Pieces Of A Woman: a perda de um filho recém-nascido e as ambiguidades vivenciadas no luto materno.

Neste filme, o abismo de uma tristeza vivenciada por uma mulher após a perda do filho é retratado de maneira intimista e visceral

“Pieces Of A Woman” trata-se de um filme bastante intimista, em que o diretor Kornél Mundruczó faz questão de colocar o telespectador dentro da narrativa densa e intensa do enredo, fazendo com que seja despertada a sensação, para quem está assistindo, de estar vivenciando as experiências de cada personagem.

O filme fala sobre um casal que está no estágio final da primeira gravidez e os dois, Martha e Sean (Vanessa Kirby e Shia LaBeouf), decidem ter um parto humanizado em casa e o mesmo é feito por uma parteira, no processo do nascimento da criança houveram complicações mas, Martha e Sean conseguiram ver o rosto da criança, que morre minutos depois do nascimento.  Após esse momento trágico, o filme dá ênfase no impacto causado pela morte do bebê e como cada personagem está lidando com o processo do luto.

É socialmente empregado que os pais morram antes dos seus filhos, ou seja, que o ciclo natural da vida é os pais partirem antes de seus filhos, dando a entender que se o processo inverter-se é algo antinatural, podendo gerar dificuldades na elaboração do luto. Normalmente o entendimento que se tem sobre o ciclo da vida é o nascer, envelhecer e morrer, mas, em certas ocasiões, assim como na perda de um bebê, essa lógica é oposta ao que se é esperado e alguns indivíduos nascem, mas encontram a morte precocemente. Neste contexto, além da perda objetiva e física do bebê, a família ainda precisa acostumar-se a um cenário futuro em que suas expectativas, criadas e alimentadas em relação ao bebê, não serão concretizadas. Assim, além de ser uma perda física, é também simbólica. 

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Quando os pais vivenciam tal perda, o processo tende a se tornar algo difícil de ser compreendido ou aceito, pois, dentro da perspectiva de nascimento é criada expectativas de celebração de uma nova vida que irá chegar e não de uma perda precoce (AGUIAR; ZORNIG, 2016). Para a sociedade, a ideia que transpassa sobre a maternidade, em seu imaginário utópico, é de estar inteiramente ligada ao nascimento, alegria, começo e vida, porém, podem existir fatores que possam causar variações no ciclo gravídico puerperal, indo de contra com as idealizações sociais sobre a maternidade (MAUSHART, 2006).

A morte de um filho é visto como um acontecimento ilógico, incomum e injusto, pois, essa ruptura não é convencional ao que é pregado pelo senso comum de que os filhos não devem morrer antes dos pais, já que a morte de um filho é a quebra de sonhos e esperanças (FREITAS; MICHEL, 2021).  Ao contrário disso, a morte é mais do que comum dentro da maternidade e apesar disso, não se tem muitos estudos sobre tal acontecimento, tão pouco sobre orientações e manejos para pais que perdem seus bebês durante ou logo após o nascimento (IACONELLI, 2007). 

Considera-se que o luto perinatal tem a necessidade de um olhar e atenção mais amplo, perante o fato de ser uma perda que não se é plenamente legitimada e nem abertamente falada (GESTEIRA et al., 2006). O luto não legitimado ou não autorizado trata-se de um evento psicossocial, referente a uma perda que não pode ser abertamente assumida e não é autorizada para ser sentida. De tal modo, a perda é desconsiderada, necessitando de apoio social, legitimação e validação do que se está sentindo, e assim colocando o enlutado em um lugar de vazio e solidão (CASELLATO, 2015).

Martha pouco tempo depois voltou para sua rotina do dia a dia e aparentemente estava lidando bem com a perda da filha, já que a mesma não se preocupava com o processo contra a parteira e evitava sua mãe para não ser engolida pela cobrança da mesma perante a situação. Ao contrário de seu marido, o mesmo ficou emocionalmente instável e teve uma recaída no seu uso de substância alcoólica. O distanciamento entre eles fica claro no decorrer do filme e aparentemente se dá ao fato dos dois levarem o luto de forma diferente. 

Em um momento do filme fica evidente a crítica em relação a forma como Martha tem lidado com a situação, quando a mãe da personagem a cobra para ir ao julgamento da parteira e diz “isso é por você, você precisa enfrentar isso(…)’’, mas, afinal, existe forma correta de passar pelo luto? Segundo Ramos (2016) existe uma dificuldade em definir como é o “Processo de Luto” sendo esse um fenômeno subjetivo, que é vivenciado de forma diferente por cada indivíduo e são consideradas questões culturais, sociais e o contexto da perda, que também interfere na forma como cada indivíduo irá digerir o luto. E dentro dessa perspectiva, pode-se dizer que o luto é um processo difícil de ser passado e trabalhado, derivando-se justamente do fato de ser um processo e não um estado (PARKES, 1998). O luto pode ser entendido como uma reação normal e prevista dentro desse contexto de perda, e é acompanhado uma propiciação a reconstrução e adaptação às mudanças geradas em decorrência das perdas (GESTEIRA; BARBOSA; ENDO, 2006).

