribuía à Maria Madalena, que teria passado de prostituta à fiel seguidora de Cristo (hoje esta estória acerca de Madalena é contestada, e acredita-se que lhe reservaram essa pecha de prostituta por temerem seu poder sobre os grupos religiosos surgidos após a morte de Jesus2).

Philomena parece encarnar como ninguém a figura da mulher3 que apesar de relegada a segundo plano em várias instituições religiosas (notadamente no Catolicismo, onde não pode exercer o sacerdócio), ainda assim corresponde [as mulheres] a grande contingente nestas instituições, e defende seus preceitos, mesmo que estes limitem os direitos inerentes ao gênero (como o domínio e propriedade do próprio corpo, por exemplo).

 

 

Mas há em Philomena Lee, também, uma constante busca pelo exercício do perdão, algo que do contrário, como ela defende no filme, a tornaria amarga, raivosa (o que definitivamente ela não queria). Lee não tem medo de revisitar o passado e acredita, no fundo, que o perdão é a escolha mais justa a ser feita, embora tenha sido vítima de tantas injustiças.

Philomena Lee aparenta ser frágil, mas no fundo é uma guerreira que não se presta à “vitimização”. Guardou um segredo o quanto pôde, revelou-lhe no momento que julgou oportuno, experimentou os dissabores e a ansiedade de uma busca fantástica para, no fim, ser redimida pela ausência de ressentimento (é tanto que, recentemente, a verdadeira Lee foi recebida pelo Papa Francisco). Esta é uma saga e tanto, merecidamente adaptada para o cinema. Em resumo, a trajetória de Philomena lembra a máxima do escritor francês Victor Hugo, de que “vós, que sofreis, porque amais, amai ainda mais. Morrer de amor é viver dele.”

 

Um asilo para “mulheres perdidas” na Irlanda, no início do século 20

 

Notas:

1 – Estreia de Philomena abre o baú do passado sombrio da Igreja Irlandesa – Disponível em: <http://g1.globo.com/pop-arte/cinema/noticia/2014/02/estreia-philomena-abre-o-bau-do-passado-sombrio-da-igreja-irlandesa.html>. Acesso em: 19/02/2014.

2 – Maria de Magdala, a grande ”Apóstola dos Apóstolos”. Entrevista especial com Chris Schenk – Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/505130-mariademagdalagrandeapostoladosapostolosentrevistaespecialcomchrisschenk >. Acesso em: 19/02/2014.

3 – Nawal el Saadawi: “La mujer no puede liberarse bajo ninguna religión” – Disponível em: <http://sociedad.elpais.com/sociedad/2011/03/07/actualidad/1299452411_850215.html – Acessado em 20/02/2014>.

REFERÊNCIAS: 

Philomena: sinopse – Disponível em:< http://www.adorocinema.com/filmes/filme-213656/ >. Acesso em: 20/02/2014.

Embora mais oprimida por religião, mulher é mais devota. Disponível em: <http://www.paulopes.com.br/2014/01/embora-mais-oprimida-pela-religiao-mulher-eh-mais-devota.html#.UwVpjoVFCpM>. Acessado em: 20/02/2014.

Kessler, Adriana Silveira; Alves, Cristiano Evaristo da Rosa. As mulheres nas religiões: cultura, identidade e relevância social – Disponível em; <http://www.academia.edu/3723260/As_Mulheres_nas_religioes_cultura_identidade_e_relevancia_social >. Acesso em: 20/02/2014.

FICHA TÉCNICA:

PHILOMENA

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Diretor: Stephen Frears
Elenco: Judi Dench, Steve Coogan, Sophie Kennedy Clark, Anna Maxwell Martin, Peter Hermann.
Duração: 98 min.
Ano: 2013
País: Reino Unido, França, EUA
Gênero: Drama
Classificação: 10 anos

Psicólogo. Mestre em Comunicação e Sociedade (UFT). Pós-graduado em Docência Universitária, Comunicação e Novas Tecnologias (UNITINS) e em Psicologia Analítica (UNYLEYA-DF). Filósofo, pela Universidade Católica de Brasília. Bacharel em Comunicação Social (CEULP/ULBRA), com enfoque em Jornalismo Cultural; é editor do jornal e site O GIRASSOL, Coordenador Editorial do Portal (En)Cena.