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A perda de um bebê é um evento que não atinge um indivíduo, apenas, mas toda família e a dinâmica dela, torna-se notório no filme quando é mostrado o distanciamento entre o casal Martha e Sean e entre e sua mãe, irmã e cunhado. Segundo Luna (2014) quando ocorre a morte de um filho tal evento tem o poder de causar um desequilíbrio no núcleo familiar, já que o filho, por vezes, é uma simbologia de harmonia e equilíbrio na dinâmica familiar. Chega um momento em que Martha e Sean se separam e não há questionamentos nem hesitação na tomada de decisão, dando a entender que os dois são conscientes da mudança, de forma negativa, que foi causada na relação dos dois após o fatídico acontecimento, sendo assim, para o bem-estar dos dois, escolheram seguir caminhos diferentes, apesar da dor que é separar-se do seu cônjuge. 

Chegando no final do filme, Martha resolve ir ao tribunal e depõe contra a parteira, mas ao final do julgamento, decide depor a favor da mesma, entendendo que, a parteira não teve a intenção de machucar a sua filha e que um julgamento não iria mudar ou trazer sua filha de volta à vida e assim, mostrando que entende a partida da sua filha e que está, possivelmente, caminhando para um tipo de superação. Chegando quase no final do filme, sua mãe e sua irmã respeitam sua decisão e decidem sair às três, confirmando a reaproximação entre elas, podendo assim, a família passar por esse processo sem muitas feridas. Franqueira, Magalhães e Ferés-Carneiro, (2015) falam que, nessa experiência de perda, ter vínculos que sirvam de apoio é fundamental, podendo ser preventivo nas complicações do luto.

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O luto, seja ele em qualquer contexto, pode ser um processo árduo e difícil. Perder um filho pode causar dores que possam ser quase impossíveis de serem descritas, mas o luto é um processo natural da vida, já que a única certeza da vida é a morte e nós, como seres sociáveis, estamos suscetíveis a enfrentar a dor de perder algo ou alguém. No final, de forma bem emblemática, Martha joga as cinzas da filha em um rio, representando a evolução da personagem perante a situação, sendo possível visualizar que mais uma etapa nesse processo difícil foi vencida.

 

REFERÊNCIA:

AGUIAR, H. C; ZORNIG, S. Luto fetal: a interrupção de uma promessa. Estilos Clin, São Paulo, v. 21, n. 2, p. 264-281, 2016. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/estic/v21n2/a01v21n2.pdf> Acesso em: 01 março 2023.

CASELLATO, GABRIELA. O resgate da empatia. Editora Summus, 2015.

FRANQUEIRA, Ana Maria Rodrigues; MAGALHÃES, Andrea Seixas; FÉRES-CARNEIRO, Terezinha. O luto pelo filho adulto sob a ótica das mães. Estudos de Psicologia (Campinas), v. 32, p. 487-497, 2015. 

FREITAS, J. L; MICHEL, L. H. F. Psicoterapia e Luto: A Vivência de Mães Enlutadas. Psicologia: Ciência e Profissão. v. 41 (n.spe 3), 1-15, 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/pcp/a/JrWpmChzV7r8rZNF64rHL7g/?lang=pt&format=pdf> Acesso em: 02 março  2023.

GESTEIRA, Solange Maria dos Anjos; BARBOSA, Vera Lúcia; ENDO, Paulo César. O luto no processo de aborto provocado. Acta Paulista de Enfermagem, v. 19, p. 462-467, 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/ape/a/hgSMBJmG7yMrq7mRRMkM9Gx/abstract/?lang=pt> Acesso em 03 março 2023. 

IACONELLI, Vera. Luto insólito, desmentido e trauma: clínica psicanalítica com mães de bebês. Luto insólito, desmentido e trauma, São Paulo, v. 10, n. 4, p. 614-623, dez. 2007. Disponível em; <https://www.scielo.br/j/rlpf/a/hz8B5Z66qkD4nDw8s76CKtn/?lang=pt> Acesso em 28 fev. 2023. 

LUNA, I. J. Histórias de perdas: uma proposta de (re) leitura da experiência de luto. Repositório Institucional UFSC. Santa Catarina. 2014. Disponível em: <https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/129248> Acesso em 04 março 2023. 

PARKES, Colin Murray. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. 3. ed. São Paulo: Summus Editorial, p. 50-100, 1998.

MAUSHART, Susan. A máscara da maternidade: Por que fingimos que ser mãe não muda nada?. 1. ed. São Paulo: Melhoramentos,  p.150-200, 2006.

RAMOS, Vera Alexandra Barbosa. O processo de luto. Revista Psicologia, v. 12, n. 1, p. 13-24, 2016. Disponível em; <https://www.psicologia.pt/artigos/textos/A1021.pdf> Acesso em 28 fev. 2023.